OTTO

O domingo em São Paulo é tranquilo, situação atípica. Para se ter uma ideia, é possível ouvir os pássaros e não buzinas. Moro no edifício Benedito Ferreira, esquina da rua São Carlos com a Alameda Campinas. Durante a semana, o fluxo de pessoas e carros é intenso, uma balbúrdia. Mas hoje é dia de aproveitar a dormência da metrópole para passear. O prédio fica a cem metros da Avenida Paulista, a via mais famosa de São Paulo, dá para acreditar? A prefeitura interdita a avenida das oito às dezoito horas. Os paulistanos aproveitam para caminhar, andar de bicicleta, skate, fazer teatro ao ar livre, flertar, ou apenas se entregar ao ócio. Depois de uma semana de lida, nada mais justo.

Apesar de tudo, o chato é esperar alguma alma generosa me ajudar a chegar na avenida. Quem quer ajudar um gordo cadeirante? Eu consigo me locomover até lá, mas a fibromialgia está piorando. Doí muito os meus pulsos e cotovelos. Às vezes, não dói nada, agradeço a Deus por isso. Hoje está doendo, e olha que nem encostei nas rodas. É, acho que estou ficando velho!

O Plínio, porteiro, sempre oferece ajuda, mas eu não gosto de incomodá-lo. Certa vez ele me deixou na esquina da Paulista, só isso, foi rapidinho. Entretanto, os moradores arrumaram uma baita confusão por causa de sua ausência por dez minutos. Ele ajudou um aleijado e quase perdeu o emprego. Que mundo é esse? Depois desse episódio, eu não aceitei mais a ajuda do nobre Plínio. Ele entendeu e está tudo bem.

— O senhor precisa de ajuda? — um homem alto e magricela está me fitando.

— Aonde o senhor vai?

— Vou à igreja São Luís Gonzaga que fica na esquina da Paulista com a Bela Cintra.

— O quê? — respondeu o magricela.

— Vou à igreja São Luís Gonzaga, ali na Paulista — Estou beirando os sessenta e minha voz está cada vez mais murcha. Muitos não me escutam, e tenho que falar mais alto, isso me irrita. Eu preciso ir à igreja mesmo! Aproveito para pedir a Deus que devolva os movimentos das minhas pernas. Sempre suplico isso a Ele, mas até agora não fui atendido. O único culpado dessa desgraça sou eu, não devia ter dado a chance para aquele homem mau me castigar. A escolha foi minha e a consequência vem no pacote. Aqui estou: velho, pesando uma tonelada e aleijado. Uma coisa eu tenho que admitir, a minha cadeira de rodas é muito resistente.

— Certo, vou deixar o senhor no MASP, pode ser? — Disse o homem curvando seu corpo como minhoca.

— Claro, vai me ajudar muito! — E lá vamos nós para mais uma jornada. Chegando ao Masp, precisarei da ajuda de outra alma benfeitora. Estou acostumado com a assistência parcelada dos paulistanos. Um passo de cada vez, nãaaoo! ...um trecho de cada vez, assim ficou melhor.

— Qual é o nome do senhor?

— Otto. E o seu? — olhei de soslaio, mas só vi o braço do rapaz...

— Juca, moro perto do terminal Tietê e vim passear na avenida.

O rapaz tomou um banho de perfume, aquele com fragrância de maconha, não me recordo o nome. As menininhas gostam de um rapaz perfumado.

A geração atual criou um novo idioma. Eu não entendo o que eles dizem: “mano, parça, sumemo...” E as músicas, nesse quesito a coisa fica feia. As letras não fazem sentido algum. Sinceramente, o sujeito que compõem aquilo é ninfomaníaco, só pode ser! “Encosta a bunda no chão, chão, chão.... Agora sobe, sobe, e sobe....” isso é degradação cultural. Que saudades do Toquinho!

Inesperadamente a cadeira parou — Juca, tudo bem? Juca...? —... mais um abandono. Já me acostumei: o sujeito me empurra até um ponto e desaparece para sempre. Não foi a primeira vez e nem será a última. Pelo menos estou perto do MASP. Vou empurrando por conta. Pode atacar fibromialgia desgraçada, não vai me vencer. Não mesmo!

Tem música boa ali. Esses momentos me transformam numa serpente encantada pela flauta. Não acredito, canção de qualidade: repente! Eu adoro o improviso, o cabra tem que ser bom para compor, e aposto que não é ninfomaníaco... Mais um pouquinho e chego lá!

“O rico é quem come tudo

Tudo que quer ele come

Mas o pobre que trabalha

Ganha pouco e passa fome...”

Isso sim é música que se preze, não aquela coisa: “chão, chão...bunda, bunda... sobe, sobe...”. Os nordestinos são bons para retratar a nossa realidade, vislumbram o cotidiano como ninguém. Poucos, infelizmente, prestam atenção nos artistas do improviso, tampouco os ajudam com míseras moedas.

Estou na ciclovia e nem percebi. A música me distraiu. Vou sair logo daqui, duas bicicletas já lamberam a cadeira. Um acidente no meio do povão não é uma boa ideia. As minhas forças estão acabando, os meus pulsos e cotovelos vão explodir. Vou encostar na banca e esperar ajuda...

O avião parece emergir de dentro do prédio espelhado. Nossa, isso é lindo. Uma imagem para guardar na memória. São momentos como esse que salvam uma porcaria de dia. Queria estar dentro daquele avião! Ahhh! Como eu queria, é bem provável que eu não caberia entre as poltronas. Os meus quilogramas aumentam a cada mês, não consigo controlar a dieta. Aliás, acho que o meu refúgio é comer, comer, comer.... Não é à toa que as rodas estão rangendo. Duas nádegas imensas aproveitando a gravidade para esmagar as rodinhas. Se a cadeira quebrar, estarei com sérios problemas.

“Paaahhhhhhhhhhh! Bruummmm!Taaaahhaaa!”.

— Acho.... Eu.... Alguém....

— ... senhor, está me ouvindo? Senhor, acorda! Está tudo bem?

— Ohhh! Quem é você, rapaz? Minha cabeça está doendo muito. Você tem um pouco d’água?

— Eu tenho, mas antes vou desprender a bicicleta da cadeira. Talvez doa um pouquinho....

— A minha cabeça... E esse sangue na minha camisa? — O desgraçado me atropelou com sua maldita bicicleta. Acho que o guidão acertou minha têmpora. Quanto sangue. Que dor de cabeça insuportável! Tem uma multidão enorme por aqui. Cadê o louco da bicicleta com a minha água? Que sede desgraçada!

— O senhor está bem? Eu trouxe um pano para limpá-lo, posso? — Que mulher enorme, tem duas vezes o meu tamanho. Acho que sua compaixão é grande também.

— Pode sim, por favor! Você tem água?

— Tenho sim! — A gigante me deu água. Que vontade de dar um beijo nela. Olhando bem, o seu rosto é lindo. Peculiaridades da aparência: face angelical e uma soberba lipídica que desenha o resto do corpo. Aiiiii! Minha cabeça!

— Aonde o senhor está indo?

— Na igreja São Luís Gonzaga lá na frente! — Ela vai empurrar minha cadeira? Queira Deus que sim, estou cansado. Até parece que corri uma maratona. Sou um aleijado que faz troça da própria deficiência... Quer saber? Foda-se!

— Eu levo o senhor lá! Mas antes não quer fazer um curativo em sua cabeça?

Óh! Grande mulher, como és gentil! — Obrigado moça! Não precisa, sou um veterano do exército, estou habituado com a dor. Afinal, não é um ferimento na cabeça que vai me aleijar! — Ela está sorrindo, ficou mais bonita ainda! Não vou perguntar o nome dela, sem cordialidades. Não é o momento. Apenas quero chegar na igreja, quero também que os meus pulsos e a minha cabeça gorda parem de doer. Cadê aquele ciclista desgraçado?

— O senhor tem um ótimo senso de humor! — Leve-me à igreja querida, leve-me...

— A cadeira do Senhor está rangendo. É normal? — Olha, eu não tinha percebido o barulho porque o falatório do povo se sobressai, mas ela escutou o rangido da cadeira. Estou apaixonado!

— É sim, um pouco de graxa resolve! — Os olhares de piedade estão me devorando. Vão todos à merda. Afinal, não é todo dia que se encontra um cadeirante ensanguentado, não é mesmo? Não posso deixar isso mudar o meu foco: a igreja. Olha ela lá!

Fico impressionado com as colunas frontais, os vitrais, tudo! Nossa, esse lugar é lindo. Só mais um pouco e estarei lá. O acidente me deixou com raiva da multidão. Eu sei que eles não têm culpa, mas estou com raiva. É isso! O ciclista, esse eu queria socá-lo. Ahhh! Como eu queria!

— Chegamos! Vou subir a rampa com o senhor, tudo bem?

— Claro, obrigado! — Estou ouvindo o coral cantando Ave Maria. Uau!

— Foi um prazer, agora vou embora.

— Obrigado querida, vá com Deus! — Lá se vai minha ajuda, sem ao menos me dar um beijo. Esquece! Foco... O coral é maravilhoso e tem poucas pessoas aqui dentro. A dor de cabeça está piorando... Eu...Ach...Ãhh...

... que sono!

... tirei um cochilo no corredor da igreja? Meu Deus!... As dores de cabeça e nas articulações... sumiram. Que alívio!... Cadê todo mundo? Onde eu deixei minha cadeira?

Uma paz inexplicável me possui, nunca cheguei a esse estado de espírito. É maravilhoso! As pessoas do coral estão me olhando, o maestro está me chamando. O que está acontecendo?... Minhas pernas, estou mexendo as minhas pernas, ...HAHAHAHAHAHAHA!... Estou em pé... HAHAHAHAHA!....

Um passo, dois, três... siga em frente Otto... ex-aleijado.... UHULLL! O maestro está me chamando. Estão cantando AVE MARIA, que lindo....

Obrigado Deus! HAHAHA!

Rivaldo Ferreira
Enviado por Rivaldo Ferreira em 25/03/2024
Reeditado em 26/03/2024
Código do texto: T8027472
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