O ROSTO REFLETIDO NO ESPELHO

Ele jurou que aquele seria o último copo, assim como já havia jurado que os vários copos anteriores seriam os últimos. Mas, a exemplo do que aconteceu antes, ele olhou para o balconista daquela espelunca chamada de “bar” e resolveu ignorar essa promessa, mais uma vez.

Sua visão está ficando turva. As pessoas ao seu redor, todas almas perdidas, pensava ele, estão perdendo suas formas. Ele só espera que, quando olhar no espelho novamente, consiga enxergar seu rosto refletido. Um rosto que ele está aprendendo a detestar, uma visão que, para ele, cada vez mais personifica tudo o que há de mais desprezível. Ele há um tempo pensa assim. Já chegou a considerar a hipótese de estar sendo um pouco rude demais consigo mesmo ou então carregando demais no sentimento de auto-piedade, mas essa consideração não durou muito tempo. De qualquer forma, ele quer enxergar seu rosto no espelho.

Olha mais uma vez para cada lado. À sua direita, um homem barbudo (uma barba mal-cuidada), que aparenta ter uns cento e noventa anos muito mal vividos, lhe dá uma idéia do que ele está se tornando. Chega a sentir arrepios quando aquele rosto o olha e, por entre espaços vazios dentro da pouca, abre-lhe um sorriso imenso e emite uma gargalhada que lhe soa animalesca. Ele se encolhe diante do velho bêbado, apanha seu copo e bebe o último resto de sua bebida (a qual, a essa altura, ele nem lembra o que é). Pede ao balconista que lhe dê mais uma dose (que certamente será a última). Apanha o copo e bebe um gole. Olha para esquerda e vê um homem jovem, talvez um rapaz, que personifica tudo o que ele já foi num passado não muito distante. Sem saber nada sobre a vida daquela pessoa, ele acha que se trata de alguém que abandonou tudo para viver de forma irresponsável, bebendo durante toda a madrugada e brigando sem motivo, para acordar na próxima tarde lembrando-se de tudo o que fez e preparar-se para fazer tudo de novo na próxima madrugada (isso enquanto durar a boa quantidade de dinheiro que ele tem guardada da época em que ele trabalhava e era um jovem promissor. Quando esse dinheiro acabar, será necessário arranjar mais). Enfim, ele não sabe se o rapaz à sua esquerda é assim, mas lhe aparenta, ao menos. Ele sente que é isso mesmo.

E agora, ele ali, entre o que ele foi e o que ele será, bebe de uma vez o último gole de sua bebida. Com a visão totalmente turva, ele pede ao balconista mais uma dose (a última), bebe rapidamente e se levanta. Evita olhar para qualquer direção, com receio de encontrar mais alguma personificação de seu passado, de seu futuro ou simplesmente de seus desejos. Não quer ver e nem sentir nada. Apenas se levanta e vai para o banheiro, depois de atirar em cima do balcão algumas notas de dinheiro para pagar sua diversão da noite. Ele nem sabe se deu o dinheiro certo, mas como o balconista não reclamou, ele julgou ter dado a quantia exata ou então mais do que devia.

Abre sua calça e mija na privada imunda. Enquanto sua urina cai no vaso quebrado, ele olha para as paredes e, com o que lhe resta de visão (a visão que o porre ainda não apagou de vez) lê as mensagens deixadas por outros bêbados que estiveram ali antes. Chega até a rir com algumas das bobagens deixadas ali. Quando ele percebe que toda a sua urina saiu, fecha o zíper e sai, tomando cuidado para não sujar os pés em todo o cocô espalhado pelo chão. Vai até a pia, mas não para se lavar. Ele só se preocupa em olhar para o espelho. Esperava ainda conseguir ver seu rosto. E consegue. Ele vê uma cara inchada pelo álcool, olhos mortos revelando uma alma semi-morta. Mesmo se ele um dia quiser fugir disso, o espelho sempre o alcançará para mostrar tudo. Na há como fugir.

Diante disso. Só lhe resta ir embora, antes que o dia amanheça de vez. Ele não sabe o porquê, mas não quer estar na rua quando o sol surgir. Talvez porque o sol lhe traga lembranças da época em que ele não se sentia mal assim. Lembranças do que ele foi um dia.

Cambaleia para fora do bar. Aos tropeços, chega até a esquina. Abaixa a cabeça e, antes de vomitar, olha para os lados. Não vê nada e nem ninguém se mexendo, somente um pouco de cocô de cachorro. Olha para a merda e fica imaginando o cachorro que fez aquilo. Chega a esticar a mão na direção do cocô, imaginando que o cachorro está ali, à sua frente. Ele vê o focinho, amistoso, cheirando sua mão que treme. Sente a língua feliz lambendo seus dedos, demonstrando aquela amizade que só os cães nutrem. De repente, começa a chorar. Ele já teve um amigo assim. Seu cão, companheiro de tantos anos, fazia-lhe muita falta. Enquanto espera o vômito chegar à sua boca e cair no chão, chega a ouvir o barulho do rabo de seu amigo batendo em tudo o que existe à sua volta, tão alegre em vê-lo. E, imerso nessa lembrança, nesse delírio, ele sente uma lágrima rolar pelo seu rosto ao mesmo tempo em que o vômito sai de sua boca e lava o chão, não sem antes passar pela sua roupa e suja-lo todo. Ele se desespera, não pelo vômito, mas sim pelo sentimento de saudade e carinho que a lembrança de seu cachorro lhe trouxe.

Pensa em limpar a roupa (não sabe exatamente com o quê), mas desiste da idéia. Mesmo porque, provavelmente, logo ele vomitará de novo. Ergue sua cabeça, olha para frente e recomeça a andar. Interrompe seus passos quando pisa no cocô. Levanta o pé e, olhando para a sola de seu sapato, chora. Chora como se tivesse destruído algo muito importante em sua vida. Ajoelha-se no chão e, pegando com as duas mãos o que restou do cocô daquele cachorro desconhecido, chora furiosamente. Grita. Berra. E desmaia.

II

Acordou sabe-se lá quanto tempo depois. Abriu os olhos e, com certa dificuldade, tentou discernir algo à sua frente. Não reconheceu nada. Levanta sua cabeça dolorida e percebe que está deitado em um travesseiro.

Ainda atordoado, ele escuta uma voz falar-lhe algo. Olha para o lado e vê uma mulher, uma senhora, na verdade, que lhe sorri amavelmente. Traz em uma das mãos uma xícara e oferece-lhe, dizendo que lhe fará bem. Ele não se sente em condições de perguntar nada, por enquanto, e tão pouco de recusar o que quer que seja que aquela senhora traz para ele. Fazendo um grande esforço para sentar-se. Quando consegue, mantém os olhos semi-fechados e apanha a xícara. O primeiro gole da bebida lhe cai mal, mas ele logo bebe o restante e mal sente o gosto. Só sente a quentura descendo pela sua garganta.

Entrega a xícara para a mulher e, quando começa a reunir forças para falar algo, é interrompido por ela. A senhora, sorridente, lhe diz que o encontrou caído no chão, em cima de sujeira, logo de manhã. Não sem demonstrar indignação, ela disse que várias pessoas passavam por ele e nem sequer pensavam em oferecer ajuda ou mesmo ver se ele estava vivo. Ela, por sua vez, ergueu-o com muito custo e conseguiu arrastá-lo até ali, que era a casa onde ela vivia sozinha. Ela sorriu e disse que, apesar de ter uma certa idade (não revelada), ela ainda estava bem forte. Ele não teve outra saída a não ser sentir uma enorme simpatia por aquela senhora e sorrir de volta.

Sentindo-se um tanto envergonhado, ele agradeceu. Sorriu para ela e vomitou no colchão.

Vomitou muito, mas não era vômito provocado pela bebedeira de há pouco. Era um vômito estranho, o mesmo tipo de vômito que ele despejou na rua ao se lembrar de seu cachorro. A velha senhora emitiu um gemido de preocupação, andou rápido para fora do quarto e voltou com um pano para limpar a sujeira. Ajudou-o a se levantar e rapidamente se pôs a limpar, preocupada que estava em não deixar que ele se sujasse com seu próprio vômito.

A muito custo, ele se levantou da cama e pediu para ir ao banheiro. A velha senhora, com uma simpatia que há muito tempo ele não via em ser humano nenhum, sorriu e indicou-lhe o caminho.

Lá chegando, ele entrou e fechou a porta, sem trancar. Aproximou-se do espelho e debruçou-se sobre a pia. De cabeça baixa, fez uma rápida retrospectiva de seus últimos meses de vida. Achou interessante ter tido vontade de fazer aquilo justo naquela hora. Mas ele sabia o que estava acontecendo: a bondade da velha senhora, o carinho que ela lhe deu, mesmo sendo ele um estranho, estava mexendo consigo. E, ainda por cima, ela estava tendo carinho por um bêbado que ela encontrou caído na calçada, após uma noite de bebedeira, algo que ele há muito tempo considerava impossível de acontecer. Há um longo tempo que não era, na verdade, tão longo assim. Na verdade, ele achava isso desde quando largou tudo e se transformou no bêbado que agora estava parado à frente de um espelho sem conseguir se olhar. Essas considerações deram a ele uma vontade louca de fazer uma retrospectiva de sua vida recente.

Por mais que se esforçasse, a única coisa da qual ele conseguia se lembrar eram as bebedeiras, as brigas.... enfim, essa era a sua vida. E, claro, ao final de cada noite, ele se olhava no espelho, com amargura, e via seu rosto.

Agora, lá está ele, sentindo carinho pela velha senhora e uma leve vergonha de sua vida recente. Não consegue erguer a cabeça para se olhar no espelho. Mas ele tem vontade. Quer muito olhar seu rosto no espelho. Mas não consegue.

Passa sabe-se lá quanto tempo nessa situação. Após muito esforço, ele consegue erguer a cabeça. Olha no espelho..... mas não vê nada. Só enxerga, refletida no espelho, a parede atrás de si.

Todos os seus sentimentos dão lugar a uma angústia enorme. Ele perdeu seu rosto. E começa a chorar.

Ouvindo seu choro e seus gritos, a velha senhora entra afoita no banheiro. Pergunta a ele o que aconteceu. Ele chora desesperadamente e, entre balbucios e soluços, diz a ele que não consegue ver seu rosto no espelho. Ela parece não entender e se aproxima dele. Tenta acalmá-lo abraçando-o. Ele retribui o abraço e chora mais, sentindo ainda mais carinho pela velha senhora. E seu rosto continua não aparecendo no espelho.

III

Muito tempo depois, ele está sentado no sofá da casa da velha senhora. Está só esperando a noite chegar, para voltar a viver sua vida. As seus pés, caído no chão, está o corpo sem vida da velha senhora. O sangue dela ainda está sujando as mãos dele.

Ele olha bem para o cadáver e, aliviado, não sente nada por aquela solidária e gentil senhora que está morta ali no chão. Essa foi a segunda vez que ele matou alguém, mas não achou difícil. Também, teve um grande estímulo para isso: ao matar a velha senhora, ele olhou para o espelho e novamente viu seu rosto. Deixou de sentir carinho e afeto pelo seu anjo que o retirou da sarjeta. Voltou a ser ele mesmo. Voltou a detestar seu rosto e a si próprio. Foi exatamente isso que já tinha lhe acontecido quando, meses atrás, ele matou seu cachorro, fiel e feliz amigo de todas as horas. Ele estava cansado de tanto carinho. Ao matar seu cão, ele começou a enxergar seu rosto refletido no espelho.

Naquela ocasião, ele passou a ver seu rosto refletido no espelho, assim como tinha acontecido agora, ao matar a velha senhora que despertou nele sentimentos que ele não quer nunca mais sentir.

Prefere ver seu rosto detestável sendo refletido no espelho.