Gardênia

(Continuação do conto "Caleidoscópio")

A cena era parecida com a que vira num filme um tempo atrás. Almodóvar, pensou. Não tinha certeza. Lembrava-se da praça mais do que do resto da mulher. Assim que entrou no quarto escuro procurou as persianas. O basculante da janela, entreaberto, fazia com que as fitas tremessem num ritmo sereno e agudo. Olhou para o peito. A camisa molhada de suor sob as axilas. Viu seu coração, sentiu ele, no mesmo ritmo das fitas da persiana. Sentou-se na cama, tirou a camisa e os sapatos. Caiu repentinamente, e abriu os braços, e olhou fixamente para o teto, e encontrou memórias. Lembrou que não se sentava na poltrona da sala já faziam meses. Riu-se.

Estava angustiado com aquela mulher, e muito mais com aquela praça. Ali fora onde conheceu, por entre margaridas, rosas e até bromélias, sua Gardênia. Tentava chorar e não conseguia, tentava sorrir mas não achava graça, queria o escuro. A claridade do dia, opunha-se a angústia seca que devorava seu interior. Do lado de fora o céu parecia ter trocado de lugar com o mar, era azul, era céu de praça de domingo, de pedido de casamento. Lembrou de quando fizera ele, seu pedido.

- Sim! – Ela respondeu.

- O sol no céu, e esse que arde em meu peito serão testemunhas nossas, meu amor. – Ele disse.

(Um abraço eterno)

- Somos eternos. – Pensaram.

Sorriu novamente. Agora já estava de frente ao espelho. Se enxergava naquele reflexo ainda fúnebre. Era verde sua camisa sob a cama. A bermuda colorida – por ela – não tinha nada senão a avidez do brilho do sol, do arco-íris. Mesmo assim seus olhos eram luto. Naquela manhã de sol sem nuvens fora a praça, reencontrou alguns sonhos, esqueceu outros poucos, encontrou uma jovem. Pensou-a com 25 anos, estudante, bela, solteira, mulher. Tinha cara de julho, leão? Não. A moça era virgem, de agosto. Não era estudante, era formada, e já passava dos 30. Sempre diziam que parecia ter menos. Talvez não pelo corpo, pelo rosto, mas pelos olhos. Eram olhos de sementes, olhos de desabrochar, olhos de menina encantada, curiosa.

Mal percebeu ele quando caminhou do quarto à cozinha e debruçou-se sobre a janela. Do bolso tirou o isqueiro. Não tinha cigarros. Ficou brincando de fazer e desfazer a chama. Doía tanto aquela mulher, aquela praça em seu coração. Ali conhecera Gardênia, ali disse a ela que casariam, ali acredita que ela morava. Não podia crer que ali nascera o fim de suas lembranças, dele e de Gardênia. Aquela mulher fez seu coração palpitar diferente. Não disse seu nome, não deu teu cheiro, deu apenas os olhos de sementes, rapidamente. E um sorriso de luz que aparece por entre a nebulosidade. Como eram belas, aquela mulher e Gardênia. Sussurrou várias vezes, como se procurasse algo.

- Gardênia? Gardênia? Gardênia?

Riu-se de novo. Parecia ter encontrado o que procurava: Gardênia. Estava feliz? Pois estava. Olhou para suas mãos, viu as dela. Colocou a cabeça um pouco pra fora da janela. No pátio do prédio, meninos correndo e pulando, pareciam um só sorriso. Viu o sorriso dela. Respirou fundo, o ar limpou-lhe as ventas. Trouxe o perfume dela. Pensou alto. Sussurrou como se tivesse medo de dividir aquela dádiva com outra pessoa ali. Estava sozinho em casa.

- Minha angústia é só por não entender que sempre que na vida alguma coisa mágica me acontecer, lá estará você, sempre, minha Gardênia.

Os olhos dele eram tão poucos pra tanta luz. Lembrou-se dos olhos da mulher. Como não percebera? Eram castanhas tão lindas, tão vivas. Os de Gardênia eram azuis como o mar, como o céu da praça que chamou ele naquela manhã.

- Ah, Gardênia. Teus olhos moram no céu agora. E hoje tu me chamaste pro nosso, nossa praça. – Sorriu com pura felicidade.

Ela o chamou naquela praça, naquela manhã. Ainda era tudo deles. O mundo inteiro, cada coisa bela e mágica ainda era daqueles dois. Até os olhos daquela mulher. Não haveria estação final na viagem deles. Não enquanto o sol fosse capaz de brilhar num céu sem nuvens. Não enquanto sorrisos e praças fossem capaz de avivar a luz de uma saudade sem fim. Andou devagar, mas sem hesitar, sentou na poltrona da sala. Olhou em volta, sorriu por um tempo. Dali em diante, até o fim de seus dias, ele só dormiu ali.