UM CACHORRO MEDROSO

Eu jamais imaginei que fosse encontrar um cachorro com tanto medo. Eu já tinha lidado com cachorros agressivos, mas era a primeira vez que eu pegaria um cachorro medroso. Eu já sabia de antemão qual seria o caso. A dona me procurou numa noite e parecia aflita:

- Eu não sei mais o que fazer. Dois adestradores disseram que meu cachorro não teria jeito.

Aquilo me assustou. Eu havia sido recomendado por uma cliente minha.

- Ela disse que você tinha o dom para lidar com os cachorros.

- Olha, dona…como é mesmo seu nome?

- Gertrudes

- Então, dona Gertrudes. Eu posso ir conhecer o cachorro, mas não garanto nada porque nunca trabalhei com cachorros medrosos, só agressivos.

- Tudo bem, mas quero tentar. Você foi muito bem recomendado.

Eu estava começando a trabalhar com cachorros e as pessoas estavam confiando no meu trabalho, a ponto de me indicarem.

Pois bem. Marcamos uma noite e eu fui conhecer o cachorro.

Para não assustá-lo não olhei diretamente para ele, mas percebi que era um cachorro grande, de pêlos negros, sem uma raça definida e que me olhava com curiosidade enquanto eu conversava com dona Gertrudes:

- É a primeira vez que toca a campainha e ele não foge lá pra cima.

- Então vamos continuar conversando como se nada estivesse acontecendo.

Ficamos conversando mais alguns minutos.

- Agora vou me aproximar dele.

Com toda calma, me sentei numa poltrona ao seu lado. O cachorro continuou me olhando, ainda sentado.

Fingi que estava vendo televisão. Depois de um tempo, me sentei no chão. Ele continuou imóvel. Aos poucos, fui me aproximando. Aí com um sorriso amistoso, aproximei a minha mão e o toquei. Ele ficou relaxado. Dei outro toque. A mesma reação. Então o acariciei levemente na cabeça perto da orelha.

Dona Gertrudes estava embasbacada:

- Ele nunca deixou ninguém tocar nele.

- Mas ele gostou de mim, não gostou, Brand?

Brand era o nome do cachorro. Fiz mais um carinho. Aos poucos, me levantei.

- Agora vem a parte mais difícil. Vou levar o Brand pra passear…

Antes pedi que fechasse a porta que dava acesso a escada para que ele não fugisse lá pra cima.

Quando peguei a guia, Brand se levantou e tentou fugir. Fui atrás dele e ficamos dando voltas em torno da mesa de jantar.

- Fica quieto, Brand!- dona Gertrudes gritou.

- Por favor, não diga nada. Eu quero que ele se canse e desista de fugir.

Dei umas trinta voltas em torno da mesa. Brand parecia que não iria parar nunca. Eu percebi que aquele cachorro não cederia tão facilmente. Foi quando decidi que não poderíamos ficar naquele jogo a noite inteira. Então, eu o encurralei num canto e consegui colocar a guia.

Brand foi facilmente até a porta da sala, mas quando viu que minha intenção era levá-lo para fora da casa, simplesmente se sentou.

Puxei-o com delicadeza, mas ele permaneceu firme. Brand era um cachorro muito forte. E teimoso. Muito teimoso.

Eu simplesmente tive que arrastá-lo sentado pelo quintal afora até o portão. Tudo sob o olhar preocupado de Dona Gertrudes.

Na rua, ele deu alguns passos e do nada começou a fazer o maior carnaval. Ele pulava, se enroscava na guia, gritava, uivava…

Fiquei assustado com aquela reação, mas me controlei. Decidi caminhar com ele assim mesmo. Eu me preocupei em erguer a guia para mostrar que eu não estava fazendo nada com o cachorro. Pelo jeito que ele estava gritando, parecia que eu estava matando o bicho.

Eu já fiz milhares de passeios com cães, mas aquele passeio até agora foi o mais difícil de todos. Não durou nem quinze minutos, mas voltei exaurido. Emocionalmente exaurido. Mas houve um ponto positivo: Brand não correu para dentro de casa. Ele ficou me olhando enquanto conversava com dona Gertrudes no portão.

- Eu nunca vi um caso como este. Ele ficou o tempo inteiro resistindo. E ainda gritando como um louco.- eu disse.

- Mas você vê alguma esperança? Você acha que ele pode mudar?

- Eu não sei. Eu vou fazer o meu melhor, mas não garanto nada. Eu também posso fracassar como os outros dois adestradores.

Senti o olhar de Dona Gertrudes se apagando aos poucos.

- Não sei porque fui adotar o Brand. Tudo porque meu outro cachorro morreu. Eu devia saber que nenhum cachorro ia ser igual ao meu Max.

- Tenho certeza que o Max era um cachorro especial.

- Ele era!

- Mas o Brand também é. É só superar este problema.

Dona Gertrudes se despediu de mim com um olhar de desânimo. Brand ainda me deu uma olhada antes de se virar e entrar.

Eu só tinha as noites para trabalhar com Brand. Fui várias noites. E o padrão se repetia: fuga, captura, ida à força até a rua e escândalo durante o passeio.

Depois de algumas noites, dona Gertrudes me chamou:

- Não precisa mais vir, Paulo. Este cachorro não tem mais jeito. Não perca mais seu tempo com ele.

- Mas eu quero tentar mais algumas vezes. Se for pelo valor dos meus serviços…

- Não é por isso. Você tem um preço ótimo. Mas é pra você não perder seu tempo. Este cachorro nunca vai ser igual o meu Max.

- Com certeza, ele não vai ser porque o Max era único.

- Sim. Era mesmo.

- Tenho certeza disso. Mas o Brand também é. E eu também tenho certeza disso.

Dona Gertrudes suspirou:

- Tudo bem. Você que sabe. Mas vou entender se você quiser desistir.

- Eu não vou desistir.

Ela entrou com Brand. Eu ainda fiquei um tempo pensativo. Na verdade, eu não tinha certeza de nada. Ou melhor, tinha uma única: eu não iria desistir.

Na noite seguinte, Brand teve que ser arrastado como sempre, mas aconteceu algo inédito: durante uns três quarteirões, ele não fez escândalo. Mas no quarto quarteirão, ele voltou a gritar e a se contorcer na guia.

Até que numa noite, chegamos numa imensa ladeira. Antes que ele fizesse um escândalo e travasse, puxei Brand pela guia e descemos ladeira abaixo em alta velocidade.

Quando chegamos no final, Brand se transformou num outro cachorro. Estava esfuziante. Pulava, mas de alegria. Subimos até o topo da ladeira novamente. Desta vez, foi Brand que me arrastou até o alto. Voltamos a correr ladeira abaixo. E repetimos umas três vezes até eu cair exausto.

Sentei na beira da calçada e fiquei olhando para Brand. Havia brilho no seu olhar. Senti uma estranha emoção: vontade de rir, vontade de chorar. Tudo ao mesmo tempo, mas tudo que fiz, foi acariciar aquele cão de pêlos negros e brilhantes:

- Ótimo trabalho, garoto. Você venceu!

Sim, ele tinha vencido o medo e o desconhecido e estava pronto para ter uma vida nova e feliz.

Brand voltou correndo para casa, como se tivesse sido tomado de uma súbita alegria que ele nunca havia experimentado.

Entrou também correndo para tomar água.

Dona Gertrudes notou a diferença e me olhou espantada. Contei o que tinha acontecido. O seu olhar se encheu de esperança e pela primeira vez, ela também sorriu de alegria.

Na noite seguinte, aconteceu algo surpreendente: Brand veio correndo da casa para me receber, aceitou a guia tranquilamente e saiu sem fazer escândalo. Levei-o novamente na ladeira. E subimos e descemos algumas vezes.

Depois disso, Brand nunca mais fez qualquer escândalo e nunca mais fugiu de mim. Aceitou passear todos os dias. Foi até no parque de cães! Fez amizades. E se tornou um cachorro companheiro e amoroso, como são todos os cachorros. Até perguntaram pra dona Gertrudes quem foi o santo que fez aquele milagre com o Brand e ela me contou esta história dando risada.

E a partir daquele dia, Dona Gertrudes conseguiu ver que, por detrás daquela armadura de medo que encobria o verdadeiro Brand, havia um cachorro único e maravilhoso.

Paulo Mohylovski
Enviado por Paulo Mohylovski em 24/03/2024
Reeditado em 24/03/2024
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