Ensino noturno 

Depois de algumas aulas pela manhã Márcia pode ir em casa almoçar e dormir um pouco. Ela tinha este prazer nas quartas feiras.  Conseguiu ajustar seu horário este ano para ter uma tarde de folga e uma manhã de sexta feira.  Exatamente nos dois dias que trabalhava a noite em uma comunidade perto de onde morava. Não por ser um esforço muito grande de deslocamento ou intelectual. Longe disso. Era porque o esforço físico e a tensão mental eram constantes. 

Turmas de jovens e adultos que estavam atrasados por vários motivos ou mesmo pela idade. Considerando também que tinha alguns adolescentes que apenas preferiam o ensino noturno. 

Entrava às 18:30h e saia às 22:30h , o que nunca acontecia, os próprios alunos por decisão deles, começavam a ir embora às 21h. 

Ela tinha uma turma que não dava trabalho, eram adultos , moradores da comunidade, escolheram voltar a estudar, usavam regularmente a camiseta do uniforme e prestavam atenção a aula. O ensino era um pouco difícil pela incapacidade intelectual deles  mas além de muito esforçados,  tinha muito orgulho no que faziam. Falar desde modelo de alunos, compenetrados, pontuais e dispostos daria um livro inteiro para Marcia contar. Porém,  infelizmente seu maior desafio eram as suas outras turmas compostas por gente numa faixa etária mais jovem que envolvidos com algum aspecto da criminalidade ou vítimas do meio em que viviam insistiam em estudar. 

Alguns viciados, outros envolvidos com o crime, as jovens com filhos pequenos, outras grávidas, tudo de um pouco tinha.

E era muito difícil manter a ordem em sala de aula pois ora estavam brincando ora estavam brigando.  Mas Márcia sabia controlar e na maioria das vezes conseguia dar aula.  

Marcia mantinha um ritmo lento, facilitava o máximo o entendimento e gostava de ouvir as histórias que os alunos sempre contavam.

Ela lembra sempre de um aluno do semestre anterior que não parava quieto de jeito algum e até os outros percebiam que ele se excedia. Então um aluno chegou para Márcia ensinando  como silenciá-lo.

- Professora ameaça chamar a tia dele, dizendo que a senhora quer ter uma conversa com os pais dele. 

Márcia não sabia que Edgar não era dali, morava agora com a tia, mas antes morava em outra comunidade onde os pais deixavam ele e os irmãos trancados a cadeado o dia inteiro para não irem para rua, enquanto eles trabalhavam. Com fome e muito calor, as crianças sofriam muito. 

Marcia  experimentou

- Edgar, se você não ficar quieto vou pedir para falar com sua tia. Quem sabe uma conversa com sua mãe. 

Naquele instante ele congelou, dos seus olhos brotaram lágrimas e para quem olhasse, da bermuda jeans escorria um filete de urina. Márcia se desesperou com o efeito que provocara no jovem e abaixando a voz disse :  

- Só deixa eu trabalhar. 

Edgar sentou na cadeira e nunca mais incomodou na aula dela.  

Mas tinha fatos engraçados também. Como a necessidade que eles tinham de sair cedo às sextas feiras. 

- Professora, libera mais cedo , hoje tem baile lá na Rocinha e  demora a chegar lá- dizia Alexandre, um jovem de pelo menos 18 anos que chegava na sexta feira todo arrumado. E continuava : - Professora tem que entender, as minas hoje em dia só querem saber de fuzil, se a gente chega tarde no baile só sobra o que ? Os travestis.

Marcia ria e negava

- Fiquem aqui. Minhas meninas não são assim.

- O que professora? Quer que eu prove que elas só gostam de fuzil? 

Alexandre se colocou na frente da sala virado para os colegas e começou:

- Andrezza cadê o pai do teu filho? E a menina respondia :- Bangu 2 

Voltava-se para outra

- Gisele, cadê o pai do seu filho ,a mocinha parecendo bem ingênua apontava para o alto, estava morto. E prosseguia

- Joana cadê o pai do seu filho

- Bangu 6 

Marcia ria e se indignava, sempre que podia dava um trabalho valendo nota para quem fosse terminando saísse cedo.  

Também tinha um aluno que estacionava a bicicleta dentro da sala de aula sem pedir licença. Sempre com os olhos avermelhados não queria a opinião ou permissão de ninguém.

Marcia certa vez elogiou a cor da bicicleta.

- Na madrugada, aqui na favela a senhora consegue uma por 70 reais. Ela não fez nenhum comentário.  Também silenciou-se no dia que deu uma nota boa a este mesmo aluno e ele , feliz disse que a professora ia ganhar uma bicicleta. Marcia assustada, por ser fruto de roubo, comentou com o diretor da escola, que apenas disse:

- Se ele trouxer, você aceita e vai para casa de bicicleta, agradecida. 

Toda aquela inversão de valores estava sendo pesada demais para quem tinha que vivenciar o novo modelo de escola proposto por uma sociedade à beira do caos. 

Porém o que Márcia, a professora de língua portuguesa e que se ajustava a toda aquela situação, nunca esqueceria, foi o dia que um jovem entrou  armado em sua aula e sem se importar com a presença dela foi em direção de uma moça sentada junto à janela, bem jovem, arrumada, com os cabelos compridos e cacheados, ainda molhados da forte chuva que caía naquela noite. Havia nela uma beleza um tanto infantil. 

O jovem armado, ainda pronunciou algumas palavras que Márcia, desesperada não pode ouvir. Ele segurou firmemente nos cabelos da jovem e a jogou no chão puxando ela para fora da sala. Marcia queria impedir, mas a arma assustava. Todos em silêncio, só ecoavam os gritos da jovem, seu apelo, seu medo.E assim ela foi arrastada até fora da escola vista pelos  alunos, professores e o diretor. 

As aulas foram suspensas naquela noite, aos poucos o falatório entre os alunos foi cessando. Os professores partindo em seus carros.

Marcia ficou por muito tempo sentada em sua mesa. Naquele mesmo dia tinha ganhado a tão temida bicicleta vermelha, adquirida por algum roubo e comercializada na favela. 

Não falou com ninguém. Subiu na bicicleta, mochila nas costas, partiu para casa.

Nunca mais viu a jovem dos cabelos cacheados, ninguém falava nada sobre o assunto, só  mais uma perda numa estatística que não existia.

FIM




 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 22/03/2024
Código do texto: T8025299
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