A lenda da mulher cheirosa

A LENDA DA MULHER CHEIROSA

Os habitantes desta ilha de Tijoca, que faz parte do arquipélago do Marajó, não sabem explicar até hoje qual o motivo da aparição da mulher cheirosa somente acontecer por ocasião das festividades do glorioso São Sebastião. O sincretismo popular não consegue uma relação lógica entre um espírito do mato, para sempre encantado e que faz parte do reino e da legião de espíritos encantados que estabeleceram sua morada no coração da floresta amazônica e o santo considerado defensor da igreja. Difícil de esclarecer o elo entre o mártir que serviu às ordens do imperador Carino e a entidade sobrenatural que os caboclos chamavam de mulher cheirosa. O guerreiro da Santa Madre Igreja, chefe da corte dos pretorianos, condenado a ser trespassado por flechas, segundo contava a velha Efigênia, para a audiência curiosa do povo inculto da Vila - que escutava com atenção a vida do santo protetor dos arqueiros e das confrarias de tiro ao alvo - parecia não possuir qualquer relação com a encantada. No velho barracão erguido no centro da vila em homenagem a São Sebastião, onde ficava a imagem do santo-guerreiro, a velha Efigênia contava a vida do padroeiro, nascido em Naborna, na Gália. Lugares distantes, que nem mesmo a velha Efigênia, pessoa de grande conhecimento e cultura sabia onde ficava. Efigênia sabia muita coisa. Efigênia sabia até ler e escrever. Aprendera com o padre Osvaldo Lourinho, que morreu de velhice. Nos últimos dias de sua existência terrena, o velho pastor passou a caducar, já não dizia coisa com coisa e vivia falando das belezas do céu, que ele enxergava em suas visões de velho caduco. Depois de ensinar Efigênia a ler, o padre lhe trazia livros com ilustrações, sobre a vida dos santos da igreja católica, que ela lia e contava para os habitantes da Vila. Era através da velha Efigênia que os moradores da vila tomavam conhecimento das coisas da capital. O padre trazia exemplares de "A Província do Pará", que falava das coisas da política, dos duelos terríveis entre os capangas do general Barata e os guaxebas do general Assunção, do primeiro clássico entre Remo e Paissandú, realizado no estádio Leônidas Castro, quando o futebol ainda não era atividade empresarial, das mangueiras que o intendente Antônio Lemos mandou plantar nas ruas principais de Belém, das roupas masculinas de linho bambo e dos chapéus de feltro que as mulheres usavam, porque era moda em Paris. Era um tempo ameno em que Belém era uma cidade pequena, quase um arruado de casas. As pessoas dormiam com portas e janelas abertas; o único ladrão que tinha no bairro era o "Bigorrilho", que furtava galinha nos quintais das casas. Não havia supermercado e todo mundo criava galinha no quintal para consumo próprio. Galinha, galo, frango, pinto e pato, dormiam empoleirados nas árvores dos quintais. Os quintais eram separados por cercas de estacas. Os xerimbabos eram presas fáceis para "Bigorrilho". Era um tempo de que hoje se tem saudades .Cadeiras de madeira eram colocadas na porta das casas e os vizinhos se reuniam às três horas da tarde para tomar café com pupunha e conversar. Os homens cerimoniosamente tiravam o chapéu de côco para cumprimentar as mulheres nas ruas e ninguém tinha vergonha de ser cavalheiro. Constatava-se esse procedimento nas notícias de "A Província do Pará", e na "Folha Vespertina" que a velha Efigênia lia, atropelando, às vezes a leitura, porque jornalista escrever ruim não é novidade de nosso tempo. Mas o povo matuto conseguia entender a comunicação e as notícias, porque o povo é sábio, mesmo não sendo letrado, como era Efigênia, que aprendera muitas lições com o padre Osvaldo. Naquele tempo havia apenas uma linha de trem que saía do Largo de São Brás, seguia pela avenida Tito Franco e ia até Marituba. Um exemplar do jornal "Folha Vespertina"- lido pela velha Efigênia para os ouvidos atentos daquele povo - falava do acidente ocorrido na linha do trem, em que três pessoas morreram esmagadas, debaixo da locomotiva movida a vapor. Era uma desgraça que a máquina a vapor trouxera, parecia o final dos tempos. O homem inventando máquinas para a sua própria destruição. Onde já se viu uma máquina correr em alta velocidade sem a tração de cavalos? Parece até carruagem de encantado. É o fim dos tempos, com certeza.

Depois de ler as notícias, que serviriam de comentários pelo povo matuto da Vila durante o resto da semana, Efigênia voltava a falar dos santos. A estória de São Sebastião, invocado como protetor contra as doenças contagiosas, era repetida dezenas de vezes. Depois de trespassado pelas setas dos soldados romanos, milagrosamente São Sebastião escapou da morte. Ele foi tratado - dizia a velha Efigênia - por uma viúva, que curou-lhe as feridas, sendo Sebastião restituído à saúde. Depois de se sentir curado, São Sebastião foi colocar-se na passagem do imperador Diocleciano, para lhe censurar a crueldade. Preso novamente, São Sebastião foi fustigado até à morte. A primeira vez que a velha Efigênia leu de carreirinha a estória de São Sebastião, ela chorou de emoção e devoção, levando a assistência às lágrimas também.

O bom padre Osvaldo conseguiu construir naquele povaréu uma devoção serena e sincera pelo santo flechado. As leituras da velha Efigênia eram interrompidas de quando em vez por uma ladainha e cantorias, que o povo entoava contrito. Sebastião era um nome muito comum na Vila. Assim como o apelido "Sabá", é claro. As parteiras aparavam três meninos, dois eram batizados com o nome do santo padroeiro da Vila.

A invocação do nome do santo servia de alento para todos os males. Do corpo e da alma. Quanta gente não ficou boa com a intervenção do santo. Quando o quinino não pode mais reverter o quadro terminal da malária, uma oração ao santo restabelece as forças do maleiteiro ou lhe dá uma passagem em paz. Muito menino acometido de sarampo e catapora foi salvo pela fé em São Sebastião, porque os pais depositaram Nele sua confiança, entregando o pequeno nas mãos da santidade. Centenas de índios da tribo araweté, próximo à Vila, foram mortos por um surto de catapora e sarampo. Dava pena ver os curumins morrendo feito formigas; índias grávidas acometidas da infecção morriam por falta de resistência imunológica contra a doença trazida pelos empregados da madeireira.

Tucano, beija-flor, onça, capivara, preguiça e temtem, juriti e maracajá. Mogno, andiroba, samaúma, bacuri e castanheira. A fauna e a flora destruídas pela ganância do lucro. A tribo dos índios araweté só existe na lembrança das covas abertas com enxadas. As doenças e a miscigenação se encarregaram de varrê-los como etnia. Depois que o cemitério índio não tinha mais lugar para enterrar araweté, que os espíritos da floresta resolveram interferir, levando o vírus malígno para o fundo do rio, aprisionando-o na fortaleza da iara. Salvando a taba do aniquilamento total pela doença, mas sendo impotente diante do avanço do contato das raças. Tupã, o deus araweté, tornou-se debilitado diante do machado, da cartucheira, do terçado rabo de galo, da faca cabo de tala, da maldade e da ganância. Ele preferiu esconder-se no que ainda existe de denso na floresta, de onde vela em espírito por seu povo. Com tantas desgraças prenunciadas sobre índios e os moradores de Tijoca, somente as divindades poderiam acudi-los. Talvez São Sebastião e Tupã unidos em um grande milagre, pudessem por a salvo aquelas populações nativas, de índios e de mestiços, seus descendentes, vítimas da miscigenação inexorável, das doenças da mata e dos rios, das enfermidades trazidas pelos trabalhadores da madeireira, penetrando na floresta através dos batelões e popopôs, intoduzidas no corpo da floresta por meio dos igarapés, furos, paranás: veias abertas para a devastação e a propagação de epidemias.

O velho Melquíades pescador, vendia arraia, cação, piramutaba, pratiqueira e gó no trapiche de Tijoca, quando a Vila era formada apenas por choupanas. Já havia algumas casas de enchimento e outras construídas com cimento armado, trazido de Belém, no barco de Dico Lobato, mas eram poucas. Ferrado por uma surucucu pico de jaca, Melquíades começou a inchar, os olhos eram duas postas de sangue, devido a hemorragia que o veneno da bicha provoca no organismo do cristão. Ele já estava quase cego. A mulher dele, dona Conceição Macumbeira, já tinha perdido as esperanças, quando Melquíades prometeu acompanhar a procissão de São Sebastião de joelhos. O santo ouviu o pedido e resolveu atender seu Melquíades. O velho pescador desinchou e teve a vista restaurada e ainda hoje consegue consertar a rede de pescar com a simples luz de uma lamparina. Não se podia conferir as pessoas sabidamente curadas pelo santo milagreiro. Eram muitas. Não fosse São Sebastião e a população inteirinha da Vila teria sido dizimada pelas endemias tropicais, pelas doenças adquiridas no convívio da mata, pela peçonha dos bichos da floresta de várzea e do igapó. A população desta Vila sempre viveu abandonada por tudo quanto é governo, que se estabelecia, naquela época, quando os políticos ainda tinham fama de responsáveis e de pai da nação. Faz muito tempo que o santo irradia seus milagres, portanto.

Quando chegava o mês de janeiro, que se aproximava o dia 20, data da festa do santo padroeiro da Vila, os rapazes solteiros do lugar ficavam preocupados. Outros não. Alguns diziam até que queriam se encontrar com a mulher cheirosa. Não tinham medo da senhora encantada. Era por esses dias que ela costumava aparecer. Foram muitos os rapazes mundiados pela entidade. Clarimundo, "Bené", "Nego Wilson", Carlos Xibiu, Alcindo Pena, Teófilo Moura, "Galego", "Zeca", Nadir Neves, "Sabazinho", Ranulfo, "Bita" e os gêmeos Abinel e Ariel, filhos da finada Madalena , só prá lembrar de alguns nomes. Todos eles entraram na relação dos que tiveram o azar (ou a sorte) de serem conduzidos pela mulher cheirosa para o seu leito de flores silvestres.

Na semana que antecedia a procissão de São Sebastião havia quermesse e a Vila passava uma semana de festa e de folguedos. Vilarejos e arruados situados ao redor da Vila de Tijoca reuniam-se na quermesse em homenagem ao santo. Barcos chegavam apinhados de gente das ilhas de Caviana, Mexiana e da ilha Grande de Gurupá, de Maracá-Açu, da Ilha do Balaio e de Santa Rita, de todo arquipélago Marajoara chegava gente para a festa. As mulheres da Vila preparavam comida e bebida para quem comparecesse. Dona Linda fazia todo ano vários potes de aluá, para embriagar o povo. Os homens bebiam aluá em canecas de barro. Ela passava dias torrando milho e arroz para fermentar com açúcar em aguidares de barro. Dona Linda fazia também aluá com casca de abacaxi fermentado durante vários dias. O caramburu, bebido durante as noites da festa, servia de fonte de alegria e entusiasmo para o povo durante os dias de quermesse. "Dinho", um preto de dezenove anos, "Sérgio Mortadela", Oscarino, "Pedrão", Osvaldo Machado, marido de dona Linda, "Ocivaldo Cotó" e o cabo Tenório, do destacamento de Tijoca, disputavam quem bebia mais caneca de aluá. "Sérgio Mortadela", durante uma madrugada da quermesse, bebeu setenta e três canecas de aluá, disputadas na "porrinha vira caneca". Por pouco não morre de coma alcoólica. Mas foi se recuperar do coma e voltar à bebedeira com a mesma turma, pingunça igual a ele. Tudo em homenagem ao santo guerreiro. Ao defensor da Santa Madre Igreja. A bebedeira era em louvor ao santo. Pecado era não tomar a sua talagada em reverência ao protetor da Vila, santo milagreiro, que se não fosse ele, Melquíades, "Quirino do Banjo", "Sérgio Mortadela", cabo Tenório e tantos outros, não estavam mais no mundo dos vivos, pois de uma ou de outra maneira o santo os salvou da morte certa. Todo morador da Vila ainda recorda, porque foi estampado em "A Província do Pará", lido por Efigênia, do dia em que o cabo Tenório, que na época não tinha patente, era um simples praça de pré, se deparou com um grupo de malfazejos foragidos da Colônia de Cotijuba, onde cumpriam pena por assassinato e outros crimes graves. O que menos culpa no cartório possuía, deu no pai e na mãe. Nessa época o cabo Tenório servia no destacamento de Ponta de Pedras, uma das várias ilhas do Marajó. Os bandidos se amotinaram dentro da barca que conduzia os criminosos para audiência com o juiz em Belém. Os bandoleiros prenderam o tenente Teodorico Rodrigues e jogaram o oficial na Baía do Guajará, juntamente com dez soldados. Eles foram salvos por um canoeiro que recolheu o tenente da PM e os praças da água da maré. Os presos rebelados tomaram as armas da escolta. O chefe do motim mandou algemar o cabo Tenório e atirá-lo dentro da Baía, com farda, coturno e até seu inseparável 38. O graduado da PM já se considerava perdido, quando rogou pelo santo. No fundo das águas barrentas da maré, o cabo lembrou do santo-padrinho e rogou por sua salvação. Tenório conta - para quem quiser ouvir, principalmente os incrédulos - que viu um vulto mergulhando em sua direção e retirou a algema que lhe impedia de nadar. Retirado das águas por pescadores, o PM saiu em perseguição ao bando, junto com os companheiros da caserna, recolhidos da água pelo canoeiro. Foi também o santo que guiou a bala do revólver do militar, quando durante cerrado tiroteio, ele conseguiu alvejar o bandido conhecido por "Cancão", chefe dos amotinados. Com a morte de "Cancão", os outros malandros se renderam. O que valeu ao militar o reconhecimento de seus superiores, sendo promovido à graduação de cabo por bravura. Ele foi chamado às pressas no palácio "Lauro Sodré", onde recebeu uma medalha, entregue pelo general Barata. Tudo por obra do santo - a salvação da morte certa e a promoção a um posto de comando. Ora, ele tinha todos os motivos do mundo para render graças ao padroeiro, varando a madrugada em seu louvor, sorvendo todos os goles da boa batida de maracujá aprontada por "Quirino do Banjo". Brincando com as moças do arruado, em alegre e inocente convivência. Não era carraspana, farra ou porridão, não. Quem pensava assim só podia ser herege, anátema ou inspirado pelo espírito do anti-cristo. Era a mais pura e lídima devoção pelo santo-mártir-eleito-de-Cristo para a proteção de toda a Vila de Tijoca. O cabo erguia a caneca de barro com a batida e era seguido por seus companheiros de devoção e de fé. Glória e aleluia ao nosso pai, dizia "Ocivaldo Cotó", com os olhos vermelhos, não se sabe se do efeito da batida ou se da emoção de poder, com fé, saldar seu padrinho celestial. Amém, balbuciava Alcindo Pena, outro contrito devoto de São Sebastião, com a voz embargada, de devoção e do efeito do aluá e da batida.

Enquanto dona Linda preparava os potes de barro com aluá, a negra Geni tinha por especialidade preparar maniçoba. Ela moía a maniva no pilão. Tudo que Geni colocava na maniçoba era produzido na Vila. Orelha, pé e tripa de porco, mocotó, jabá e bucho bovino. Ela fervia durante uma semana o panelão de barro na tacuruba, erguida no quintal, debaixo de uma mangueira. Um cheiro bom exalava da panela de barro da negra Geni, que entrava pela narina e dava água na boca.

Jurema também era famosa por seus cozidos. Era ela quem preparava o pato no tucupi para a quermesse. O jambú era tirado por Jorge no igapó, trazido em grandes paneiros de guarumã, para Jurema aferventar. Os patos eram criados no quintal com minhoca e babugem, a melhor forragem para essas aves. Jurema cozinhava de dez a quinze borrachos para a festa. O tucupi era preparado no tipiti pela mulata Eliete. Ela separava o tucupi da tapioca. Com a tapioca Eliete fazia beijú, servido com café para quem estava amanhecido, depois de passar a noite dançando carimbó e bebendo seus goles em devoção ao santo. Melquíades moqueava arraia e gó para tirar o gosto da batida, preparada com esmero por "Quirino do Banjo". Ele encomendava com antecedência várias frasqueiras de cachaça, no engenho de seu "Didi Machado", na Vila Boa União. O velho trazia no barco a motor e entregava diretamente para "Quirino do Banjo", recomendando que ele fizesse alguns litros de batida de araçá, a sua bebida preferida, alertando, com isso, de que viria com a família para a quermesse. "Quirino do Banjo" e o irmão dele, "Inácio da Flauta" levavam vários dias preparando as diversas marcas de batida. Taperebá, tucumã, goiaba, araçá, jucá, muruci, graviola, bacuri, uxí, abricó, maracujá e jenipapo. Dezenas de litros de licor e batida eram preparados com antecedência por Quirino e Inácio e colocados dentro de litros e garrafas de vidro com rolha de caranã, para os dias da festa, para as quermesses, para os convidados. E não era pouca gente que vinha.

O melhor dia da quermesse santa era no dia 19, véspera da procissão. Era nesse dia que o conjunto de carimbó e siriá de mestre Anacleto se apresentava. Cantava e tocava para o povo dançar. Constituído por doze músicos, o conjunto só parava o tempo suficiente para os músicos emborcarem um gole de batida e prosseguirem o batuque, porque a alegria exigida pelo santo não podia acabar. Faziam parte do conjunto de carimbó "Quirino do Banjo" e "Inácio da Flauta", filhos de mestre Anacleto, cujos apelidos foram dados em razão dos instrumentos que tocavam no conjunto do pai. Felipão, filho de Bartira e o moleque Salomão tocavam clarinete. Alírio Pinduca, Ponciano e Amiraldo tocavam saxofone. "Pitico", "Nego Tetê", "Nego Dinho" e o cego Romualdo eram os responsáveis pela percussão. Eram eles que esquentavam os atabaques, rufos, pandeiros e bumbos. Mestre Anacleto dirigia o conjunto, quase uma orquestra. Com uma varinha na mão mestre Anacleto coordenava o ritmo e indicava as músicas. Compositor de grande talento, mestre Anacleto não tocava música que não fosse de sua autoria ou de integrante de seu conjunto. O povo acompanhava as toadas batendo palmas e dançando. A mais famosa toada de carimbó, brotada da cabeça de mestre Anacleto era a "Tucandeira", que Juvenal ainda recorda a letra, tocada até na Rádio Marajoara, em Belém:

"São Benedito na ilha do seringueiro

Se deixou ferrar por uma tucandeira

Ai tucandeira, tucandeira, se deixou ferrar,

Por uma tucandeira.

Foi a iara que te levou para o fundo do rio

Onde mora a Tucandeira

Foi boto fêmea que te levou para o castelo

Onde mora a tucandeira

Ai tucandeira, tucandeira..."

Tijoca se enfeitava toda na véspera da procissão, porque era nesse dia que mestre Anacleto e seu conjunto de carimbó se apresentavam. No pátio amplo onde eram realizadas as quermesses, as mulheres enfeitavam as barracas de madeira com ramos de açaí e bacaba. Flores retiradas da várzea adornavam o barracão onde ficava a imagem do santo. Bandeirinhas de papel de seda eram pregadas com goma feita de tapioca em fios de algodão que cruzavam todo o terreiro, erguidos por varas tiradas na capoeira pelo nego Tetê. Presença certa no arrasta-pé a de Carlos Xibiu, neto de Didi Machado. Ele morava em uma vila de pescadores, próximo três léguas de Tijoca. Caboclo namorador, o avô lhe colocara a alcunha, precisamente pelo fato de possuir insaciável apetite pelo sexo oposto. Carlos Xibiu não podia ver rabo de saia, que a concupisciência lhe vinha à mente, o desejo de fornicar, de levar a cabrocha para a cabeceira do rio, para as sombras das seringueiras e samaumeiras, de mergulhar feito jijú nas águas límpidas do riacho, brincando com a mestiça em alegre folgar, prometer noivado e casamento, externar juras de amor eterno. Era assim o neto de Didi Machado, femeeiro como o boto, que surgia nas noites de lua em busca de companhia feminina e que engravidara quase a metade das mulheres de Tijoca. Pelo menos era o que as mães afirmavam durante as quermesses, para justificarem o bucho grande das filhas. --Foi boto com certeza, dizia convencido o povo da Ilha.

O neto do velho Didi Machado não faltaria à apresentação de mestre Anacleto. Todo o povo acorria para a grande festa, na véspera da procissão de São Sebastião. Todas as moças na idade do homem compareciam ao evento. De certo não faltaria moça bonita para dançar abaixadinha o "Carimbó do Macaco", o "Merengue do Tiriricacá", "Bala de Rifle", além de outras músicas de carimbó, composição de Alírio Pinduca, integrante do conjunto de mestre Anacleto. Carlos Xibiu também não faltaria. Ele comprou uma camisa nova feita pelo alfaiate Euclides, o único que costurava e serzia roupas na Vila. O dinheiro da venda da safra de milho naquele ano rendera o suficiente para o rapaz comprar um buião de vasilina com o qual lambuzou os cabelos e um frasco de patchuli para atrair as meninas, além do olho de boto, patuá inseparável, que Carlos Xibiu usava no bolso da calça de linho branco, benzido por pai Vicente, o que o tornava irresistível a qualquer fêmea. Um verdadeiro "Dom Juan de aldeia", como o acusou anos depois o promotor Paulo Godinho, quando Carlos Xibiu se viu processado no juízo da comarca, acusado do crime de sedução e rapto consensual, cometidos contra a filha de um endinheirado da cidade, que caiu na lábia doce de Xibiu. Bom de bico, o neto de Didi Machado. Como poderia ele faltar a um evento desse, com a presença de todo aquele mulherio carente de homem? Jamais. Carlos Xibiu esperou escurecer e pegou o caminho de Tijoca. A noite estava banhada pelo luar da Amazônia. Os raios argênteos da lua eram filtrados através das copas das árvores, clareando o caminho de chão, como se fosse um imenso farol. Era bom. Assim Carlos Xibiu chegaria com os sapatos vermelhos que mandara comprar pelo barqueiro Dico Lobato, no mercado do Ver-o-peso, em Belém, limpos. Com o luar era maneiro se esquivar das poças de lama do caminho, sempre encharcado pelas chuvas torrenciais de janeiro. No arquipélago Marajoara - como em toda a Amazônia - ocorre um fenômeno interessante: no verão chove todo dia e no inverno chove o dia todo.

A luz da lua brilhava sobre a face calma da água dos igarapés e furos que cortavam os caminhos. Xibiu estava feliz. De certo sairia com alguém da quermesse, dançaria o ritmo quente do carimbó, com uma mestiça, com uma cabocla de sua idade, sairia da festa direto para a cabeceira do rio, onde se ouve apenas o barulho das águas em sua passagem rápida sobre as pedras do riacho. Onde o piar das aves noturnas servem de alento para os ais de amor. Perdido em seus pensamentos, ensimesmado, Carlos Xibiu teve sua atenção despertada para um vulto na penumbra do luar. Era uma mulher formosa que o chamava manhosamente pelo nome. Acenava, sob o clarão da lua e das estrelas que riscam o céu de janeiro. Convidava-o para que ele a seguisse. O caboclo não pôde conter suas pernas. Elas não o obedeciam. Por mais que sua mente ordenasse que suas pernas parassem, que não seguissem mulher tão formosa, antes que ele pudesse ver seu rosto, tocar sua pele e, por fim, se certificasse de que não estava sendo vítima de mundiação, ele não conseguia. Seu cérebro detectou um perfume, doce, embriagador, que emanava daquele corpo jovem, bem perto dele, mas que Xibiu não conseguia tocar. Era um aroma de flores silvestres, uma mistura de fragrâncias. Como se ele tivesse penetrado em um jardim de orquídeas, bromélias, açacuí e flor-amarela. Uma mistura de fragrâncias exóticas penetrou pelos poros da pele, pelas narinas, até chegar ao cérebro do caboclo. Como se aquela mulher misteriosa, magicamente, tivesse destampado um frasco gigante de um aroma misto de flor de ipê, paineira, antúrio e brinco-de-princesa, campânula, flor de maracujá selvagem, mimosa e capucina e de outras flores que brotam no solo úmido da ilha, despertando uma primavera amazônica, embriagando o caboclo, diante de um luar mágico, nunca visto por Carlos Xibiu. Sem que ele ousasse fitar o rosto da mulher, ela o tomou pelas mãos e o conduziu além da orla da floresta, onde não havia mais capoeira nem mata virgem. Mundiação desgraçada. Carlos Xibiu viu a noite transformada em manhã pre-colombiana. Ele passou a caminhar, ao lado da mulher, descalço por dentro de um regato cristalino. Peixes com cores vivas acariciavam os pés da mulher, cuja fragrância, causava inveja às flores mais belas da terra. Orquídeas gigantes formavam um túnel de flores para que ela passasse, conduzindo o caboclo para o seu reino encantado. Depois de caminhar várias horas pelo regato, eles chegaram a uma caverna escondida no fundo da floresta. Não havia mais pássaros nem qualquer espécie animal. Archotes de pedra queimavam betume perenemente, sem qualquer sinal de combustão. Carlos Xibiu vislumbrou as paredes da caverna cobertos de desenhos geométricos, com formas triangulares e de cor vermelha sobre um fundo branco. Miracangüeras guardavam ossos ancestrais, de chefes de uma tribo que habitou há milhares de anos àquela floresta. A entidade, com voz de marulho, explicava para o caboclo, cada figura rupestre, cada alegoria, a história das tribos, nascidas do sêmen de tupã, quando ele habitava a terra, até quando teve que guerrear com anhanga. Atingido por uma seta envenenada com a saliva de sumiri, o gênio do mal, ele teve que refugiar-se no céu, de onde surge todas as manhãs, vestido de luz e calor, a fim de procurar seus guerreiros perdidos na imensidão da floresta.

A mulher permitiu que ele a fitasse e o matuto pôde admirar sua beleza índia. Olhos negros, cabelos lisos e brilhantes. Coberta com uma folha de guarumã, a encantada retirou-a, revelando suas formas de iara, de rainha das matas, de deusa dos rios e da floresta amazônica. Ela deitou o caboclo sobre a folha larga de guarumã, colocou-se ao seu lado e passou a narrar uma estória longa de quando seus antepassados viviam em paz sobre a terra. Carlos Xibiu adormeceu nos braços da iara, num descanço idílico, ouvindo sua voz de marulho e sentindo o perfume suave dos seus cabelos negros e lisos.

Ele não pôde ver o final da festa, a apresentação apoteótica do conjunto de mestre Anacleto, que varou a madrugada e somente parou porque era a hora de começar a procissão. Nesse tempo o padre Osvaldo Lourinho era vivo e conduzia seu rebanho pelas vielas da Vila. Alguns pagavam promessas feitas em momento de precisão. O povo ainda estava combalido de uma noite inteira de devoção ao som dos acordes de mestre Anacleto e do efeito das talagadas de bebida emborcadas alegremente. Mas não se pode faltar à procissão. Toda a Vila marchava contritamente sob a liderança de seu pastor e do próprio São Sebastião, seu protetor, que saía do barracão pelas mãos de Efigênia para subir em seu andor e guiar a fé daquele povo tão necessitado de graça e de proteção contra os males daquelas terras, abandonadas pelo governo e pelos políticos, onde somente um santo feito São Sebastião pode acudir e proteger. Muita gente notou a ausência de Carlos Xibiu à procissão. Zeca Lopes, "Ocivaldo Cotó", "Gringo", "Cabo Tenório", Osvaldo Machado e "Didi Machado", "Sérgio Mortadela" e o mulherio em geral, procuravam no meio do povo o rapaz, estranhamente desaparecido. "Diquinha", mãe de Xibiu, sabia que ele havia saída do arruado para a festa em Tijoca e por isso sua preocupação aumentava. O velho Didi Machado, que mais do que ninguém conhecia o neto, não se preocupou durante a última noite da quermesse. Ele imaginava que o neto estivesse mostrando o riacho para alguma mestiça da Ilha. Porém, quando o padre Osvaldo Lourinho, depois da procissão, consultou seu relógio de algibeira e já batiam três horas da tarde sem que se tivesse notícia do paradeiro de Carlos Xibiu, o velho se preocupou. Foi por ordem dele que um grupo de homens saiu em busca do rapaz desaparecido. Em todos os locais o grupo fez procuração do neto do velho Didi. Só faltava o mangal. Foi para lá que o grupo finalmente rumou. Por volta de cinco horas da tarde, "Zé Prego" avistou um homem deitado no tijuco do mangal, como se estivesse bêbado. Os homens se dirigiram para o local indicado por "Zé Prego". Com a espingarda na mão, "Zé Prego" se aproximou e constatou ser Carlos Xibiu. O rapaz parecia haver despertado de um sono profundo. Sua roupa de festa, em linho bambo estava impregnada de lama do mangal. O chapéu branco de palhinha emporcalhado e os sapatos vermelhos perderam a cor para o tijuco do mangue. Ele teve que ser conduzido pelos homens para o arruado, onde passou três dias sem comer, falando de um mundo distante, onírico, irreal. Pai Vicente, o mais antigo Puçanguara da Vila disse que Carlos Xibiu fora mundiado por uma entidade da floresta. Depois que tornou a si, Carlos Xibiu não fez mais qualquer referência ao fato de haver, sem qualquer explicação, se perdido na mata, que conhecia como a palma de sua mão. Ele mudou bastante depois da noite véspera da procissão de São Sebastião. Ninguém sabe qual a razão, mas na véspera da procissão do santo, Carlos Xibiu veste-se de branco e procura, à meia noite, a orla da floresta onde deposita flores silvestres colhidas no bosque, um frasco de patchuli, pentes, espelhos e adornos de mulher.

A procissão de São Sebastião tem se repetido há muitos anos em Tijoca. Muito tempo depois - mas muito tempo depois mesmo - passaram a chamar de círio e virou atração turística. Colocado no calendário turístico da Paratur, o evento passou a atrair turistas de todo o Brasil e até do exterior. Mas naquele tempo apenas o povo matuto de Tijoca e cercanias participava da festa. Na época em que a mulher cheirosa ainda aparecia para mundiar os rapazes e enciumar as moças. Agora, a lenda da mulher cheirosa vive apenas na memória dos velhos pescadores que a recontam aos seus netos, quando estão na faina diária de retirar puçá com peixe da cabeceira do rio, que anda meio vasqueiro, depois que as companhias de pesca tomaram conta do negócio. A mulher cheirosa virou lenda, estória passada de boca em boca. Uma estória da Amazônia, que habita o coração e a mente do povo que mora nesta imensidão, cada vez mais devastada pela ganância humana.

IVANILDO ALVES
Enviado por IVANILDO ALVES em 03/01/2008
Código do texto: T801915