Entre luzes e sombras

- Posso falar com a senhora?

Irmã Branca é uma pessoa confiável. Miúda, olhar esperto, sempre me prestou ajuda quando solicitada. Apesar de ser firme na fé, destaca-se pela abertura de espírito. Foi minha professora nos primeiros anos de colégio. Depois, muitas vezes conversamos. Partiu dela a idéia de que eu colaborasse nos trabalhos junto à comunidade. "Acho que vais gostar", disse-me, explicando-me do que se tratava. Aceitei, apesar de Mauro nem sempre aprovar. Quando terminamos, aumentei o tempo de dedicação ao serviço comunitário.

Acredito que mesmo antes de romper o namoro eu já tinha uma vaga noção do que queria. Recusava-me, porém, a enfrentar a realidade. Meus princípios religiosos, embora tenham sofrido turbulências na adolescência, fortaleceram-se após. Mas, diante de decisões radicais, eu capitulo. Confesso que me falta coragem.

Irmã Branca está a minha frente, uma figura já envelhecida, os cabelos dominados pelo cinza, os olhos vivos observando-me com insistência. Faz-me um sinal para que me aproxime. Até que ponto conseguirei contar-lhe o que me passa pela mente? Se nem eu própria me entendo. Um dia choro por Mauro, no outro me encerro no quarto para rezar. Meu coração encontra-se totalmente dividido, sentindo-se puxado ora em uma direção, ora noutra.

Uma leve batida. Mando entrar.

- Posso falar com a senhora?

Teresa abre a porta, a fisionomia refletindo um tom grave. Lembro-me bem do primeiro dia em que apareceu na escola, agarrada à saia da mãe. Deve fazer mais de quinze anos. A secretária perguntou, apontando para a menina:

- Que idade tem?

- Seis anos, mas já sabe ler.

Era uma garota arisca, que passeava um olhar admirado pelo grande salão de entrada.

Desde o início, foi aluna modelo; não precisava matar-se nos estudos, aprendia com facilidade. No fim do ano, abocanhava os primeiros lugares. Quando se tratava de jogos, ficava normalmente na reserva. Teresa era pequena e não me parecia ter muita inclinação para o esporte. Se por acaso a via no recreio, dava-lhe um estímulo:

- Vai jogar, menina.

- Prefiro olhar, irmã.

O irmão mais moço, Zezinho, vivia aprontando. Inteligente, o guri, mas arteiro. Teresa era uma espécie de segunda mãe. Acompanhei seus cuidados com ele, durante três ou quatro anos. Depois, Zezinho foi embora, Teresa seguiu o curso de magistério. Tornou-se uma mulher alta e esguia. Fez um estágio tão bom, que foi convidada a ficar trabalhando com a turma, depois de formada. Aceitou, mas avisou que sua prioridade era cursar direito.

Quando a escola se engajou no trabalho comunitário, perguntei se queria fazer parte da equipe. Mostrou-se interessada, embora dispusesse de pouco tempo. Disse-lhe que qualquer colaboração seria preciosa. Alguns dias mais tarde, resolveu acompanhar-me. Apavorou-se, ao entrar nos casebres. Enquanto caminhávamos entre um e outro, perguntou-me:

- A senhora não se sente mal aqui?

- No começo, é muito difícil. Depois a gente se acostuma.

- Não sei se eu poderia me acostumar.

Ao sairmos da vila, os meninos, espalhados pelas ruelas, gritavam palavras de despedida. Para Teresa, olhavam curiosos. Consideravam-na uma visita.

- Por que quiseste vir? - indaguei.

Teresa encarou-me:

- Não acho justo, irmã, não conhecer isto.

Seu olhar vagou, um tanto quanto desconsolado, pelos barracos que nos rodeavam. Estava, na verdade, atravessando uma fase de baixo astral. Procurei conversar, ela esquivou-se. Esperei que essa fase fosse rápida, e que ela em breve se encontrasse consigo mesma. Era uma jovem promissora.

Passei um tempo sem vê-la. Agora, Teresa está diante de mim, o semblante fechado. Faço sinal para que ocupe a cadeira junto a minha mesa.

- Estou a tua disposição.

Encontram-se frente a frente, Irmã Branca e Teresa. Uma natural empatia aproxima-as. A moça não sabe bem como começar, hesita.

- Que é que há, Teresa?

- Uma idéia, irmã, está me perturbando, já faz um tempo. Uma idéia...

Um longo silêncio se faz. A interlocutora, com a curiosidade aguçada:

- Que idéia é essa?

- Quero ser freira.

Diante da irmã, aparece uma figurinha de dez anos: "Freira, nunca." A figurinha de dez anos tomava a forma, agora, de uma mulher ansiosa, que mordiscava os cantos das unhas.

- Desde quando tens pensado nisso?

- Há muito tempo busco um sentido para a minha vida. Queria algo mais, algo difícil, a que pudesse me dar inteira, compreende?

Teresa parecia continuar uma conversa que já tivera muitas vezes consigo mesma.

- É como se uma voz me chamasse do fundo, muito do fundo. Gostaria de me entregar a esse chamado, me esquecer de mim mesma, mas... eu resisto. Não sei se tudo isso é uma fuga.

A irmã pensa em voz alta:

- Tu estás triste. Quem sabe o trabalho na comunidade...

- Gosto de trabalhar lá, eu me sinto útil. Gosto também de estar com as crianças. Mas, é como se eu precisasse fazer mais. A senhora não sabe como isto me angustia.

- Se tu estás sendo chamada por Deus, vais contar com a Sua ajuda. É uma vida que pode trazer muita paz, mas exige muito de nós.

Pausa. A irmã lembra-se de um pormenor:

- E o rapaz?

- Terminamos.

- Tu estás magoada?

- Um pouco, mas não é isso. Estou cheia de dúvidas. Muitas dúvidas, irmã.

A conselheira abre um sorriso bondoso:

- Compreendo, Teresa. Só tenho um conselho a te dar: vai para casa, procura ficar tranqüila. Reza e pede a Deus que te ilumine. Se Ele está te chamando, vai te proporcionar as condições para que consigas segui-Lo. Deus quer a nossa felicidade, minha filha.

- Rezo sempre, irmã, e continuo confusa.

- Tu gostarias que alguém resolvesse isso por ti.

Teresa não esconde a impaciência.

- Pensei que a senhora fosse me dar apoio.

A outra pensa, repensa, fala medindo as palavras:

- Eu te conheço há muitos anos. A impressão que eu tenho, é que tu sempre exigiste muito de ti. Desconfio que, assim, não possas te sentir bem como irmã, ou em qualquer outro caminho. Desde pequena, tu sempre quiseste o máximo Te lembras do piano? Quando descobriste que não podias ser a melhor, paraste de tocar. É isto, minha filha, o que posso ver: uma responsabilidade que se acumulou ao longo de todos esses anos.

A jovem mantém-se suspensa, toda ela recebendo aquele conteúdo inesperado.

- Estou te dizendo o que penso. Mas, quem sou eu? Aconselho duas coisas: procurar um padre e um psicólogo. Um padre poderá ver o que há de concreto em tua vocação. Um psicólogo vai tratar de antigos problemas. Ah, e a tua família?

- Não disse nada em casa.

Tempo para reflexão. A freira leva as mãos ao rosto, cansada. Teresa declara, então, de uma só vez:

- Irmã, preciso confessar-lhe: sou muito egoísta. Não, não diga nada. Sou uma pessoa egoísta. Talvez seja por isso que me sinta obrigada a ser freira. Mas, não sei se seria capaz de abandonar tudo pelo convento. Talvez nunca o faça.

Irmã Branca pensou em falar-lhe de sua experiência, de quanto se sentia gratificada, apesar de todos os lances difíceis. Decidiu deixar para outra ocasião. Disse apenas;

- Tu precisas de luz para ver claro dentro de ti.

- A senhora tem razão. Obrigada, irmã. Posso voltar outro dia?

- Sempre que quiseres.

A jovem despede-se. Antes de fechar a porta, sorri levemente. A irmã acredita vislumbrar no fundo de seus olhos uma ponta de esperança. Devagar, dirige-se para a capela. Quanto a Teresa, sente-se aliviada por saber que conseguiu colocar para fora o seu segredo. Não está mais só.

Béti Mecking
Enviado por Béti Mecking em 18/02/2008
Reeditado em 18/02/2008
Código do texto: T865187
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