Uma Outra Ótica para Adão e Eva

O professor Rubengard iniciou a palestra com quase uma hora de atraso. Mesmo assim não se desculpou. Não é da sua natureza desculpar-se por nada. Também não é uma pessoa de muitos sorrisos. Com um lenço branco de algodão enxugou o suor da testa. As luzes do ambiente foram parcialmente apagadas e o público de aproximadamente seiscentas pessoas, entre outras orientações, foi convidado a desligar os aparelhos celulares. Sua finíssima apostila foi apoiada num pequeno pedestal de acrílico. Rubengard finalmente iniciou:

- Boa noite senhoras e senhores... Desde os mais remotos tempos, criacionistas e evolucionistas divergem sobre a origem da Humanidade. Os primeiros afirmando que tudo teve início no casal Adão e Eva; e os últimos sobre a teoria de que somos fruto da evolução da espécie. E vocês deveriam estar se perguntando: que evolução?

Divergências à parte - muito além do que se possa questionar sobre a validação de uma ou outra hipótese - acabo me debruçando invariavelmente sobre a análise criacionista, do ponto em que, no mínimo, esta representa para mim uma curiosa parábola. Não, senhores, não é apenas a história de um casal expulso de um paraíso como punição à sua desobediência. Existe um algo mais. Uma consequência mais contundente e mais definitiva que eu, modestamente creio nos afetar até os dias de hoje. Senão, vejamos:

Deus alocou o Homem na Terra, e nesta a providência de tudo o que necessitasse. E a harmonia desejada se equilibrava numa balança onde o Homem não deveria ser melhor ou pior que a natureza; mas fazer parte dela. E sua existência consistia tão somente em desfrutá-la, como faz qualquer outro animal que convencionamos chamar selvagem. Éramos seres perfeitos, criados como imagem e perfeição de Deus. Portanto, plenamente saudáveis, não conhecíamos as doenças. Abra-se o parêntese de que a natureza não é "boazinha". Há um equilíbrio harmonioso que compreende certas peculiaridades básicas de sobrevivência, o que redunda na chamada cadeia alimentar. Por isso, não há vilões ou mocinhos na natureza, senhores. Não há porque amar as zebras e demonizar os leões; ainda que alguns pseudo-documentários desejem provar o contrário, não existem "mocinhos" búfalos contra "vilões" crocodilos.

Então o cenário era esse: estava tudo à mão. Pegasse o Homem o que fosse preciso. Andasse nu sem que isso o escandalizasse. Povoasse a Terra, ora chamada de paraíso, por que nessa época não existiam motocicletas. E tudo estaria dentro dos conformes, dentro dos planos de Deus.

Algo a que mais tarde aludiu o mestre Jesus, quando nos lembrou: "Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo o que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário?

Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas?

E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura? [A título de curiosidade, segam com S é sinônimo de colher. E côvado uma unidade de medida do antigo Oriente, que equivale a mais ou menos 45 cm].

E, quanto ao vestuário, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam;

E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.

Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé?

Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos?

Porque todas estas coisas os gentios procuram. Decerto vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas;

Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.

Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal." [Mateus 6:25-34].

E é nessa linha de raciocínio que quando Eva foi interpelada pela serpente e instigada a provar do fruto proibido, negligenciou a subordinação à suprema inteligência criadora. E seduziu Adão a cometer o mesmo erro. Dessa forma, uma outra realidade foi descortinada: perceberam-se nus, e trataram de cobrir as genitálias. A relação sexual deixava de ser mero mecanismo de reprodução, como ainda o é, até hoje, para todos os outros animais. Daí em diante rompeu-se a comunhão com a natureza; eram melhores que ela, estavam acima dos outros seres vivos por terem adquirido consciência de sua própria existência. E, ao se apartarem da natureza, também, paulatinamente, de geração à geração, o Homem foi se afastando de Deus. Por que o que mais representa tão perfeitamente o equilíbrio, a beleza e força criadora e reparadora de Deus do que a natureza como a conhecemos? O pacto entre criador e criatura foi rompido. O mesmo pacto que faz, por exemplo, os pássaros cantarem todas as manhãs ainda que cientes de toda a batalha pela sobrevivência que terão que enfrentar no decorrer de um dia inteiro. E igualmente no dia seguinte. E no outro. E no outro.

Afastados que estamos da natureza nos consideramos seres supremos dentre os reinos animal, vegetal e mineral. No entanto, o Deus que habita dentro de nós - por alguns chamado de consciência, por outros de essência humana, e por outros ainda de Espírito Santo - cobra esse distanciamento. Não caminhamos para a completude, num sentido único. Uma parte de nós se contorce diante dessa negação. Uma parte quer ir para um lado; a outra para outro. Então sofremos. Então reclamamos, então adoecemos. E o planeta adoece junto, por que só vemos sentido na acumulação, nas soluções fáceis e nos prazeres efêmeros. E tentamos embrulhar os rios, quando não tentamos desviar o seu curso. E lançamos cloreto de sódio às nuvens, na tentativa de se fazer chover. E vamos criando, a nosso bel prazer, soluções inócuas para problemas que não deveriam existir. Acostumando-nos ao paliativo. Se o calor nos traz agonia, fazemos uso da "maçã ar condicionado". Se precisamos alçar qualquer mínimo patamar superior, a "maçã escada rolante". Se a solidão nos ameaça, a "maçã do consumo", ou a "maçã das redes sociais".

E uma praia paradisíaca não nos basta sem a "maçã da caixa de som". Por que o silêncio nos atormenta quando nossa própria companhia se tornou insuportável. E adentramos às veredas dos novos sabores e dos novos aromas, tentando calar um vazio que não pode ser preenchido.

E desse modo - apesar de criacionistas e evolucionistas se perderem em algum momento de sua argumentação - o que nos tornamos reforça, de uma maneira mais satisfatória, a hipótese criacionista do pecado original. Por que do outro lado, a ciência nos oferece o Australopithecus, o Homu Erectus, ou o Neanderthal; a quem não podemos culpar de nada, do ponto em que se resumem apenas a supostas etapas de uma evolução questionável. Perguntas?

O professor permaneceu disponível no auditório, em frente ao microfone, para que a platéia, composta por religiosos, cientistas, filósofos, historiadores e público geral pudesse interpelá-lo a cerca de sua excêntrica teoria. Auxiliares percorria os corredores alcançando mãos ávidas por questionamentos. O primeiro contemplado foi um rapaz jovem, de vasta cabeleira e óculos redondos. Levantando-se, perguntou sorrindo:

- Por que o senhor chegou tão atrasado?

Os outros - seriam cinco perguntas no total - devolveram os seus microfones, deixando claro que desejavam fazer a mesma pergunta.