O sorriso do palhaço

O sorriso do palhaço

A pequena menina de apenas oito anos, que já perambulava pelas ruas desde os cinco, após ter sido abandonada pela sua mãe, que consumia drogas e se prostituía pelas vielas sujas do gueto, continuava com a dura vida de pedinte nos sinais para poder sobreviver. Apesar de pequena, estava abaixo da média de peso e altura para a sua idade, provocada pela desnutrição, tinha uma singular beleza que a diferenciava das demais crianças que pediam naquela área.

Era uma criança iluminada pela luz da natureza e mesmo com apenas oito anos, conseguia driblar as dificuldades que se apresentavam a cada dia, principalmente o dos pedófilos que a convidavam para praticar atos libidinosos e consumir drogas. Quando aconteciam os convites, ela esperava o cair da noite e fazia uma longa caminhada durante toda a madrugada, mudando-se para um novo sinal num bairro distante.

Os anos se passavam e a medida que o seu corpo de criança tomava formas de adolescente, o assédio aumentava, ficando cada vez mais difícil escapar dos locais onde estava pedindo. Foi ai que surgiu a idéia de se transformar num menino. Ela pegou uma velha bolsa que carregava com ela a muito tempo, onde guardava os seus pertences, alguns doados por transeuntes nos sinais por onde andou e outros colhidos em latas de lixo pelas ruas da cidade. A única coisa que fora lhe dado verdadeiramente pela família, foi um enferrujado brinquinho de bijuteria, que ela tirou e guardou em uma caixinha de fósforos. Pegou uma tesoura quebrada e cega e cortou os seus belos, porém, maltratados, cabelos cacheados, iniciando a transformação. Procurou dentro da bolsa um calção e trocou pela saia justa que vestia com orgulho e começou a treinar uma voz mais grossa, adaptando-se ao seu novo papel. Agora a menina se chamava José. Colocou a mochila nas costas e partiu para mais um dia de pedinte. Os pés já não pareciam de criança, bastante calejado das andanças pelas ruas. Tudo o que arrecadava só dava para comer.

Num dia ensolarado, entre uma esmola e outra, o agora José, viu passar em sua frente as carretas de um grande circo que chegava a cidade para uma temporada. Mesmo com a concorrência da fome, o espírito de criança fez com que abandonasse o seu ponto no sinal e seguisse a pé, acompanhando os malabaristas, os palhaços e os bichos. O cansaço e as bolhas nos pés passavam despercebidos. O brilho nos olhos era maior que a dor

Após alguns quilômetros percorridos, finalmente o circo chega ao local onde seria armado. Enquanto os trabalhadores montavam a estrutura, o agora José, observava estático todo aquele movimento. Nunca havia visto nada parecido, nem mesmo em revistas ou jornais. Elefantes, leões, girafas, camelos, ursos, entre outros de menor porte. Era tudo novo, era tudo um sonho de criança.

No terceiro dia, quando prestava atenção na rotina do circo pelo lado de fora das grades, sua presença foi percebida por um velho palhaço que se maquiava para o espetáculo da tarde. Ele se encantou com aquele olhar inocente que parecia precisar de ajuda.

- Como é o seu nome garoto? – perguntou o palhaço com voz de palhaço.

A menina que já se acostumara a omitir a sua verdadeira identidade, respondeu:

- José.

O palhaço então, se inebriou com aquela voz sublime de criança e mandou que abrissem o portão para que ela entrasse.

Quando percebeu que José estava com fome e sujo, pediu que lhe trouxessem uma boa comida. O palhaço observava a distância a forma animalesca de como a criança se alimentava. Com as mãos e com rapidez, ficando evidente que já não se alimentava por alguns dias. Após o termino da refeição, o velho palhaço pediu que levassem o garoto até o banheiro e lhe dessem roupas limpas. Foi nesse momento que surgiu o grande drama da criança; revelar sua verdadeira identidade para aquele velho palhaço que havia sido tão generoso com ela e perder a sua simpatia ou continuar mentindo e aceitar as roupas de menino, mantendo vivo o sonho de assistir um espetáculo. Enquanto pensava, pegou dentro de sua velha bolsa os enferrujados brincos que provavelmente foram dados pela sua mãe e os recolocou na orelha que ainda permaneciam furadas. Foi ai o fiel da balança para a sua decisão. Vestiu a sua velha e suja saia de menina e foi até onde estava o velho palhaço.

- Seu palhaço, eu queria lhe pedir desculpas por ter mentido para o senhor. Meu nome não é José e eu não sou um menino. Sou uma menina.

Apesar da surpresa o velho palhaço caiu numa gostosa gargalhada e conseguiu dizer sorrindo:

- Você conseguiu me enganar direitinho e ainda me fez sorrir. Você será uma grande palhaça.

Naquele dia iluminado, a criança Isadora, vestida com lindas roupas de menina, assistiu da primeira fila o espetáculo das cinco daquele Domingo e, hoje aos 12 anos faz dupla com o velho palhaço Zezé, o dono do circo.