A CADEIRA
A mulher falou da cadeira que pertenceu à uma moradora antiga. Uma solitária e boa senhora, sem marido, sem filhos, sem ninguém. Morou ali por muitos anos, até completar sua trajetória na terra. Partiu serena e em paz numa tarde ensolarada. Tentou se desfazer da cadeira. Colocou à venda, alguns interessados responderam ao anúncio, mas desistiram de comprá-la por conta do peso e do tamanho. Com pesar de jogar fora aquela cadeira confortável e bonita, resolveu deixá-la ali mesmo, afinal mesmo antes da boa senhora, ninguém permaneceu naquele pequeno quarto por tanto tempo assim, alugavam-no por alguns meses, e se mudavam. A cadeira, pensou não ser empecilho para o novo ocupante, ao contrário poderia ser útil.
Tamica ouviu sem prestar muita atenção, seus pensamentos estavam revirados demais com o tudo que ela tinha para resolver. Precisava apenas de um teto naquele momento, mal olhou a cadeira que para ela não fazia diferença, aquele quarto vinha de encontro às suas necessidades naquele momento, era só o que importava.
A vida sempre lhe pregou muitas peças e aprendeu a não se deter em pormenores, mas seguir avante. Estava num desses momentos e não podia se ater a detalhes, nem exigir muito, pois o dever a chamava as responsabilidades.
Acertou rapidamente o que tinha de acertar com a dona do quarto, e sem demora acomodou seus pertences pessoais no seu novo espaço. Depois de um banho, saiu para cumprir com seus deveres e deixar tudo preparado para no dia seguinte voltar ao trabalho.
Passou o dia ocupadíssima com tanta coisa acumulada pelos dias em que esteve ausente para resolver suas questões pessoais e quando voltou para casa estava exausta, tudo em seu corpo doía. Antes mesmo de tomar seu banho deixou se afundar naquela cadeira grande e pesada e entrou instantaneamente num sono profundo e reparador.
Quando acordou na manhã seguinte, demorou alguns minutos para se situar no novo ambiente. Ao abrir os olhos se deparou com o branco das paredes, despidas de qualquer adorno. Sempre gostou de decorá-las, no tempo em que ela tinha casa, família, e recebia pessoas. As imagens de sua casa, instantaneamente, povoaram-lhe a memória. A casa tão ampla, tão cheia de música, tão movimentada pelos amigos, nas festas que oferecia, nas celebrações. A doce lembrança afagou-lhe o coração. Como gostava de preparar aqueles eventos! Como era prazeroso deslizar entre seus convidados, ouvir suas histórias e vê-los satisfeitos!
Entretanto, aqueles momentos agora pertenciam ao passado. Não sentiu saudade nem tristeza ao ver em alto relevo na alvura da parede à sua frente o desfile de cenas ambientadas em sua antiga residência. Não forçou nem afastou, simplesmente as deixou fluir, livremente. Viu cenas inteiras e fragmentadas, algumas apareceram quase apagadas, outras bem vivas. Ouviu nítido o riso e a voz das pessoas, e não teve nenhuma reação. E assim como aquelas imagens vieram, elas se foram espontaneamente. Passou, acabou.
Ela saiu da cadeira e entrou em sua realidade. Sempre começava seu dia com uma xícara de café. A bebida era indispensável pela manhã. Dava-lhe disposição, preparava-lhe o humor, ajudava-lhe a caminhar no ritmo necessário para a realização de suas tarefas. O café era a sua bússola, seu amigo, seu ponto de partida para iniciar suas atividades.
O cheiro do café fresquinho exalou e preencheu o espaço pequeno que ela chamou de 'esconderijo perfeito' com o passar dos dias, nos quais ela foi se aconchegando, se sentindo confortável, se descobrindo em seus momentos de introspecção aninhada naquela cadeira … especial … ela concluiu depois de refletir por um momento. Ficou a pensar na senhora a quem pertenceu. Deve ter sido uma pessoa muito especial também. Rememorou o dia em que ali chegou, tão inquieta e dispersa, não deu atenção à dona do imóvel quando ela falou da cadeira e da senhora que a deixou.
Foi percebendo gradativamente as mudanças que lhe aconteciam ao simples ato de se sentar naquela cadeira, ou melhor colocando, naquela poltrona antiga, bem conservada, macia de cor clara e … perfumada! Podia sentir um cheiro agradável de flores exalar daquele móvel grande, pesado e firme que dava-lhe sensações opostas. Sentia-se pequena em todos os sentidos, leve como uma pluma e suspensa no ar. Cada vez que a ocupava era acometida por sentimento de missão cumprida, o qual Tamica não tinha definição, apenas mergulhava no conforto daquela emoção serena, agradável. Podia experimentar os benefícios da gratidão, mesmo sem identificar a razão, sentia-se grata.
O processo de transformação aconteceu sem que Tamica pudesse se dar conta. A inquietação foi se diluindo e cedendo lugar a momentos de silêncio e observação interior. Descobriu o prazer de se permitir sentar-se consigo mesma e ouvir as batidas de seu coração, de acompanhar o movimento de seu peito enchendo e esvaziando de ar, de ouvir pequenos ruídos e sons, os quais ela nunca tinha prestado atenção. Surpreendeu-se apreciando o tic-tac do relógio na parede, o zumbido contínuo do motor da geladeira, o barulho da água sendo transferida da jarra para seu copo. O prazer em saciar sua sede ao ingerir aquela porção de água. Percebeu que a água tem sabor, que laceava-lhe a garganta e as cordas vocais tornando mais agradável o som de suas palavras em suas comunicações diárias.
Quanta coisa ela percebeu sentada naquela cadeira! E quanta coisa passou despercebida também.
O tempo seguiu seu curso natural, sem preocupações desnecessárias, sentia-se confortável em seu pequeno quarto, o qual continha apenas o indispensável. Sentia-se liberta do peso de bagagens, descompromissada com aquisições materiais e desvinculada de obrigações sociais. Trabalhava com o público, e já não considerava, tarefa dispendiosa lidar com a diversidade do ser humano, mas, interessante ouvir suas narrativas, às vezes tão longas quanto lamuriosas, sem fazer julgamento, mas entendendo que o caminho é o mesmo para todos, porém com avanços e retardos.
Sentada ali em silêncio, deu-se conta de que os meses se passaram, sem que nenhuma preocupação a tivesse carregado, sem que nenhum aborrecimento a tivesse dominado. E se perguntou se sua transformação interior estaria de certa forma ligada às energias emanadas daquela cadeira. Quis acreditar que sim, e embebida num sentimento de gratidão pensou na boa senhora, sorriu tranquila, apartada do movimento que acontecia lá fora naquela última noite do ano.