O amor em três dimensões

"Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã , pois o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo.

A cada dia basta o seu mal" (Mt 6,34)

Quando a porta se abriu, um clarão entrou no quarto de maneira forte, invadindo todos os cantos, palmo a palmo. Iluminou a cama vazia, sem o travesseiro, sem o colchão, solitária. Clareou também aquele ser inocente. Nada mais havia no quarto, a não ser as duas, sozinhas e a mulher estava entregue a si mesma e a ninguém mais. As mãos vazias, o olhar vazio, a pele envelhecida, o corpo verticalmente vivo, somente vivo.

Quando ela era mais jovem, bem casada, com seus filhos ao alcance das vistas e das mãos, a sua vida tinha um sentido único: amar seu esposo e seus rebentos, com graça, com luz, com super dedicação. Soube cria-los, à sua maneira, com suas rezas, com seus beijos, com sua voz de mãe, com seu jeito peculiar, com seus ditados, com seu sorriso, com o ar sempre alegre. A luz que entrou misturou-se à outra que vinha da pequena janela, mas ela não reparou bem naquela suposta mudança, e nem sequer sorriso brotou dos lábios, nem seus olhos relampejaram claridade e sequer suas mãos voluntariamente estenderam-se ao encontro do filho mais novo. O que estava fazendo, continuou. Ignorou presença, ignorou ausência, não deu conta de nada. Rancor, raiva, desgosto, junção de tudo?

O filho lembrou que ela tinha disso, pois além dos sorrisos, das amabilidades, também tinha um gênio forte, um jeito de desprezar os outros, matar na unha, como ela costumava dizer. Quem pisasse nos calos dela, bem que não revidava, mas dava de ombros e esquecia aquele ou aquela pelo resto da vida, mudava de calçada, simplesmente ignorava a existência daquela pessoa.

Ele recuou um pouco. À primeira vista assustado com a situação da mãe, lembrando do último instante que teve com ela: dos três casamentos que não deram certo em que ela se desgostou, da desistência de ser padre em que ela chorou pelos cantos porque queria tanto vê-lo sacerdote, era seu sonho católico mais fervoroso.

Ela de costa estava e assim ficou. O filho sem palavras, a mãe sem presença. Ambos permaneceram assim por bom tempo. Os cabelos grisalhos da mãe já douravam a cabeça, ornavam-lhe de anos bem vividos. O corpo esquálido dentro do vestido ainda era forte, apesar dos anos, da queda que sofrera tempos longínquos e que no cotovelo esquerdo via-se ainda a marca da cirurgia. Se porventura palavras fossem ditas, de consolo, de carinho, de exatidão, certamente ela não daria conta e nem sequer pestanejaria a qualquer timbre de voz. Absorvida, então, pelos tempos, pela longitude dos anos, da vida bem vivida, não repararia em detalhes nenhum, em olhares nenhum e certamente em claridade nenhuma. Presença de filho, ausência de emoção. Sequer lágrimas, sequer sorrisos, sequer palavras vindo dela.

O filho mais novo não sabia o que fazer: se corria para abraça-¬la, beijá-la, estreitá-la no peito e sentir aquele corpo materno ou se ficava ali parado, longe de qualquer emoção. Atentou para o fato do provável repúdio, da frieza da mãe e ficou assim remoendo sentimentos, ali parado, recostado na porta, sem ação. Olhava para a mãe com os olhos envolvidos numa tênue camada de lágrimas, com o coração a palpitar e as mãos trêmulas. Viu sua mãe movimentar-se para o lado, como se buscasse algo que estava na parede dependurado. Achou que ela vinha ao seu encontro, mas não veio. Passou-lhe pela cabeça a lembrança das imagens do Coração de Jesus e da Virgem Maria dependurados na sala do santo, quando sua mãe costumava espaná-los todos os dias, num carinho extremo. Os quadros eram a simbologia perfeita da união matrimonial. Eles acompanhavam a trajetória árdua ou leve, imperfeita ou perfeita, altos e baixos da vida de um casal suburbano, simples e ricos de amor em busca da multiplicação dos seres terrenos, comum aos que apregoavam as palavras da bíblia. Gestos simples, monotonia dos dias, mas para ela inegáveis atitudes de quem gostava imensamente da vida a dois. Lembrava, também, de todas as noites, quando o casal ajoelhava-se diante das imagens em intermináveis orações em que tinha que acompanhar, muitas vezes cabeceando de sono, numa preguiça comum de quem não estava acostumado a oferecer-se tanto ao seu Deus. Os dois, ao contrário, buscavam forças de um interior mais profundo, para ficarem horas ajoelhados, em repetitivas jaculatórias, onde todos da família eram lembrados: vivos e mortos. Hoje, ali, rememorando, quem rezava por ela, senão os mortos, porque os vivos estavam mortos pela correria dos dias, do esquecimento dos detalhes, pela indisposição intolerável da vida acelerada e sofrida por busca de sobrevivência.

Queria, sim, pensou ele, dar-lhe um abraço mais estreito possível e dele arrancar todas as lembranças boas, todos os momentos felizes que passaram juntos; de um lado uma mãe admirável, lutadora, fiel, resignada, compadecida, companheira e amiga. Do outro, -um filho muitas vezes ingrato, esquecido, frio, intolerante, amante do mundo alheio, extra familiar, entregue às mazelas das amigas e das mulheres mundanas, mas nem por isso menos amoroso para com ela.

- Mãe - conseguiu balbuciar, com voz entrecortada - estou aqui, mãe! Nenhuma resposta. Ela voltou-lhe as costas num gesto largo, porém sem tantas intenções.

- Há quanto tempo, mamãe! Trouxe-lhe novidade. Gostaria que a senhora a conhecesse.

Pareceu, naquele momento, que ela sentiu alguma coisa, pois quis voltar-se. O filho lembrou que ela sempre gostava de novidades, nem tanto de presentes. Que os presentes fossem eles, os filhos, as noras, os netos. Para que objetos se eram passageiros, quebráveis, inanimados, mundanos, frios? Que ficassem com os tais, que não gastassem à toa, que não se preocupassem. Realmente, o que hoje lhe restava: um quarto, uma cama e uma nesga de sol que invadia o seu cubículo. Nada mais, pois o verme da idade corroia as lembranças, afastava a sensibilidade e matava aos poucos os pormenores.

A neta entrou no quarto e tanto quanto o pai estagnou-se diante da imagem da avó. Naquele momento, a mãe voltou-se para eles e lançou um olhar compenetrado, porém loquaz, sem brilho e longe, muito longe. O filho sorriu, mas ela não compreendeu, envolvida estava por uma espessa camada que nebulava todos os sentidos. Correu a abraçá-la, estreitou-a no peito, mas a mãe permaneceu inerte, ausente. Beijou-a tantas vezes na testa, no rosto, nas mãos, balbuciando palavras sem tanta convicção. A neta veio medrosa, porque também há muito não via a avó. Os três ficaram abraçados num aconchego em três dimensões. Uma convicta do que estava fazendo, consciente do seu dever e as outras duas inocentes pelo tanto de anos vividos e adormecidos e pelo muito que iria viver.

A nesga de sol iluminou os três.

Quando o filho se despediu da mãe, viu nos olhos dela um brilho diferente, uma profundidade que parecia lhe dizer que ficasse, que viesse sempre, que nunca a abandonasse, apesar de não poder reconhecê-lo jamais.