A Sombra

.......

Capitulo I

Uma nódoa do passado.

Caminhando através das minhas turvas lembranças que o tempo oxidou e que lágrimas borraram, encontro agora em meu túmulo, uma digna de póstuma análise, e ainda que esta possa causar tédio ao leitor, a nódoa que deixou em minha alma, permanece hoje e acredito eu que eternamente. Desde que despertei, atormentam-me, angustiam-me, ferem-me no peito.

Aqui onde estou não há luz ou sons de qualquer espécie, não ar a que respirar, e apesar disso posso ver aqueles olhos tão frios e sem vida, posso ouvir um ultimo suspiro, posso sentir o ar pesado em meus pulmões, posso sentir o perfume daqueles cabelos, posso sentir o cheiro do sangue... Sinto frio, o mesmo frio que senti, quando ainda caminhava sobre a terra, quando olhei pela ultima vez para aquele corpo inerte...

Capítulo II

Uma noite na eternidade.

--É horrivel, é horrivel! --- Acordei aos gritos!

Um relâmpago cortava o céu e meu peito se exauriu naquele momento. Não pude dizer palavra alguma durante horas enquanto Celine perplexa, me olhava impotente sentada ao meu lado sobre nossa cam. Ela velou-me durante horas enquanto eu tremia e chorava balbuciando frases sem sentido, até que finalmente dormisse. Foi um sono doente e inquieto, frio como aquela noite, um sono quase eterno de onde acordei em seus braços trêmulo e indefeso. Nada pude me lembrar deste fato pela manhã e Celine nada comentou além de que tive pesadelos e parecia delirar a noite toda. Apenas agora pude recordar-me daquele sonho horrendo, que tive na ultima noite feliz de minha vida.

Foram seis meses! Seis longos meses. Todo esse tempo eu havia passado em contemplação e todo esse tempo eu amei-a, muito mais do que a mim mesmo. Naquela manhã chuvosa tive a impressão de apenas começara a viver no momento em que a tive em meus braços e tudo que tinha vivido antes fora apenas um sonho infantil. Eu sabia que Celine não compartilhava comigo toda essa intensidade de sentimentos, mas, por algum motivo que não compreendo agora eu fingia não saber. Nós havíamos passado uma noite juntos pela primeira vez e hoje percebo o quão importante foi essa noite para o rumo dos acontecimentos que se seguiram e que me levaram à minha atual condição. Quando acordamos Celine se levantou, vestiu-se e se despediu com poucas palavras, deixando-me na cama refletindo sobre minha vida e fazendo planos. Planos que agora eu sei que eram apenas sonhos que nunca chegaria a realizar. Imerso nestes sonhos retornei a noite em que a conheci, seis meses atrás, à beira do mar.

Eu caminhava ébrio contemplando a noite e apreciando minha solidão, quando a vi em lágrimas. Lágrimas que refletiam em seu rosto lívido o brilho da lua, tornando-a ainda mais bela. Celine andava em direção da agua com passos hesitantes. Ela entrou até os joelhos, parou, olhou para o céu e gritou algo que não pude entender. Então continuou a caminhar até que a agua cobriu-lhe até os seios. Neste momento eu percebi sua intenção e corri até ela. Celine nadava para o fundo até que parou e afundou. Eu entrei na água e nadei em sua direção. Tomei-a em meus braços, ela resistiu por alguns instantes mas logo deixou-se dominar. Eu trouxe-a para a beira mas ela inquietou-se e arranhou-me convulsivamente. Deitei-a com cuidado na areia, e ela se levantou e me bateu no rosto. Celine chorou gritou por alguns minutos, eu apenas a observei até que ela cansou e se sentou. Então, sentei-me ao seu lado, não consegui lhe dizer nada naquele momento, nenhuma palavra que eu porventura viesse a dizer poderia acalmar aquela alma amargurada. Eu tremi quando ela olhou-me, pude ver em seus olhos a dimensão de sua mágoa, Celine estava ferida, não fisicamente mas tinha perdido o chão e tudo que mais prezava. Ela enxugou os olhos, pôs a cabeça em meu colo e adormeceu. Seu sono foi tranqüilo embalado pelo som do mar e a brisa da noturna, eu me senti sonhando sentado na areia com um anjo em meu colo, as ondas tocando meus pés e a lua quase se deitando sobre o oceano a minha frente.

Eu seria capaz de escrever um soneto aquela noite, com longos versos, como a minha vida, que se arrastava num um verso alexandrino com a perfeição da cesura, que foi o meu encontro com Celine, dividindo-a em dois versos hexassilabos.

O primeiro monótono e sonolento, e o segundo ardente e trágico.

Esta foi a única noite que me senti próximo do coração de Celine. E durante os seis meses seguintes, Celine foi meu ar, meu céu, a razão da minha existência e da minha morte, durante todo esse tempo nada que eu fazia parecia agrada-la, meus versos pareciam-lhe insípidos e seu beijos pareciam-me frios, entreguei-lhe o meu coração e ela me retribuiu com indiferença, entreguei-lhe minha alma e ela retribuiu-me com traição. Todo esse tempo eu estive enfeitiçado por ela e não havia como não ser assim. Celine era tudo que eu sonhava em uma mulher. Seus olhos tinham o brilho de um sol, seu olhar ofuscava-me, eu poderia me afogar no mar de seus cabelos negros que contrastavam com sua face branca, lívida que quando enrubescida tornava-se ainda mais bela. Suas palavras exerciam em mim um fascínio quase idólatra, e eu muitas vezes observando-a dissertar sobre algo, ficava estático sem dizer uma palavra, inebriado pela sua voz, sonhando acordado, até que ela se enfadava, e me olhava com um olhar de reprovação. Talvez por isso, por ser-lhe eu tão devotado, que ela tenha zombado do que entreguei em suas mãos. Celine tinha sido traída e humilhada, sua amargura tornou-se raiva e desprezo, que ela, não o sei se conscientemente, dirigia a mim. E por fim deu-me o que lhe deram na noite em que a conheci. Celine feriu o coração de quem mais a amava, e com isso condenou a minha alma a este purgatório, ou inferno, em que me encontro agora, sofrendo sem saber em que lugar do universo está a minha outra metade, sem saber se ela vive ou se virá ao meu encontro algum dia. Eu apenas a aguardo...

Capitulo III

A ferida.

Celine acordou pouco tempo depois que o dia amanheceu e após algum tempo olhando o mar ela perguntou meu nome. Eu respondi. Ela ficou um tempo sem reação e eu sem saber o que dizer apenas observei-a. Por fim ela agradeceu-me e se desculpou ao ver os arranhões que deixou em meu braço. Pude ver uma lágrima rolar dos seu olhos. Eu enxuguei-a, Celine ficou rubra e então nos beijamos longamente. Depois de algum tempo, Celine pegou-me pela mão e caminhamos até sua casa. Pouco nos falamos no caminho. Eu apenas pude saber que ela estava em férias naquela praia, e que retornaria a casa em poucos dias. Não lhe disse nada sobre o fato de que morávamos na mesma cidade. Tudo o que eu desejava naquele momento era poder tornar a vê-la, no entanto nada falei, esperei que ela entrasse em sua casa e voltei caminhando pela praia. A mágoa nos olhos de Celine não saía da minha cabeça e eu nem ao menos sabia o que tinha lhe causado tanta tristeza, apenas queria afastar dela tudo aquilo que a fazia sofrer, queria ver um sorriso daquele anjo que apenas tinha visto chorar.

Eu dormi o resto do dia, e quando acordei voltei ao local onde encontrei Celine. Era um início de noite bem frio, o vento que vinha do mar regelava-me os ossos, eu sentei na areia e lá fiquei por horas até que senti uma mão em meu ombro.

-- Tinha certeza que te encontraria aqui. Disse uma voz.

Meu coração deu um salto e eu virei-me.

Era Celine, ainda mais bela do que na noite anterior, tinha agora aquele brilho em seus olhos.

Ela pegou-me pela mão e enlaçou-me em seus braços. Senti o frio se dissipar do meu corpo. Beijei-a, me perdi e me achei em seu colo. Podia sentir seu perfume inundar meus pulmões e inebriar a minha mente. Não me pude conter, e disse-lhe no ouvido que a amava. Celine riu com tais palavras, olhou-me por alguns instantes.

-- Que tipo de homem você deve ser? Disse me.

Eu me irritei com estas palavras, mas nada falei.

-- Como podes me amar? A tão pouco tempo nos conhecemos. Falou ela com um ar de gracejo.

Eu apenas a observei por algum tempo, como sempre, sem saber o que dizer. Mas finalmente falei.

O que te fez chorar ontem a noite? O que te deixou tão desesperada?

Celine me disse com um ar irritado.

--Isso ficou no passado. Não quero falar sobre isso. Vim aqui para dizer-lhe que provavelmente esta é a nossa ultima noite juntos. Amanhã pela manhã retorno a minha casa.

Eu não lhe disse que morávamos na mesma cidade, e deixei que ela continuasse a falar

--Quero que fiques com isto. Celine deu-me uma mecha de seus cabelos negros.

Hesitante, eu peguei o presente. Senti o seu perfume.

Eu guardei o presente, deixei-a sem dizer uma palavra e ela não me seguiu. Quando cheguei a minha casa encontrei alguns amigos à minha espera, estavam ébrios e gritavam meu nome. Eu os acompanhei até algum lugar do qual não me recordo. Embriaguei-me com eles, mas não tendo um companheiro com quem falar sobre o sentimento que me atormentava, uma alma que me compreendesse e me desse algum alento, deixei-os e retornei a praia.

Não sei por quanto tempo chorei, apenas me recordo que acordei com o sol em meu rosto e a agua em meus pés.

Capítulo IV

Lágrimas

Passou-se uma semana até que eu visse Celine novamente. Eram quase meia noite e eu tinha acabado de chegar numa festa acompanhado de meus amigos, como sempre, ébrios. Eu estava deploravelmente bêbado, mas estava menos bêbado do que triste. Quando a vi fingi que não a conhecia e cumprimentei Helene a dona da casa onde acontecia a festa.

Helene não era tão bela quanto Celine, tinha um jeito hesitante seu olhar demonstrava uma fragilidade quase infantil. Ela era amiga de Celine a muito tempo e eu apenas a conhecia de vista, tanto que me surpreendi com seu convite. Enquanto lhe falava, Celine me olhava distante, e não se aproximou.

Eu deixei Helene e cambaleei até o jardim, peguei uma rosa e a levei para Celine. Ela sorriu mas não me olhou nos olhos. Eu podia perceber que ela estava tentando me evitar. Logo me disse apenas umas poucas palavras e quando um amigo cambaleante me cumprimentou ela aproveitou o ensejo e saiu da minha presença. Pouco depois pude ver que Celine tinha companhia. Não consegui disfarçar minha decepção e me retirei da sala e fui para uma pequena biblioteca que estava aberta.

Lá encontrei alguns livros dentre ele um que me chamou atenção. “Os sofrimentos do jovem Werther” eu o folheei e li algumas paginas. Entre lagrimas peguei um papel e escrevi um soneto. Na minha embriagues derramei algumas gotas de vinho sobre ele. Algum tempo depois com o papel na mão eu subi em uma mesa. Meus amigos perceberam minha intenção e me instigaram pedindo para ouvir alguns versos.

O mais bêbado deles disse.

-- Silêncio! O penseroso vai falar-lhes

e se deixou cair no chão.

Eu fitei o papel manchado de vinho e recitei o soneto que tinha escrito aquela noite.

A longa distancia que me separa do teu coração

E meus sonhos da fria realidade

Quando te vejo diante de mim, doce ilusão

Separa-me também da sanidade

Que foi perdida em meus delírios, lentamente.

Noite após noite, mergulhado nas orgias

Inebriando com amargo vinho, minha turva mente

afogado em uma torrente de palavras vazias

Perdido num mundo, de onde não encontro saída

Amaldiçoado com obscuros sentimentos

E por ter que viver esta amarga vida

Sonhando, nunca dormindo, ouço teus gritos

Solidão, solidão nos braços de uma perdida...

Ninguém ouve, teu suspiro ou meus lamentos.

Quando terminei, alguns entre os presentes emudeceram e outros aplaudiram.

Eu desci da mesa e pude ver uma lágrima nos olhos de Celine. Ela deixou o seu companheiro e correu para o jardim sem que com isso ele demonstrasse alguma preocupação. Minutos depois estava nos braços de outra mulher.

Eu a segui. Ela chorava e eu perguntei a causa de seu choro. Celine não respondeu.

Aproximei-me, a tomei em meus braços e beijei-a.

Aquele beijo selou nossa trágica união, que começou com as lágrimas de Celine e terminou com meu sangue.

Meus amigos lamentaram a perda dos seu querido “penseroso” pois eu negligenciava tudo quando estava com Celine. Descuidava dos amigos, dos estudos e da minha saúde.

Entreguei a ela minha vida, minha alma, feri quem mais amava neste mundo e no fim me senti perdido e abandonado.

Decorridos seis meses Celine me traiu cinco vezes, zombou do meu amor e me jogou na mais profunda depressão.

Celine se entregou a pessoas próximas de mim, que riam-se nas minhas costas. Alguns tentaram me alertar mas eu não dei-lhes a mínima importância.

Estive cego por muito tempo até que na manhã seguinte a noite que tive Celine em minha cama comecei a perceber o que acontecia.

Depois que ela saiu naquela manhã eu fiquei algum tempo pensando e sonhando. Levantei-me depois de uma hora ou duas quando ela retornou.

Celine estava transtornada, mas não me disse nada que revelasse o motivo de sua apreensão. Depois de algum tempo eu disse-lhe o tinha ouvido a seu respeito.

Celine sorriu e falou.

--Como podes ser tão ingênuo?

Eu calei-me. E ela continuou

--Como ignoras o que as pessoas que mais te amam neste mundo te falam?

Durante todo esse tempo eu te trai da maneira mais vil possível e você fingia não ver. Que amor doentil é esse que você me devota?

Ela aguardou alguma resposta e com meu silencio se retirou sem mais nada dizer.

Capítulo V

A sombra

Durante três dias não me alimentei, não falei, não saí de casa me isolando em uma completa escuridão. Todo este tempo que estive só fez com que a sombra se aproximasse de mim, tornou-me mais frio. Até que recebi uma visita inesperada.

Helene batia em minha porta. Deixei que ela entrasse e a fiz sentar.

Eu não pude olhar em seu olhos. Fiquei calado por algum tempo até que ela falou sobre Celine. Disse que a amiga estava muito mal, que se arrependia do que tinha me feito. Eu apenas assenti com a cabeça enquanto ela falava, depois disfarcei e falei sobre assuntos frívolos e fingi que nada tinha acontecido. Helene compreendeu e não falou mais sobre Celine ou sobre o tempo que eu tinha passado trancado em minha casa.

Helene me deu-me um livro.

Disse-me que nunca se cansava de lê-lo.

O livro era o mesmo que tinha lido em sua casa. “Werther” de Goethe.

Helene se foi e eu comecei a ler o livro.

Hoje eu sei como foi importante este livro para que eu tomasse a resolução que tomei! Se o soubesse nunca teria o lido. Desse modo talvez hoje eu estivesse caminhando entre os vivos.

Li o livro ávidamente, encontrei nele o conforto que nada poderia me dar. Mas foi lendo-o que a sombra por fim pousou em minha vida. Depois da visita de Helene voltei a vida normal, voltei ao convívio dos meus amigos que festejaram a volta do “Penseroso”.

Celine procurou-me varias vezes e eu a tratei com desprezo em todas elas.

Em casa porém me lamentava e relia o livro que Helene tinha me dado até que uma idéia veio-me a cabeça.

Vingar-me de Celine.

Causar-lhe o sofrimento que ela tinha me causado.

Então minha vida foi totalmente direcionada para a procura de uma maneira de ferir Celine...

Quando meus amigos anunciaram outra festa eu não tive vontade alguma de ir, porém eles insistiram e como eu estava em falta, resolvi acompanha-los.

Novamente bebi mais do que devia e encontrei Celine também ébria. Eu retirei um papel de meus bolsos e caminhei até o centro da salão onde os convidados estavam concentrados. Eu pedi silencio e fui atendido. Alguns amigos ainda sóbrios tentaram me dissuadir mas eu comecei a ler.

Mergulhado no mar bravio das ilusões

Dos voluptuosos seios da vendida

Que murmura ao meu ouvido tristes canções

embalando mais esta noite perdida

Dos meus lábios escorre um vão lamento

Pela sombra que pousou em minha vida

que desperdiço febril e macilento

ébrio, sempre com a taça à boca erguida

Vejo passar o tempo adormecido

Em seus braços embriagados das orgias

Lamentando meu passado perdido

Quando em meus versos indagava o que sentias

Sem esperanças em meu coração fenecido

Choro ainda sem saber porque mentias .

Quando terminei todos silenciaram. Celine em lágrimas saiu da festa. Em pouco tempo eu fiz o mesmo sem dar explicações a ninguém. Fui para minha casa e adormeci.

Senti algum prazer em causar dor em Celine e a idéia de me vingar tomou-me por completo e por um mês não pude dormir tranqüilamente. Devorava as paginas do livro de Helene, lia as cartas de Werther à Charlotte todas as noites até que tomei a minha resolução final...

CAPITULO VI

Sangue

Morrer! Esta foi a minha resolução. Morrer e fazer com que Celine tomasse para si a culpa pela minha morte. Eu estava tomado pelo desejo de vingar-me.

Nos dias que se seguiram a minha resolução eu escrevi algumas cartas e juntei as que já tinha escrito a Celine no tempo que estivemos juntos. Eu deixei minha casa e me hospedei em um hotel. Dia após dia eu remeti as cartas a Celine.

A primeira delas eu tinha escrito quando ainda estava em seus braços enfeitiçado pelos seus olhos e sua voz.

10 de junho

“A vida não passa de um sonho" Goethe

Sim, sou eu! inutilmente escrevendo o que sinto, se importa de ler? Não...

Não sei ao certo o que ia dizer. Não sei... Não confio em meu julgamento, O que achas?

Sou um fraco, um louco desesperado a procura de "algo". Não! Eu sonho!

Me ouça. Te procuro como Werther procurava morte. Te acho, acordo... com sua voz.

Não! Nada que eu falo tem sentido... Não sei. Estava perfeitamente tranqüilo quando comecei a escrever esta carta; agora, porém, choro como uma criança, o que decerto ainda sou. Não perca seu tempo, rasgue este papel como rasgaste o meu... O que digo? Devo estar louco! E te confesso, ando a ouvir estrelas! Perdi o censo! o caso é que para ouvi-las muitas vezes desperto e abro as janelas pálido de espanto... Bilac me dizendo "Amai para entendê-las" Já te amo o bastante, até demais. Por isso sufoco minha ira, meu desespero e as palavras de amor nunca ditas. Confissões me morrem na garganta. E outra vez Bilac. Não me ouça, ande rasgue logo, não vale à pena. A muito mergulhei na mesmice do meu melado romantismo. se insistires em continuar a ler, talvez saibas o nome deste alguém, que sobrevive à própria ruína vivendo de um coração, que parasita retalhos de ilusões e sonhos nele plantados, por ti quando em meu leito solitário, chorava lágrimas de chumbo entre as sombras da noite em larga insônia.

Celine recebeu a carta e logo me procurou, encontrando a casa vazia . Meus amigos ficaram preocupados com o meu repentino sumiço, mas eu não os procurei nem disse-lhes onde estava.

No dia seguinte mandei outra carta.

11 de Junho

Insônia

Acordo! ... Não! Novamente atormentado tristemente solitário e egoísta, abandonado! Tremo diante do nada e de mim mesmo,

Cada vez mais fraco, lânguido e faminto. Olhar estático, inebriado. Ilusões, visões, suores noturnos. Meu corpo se degenera diante dos meus olhos, minha alma flutua sobre minha cabeça. E as dores, tremores, volúpia ardente escondida, beijos, carne se fartando de carne. Seios de anjo, meu anjo (se foi?) não! Nunca veio, nunca a vi nem a verei. A morte me levará antes, nada disso me foi reservado. Nada além da noite, das sombras e da solidão.

Palavras jorram da minha boca enquanto "sonho" e ferem quem eu mais amo... então tranco-me em meu mundo solitário! Aplausos às perdas do amor, ao escapismo, aos delírios. Aplausos à morte e à loucura aplausos às lágrimas de culpa que ferem meu rosto. Aplausos às lágrimas de insônia.

E assim todos os dias eu mandava uma carta a Celine de modo que ela se desesperou. O que me deixou mais ansioso por completar minha vingança.

12 de junho

Posso me ver deitado(curvado) diante de um céu de incertezas, posso sentir as lágrimas queimando minha face. Estático posso ver seus olhos... São minha loucura, minha embriaguez. Alucinações, desejos. Desejo carnal, gemidos, Beijos, gozo, Mão lânguida e trêmula acaricia. Ah! Posso ainda ver seu corpo na escuridão dos meus vagos sonhos caminhando distante. Posso te ver entres as estrelas... ah esqueça!

Desejos apenas desejos espalhados em minha mente tirando-me razão... não faço idéia do que sentes, simplesmente te amo. É certo que não tenho esperanças de que se realize algo tão irreal... Não! Novamente as dores, dores acorporais me ferem no fundo da alma, sangram, sangram nestas palavras que te escrevo e se materializam em meus versos sem sentido, em meus medos. Gritaria se pudesse. se pudesse espantar as dores que me ferem a garganta.

Estas letras de sangue, desejo ardente

Tiram me a paz, a dimensão

Rasgam-me as veias, escorrem livremente

Alimentam a dor, crescem na solidão

13 de junho

Novamente te escrevo, e "sem querer" estou tomando seu tempo. Se esta carta lhe for um incomodo não tenha receio, rasgue-a como talvez tenha rasgado a anterior...

Continuo sem saber o que dizer... Sim! Estou perdido, irremediavelmente tomado por um mal onde a cura e a doença estão na mesma pessoa, e esta a mim inacessível.

A tristeza e a solidão me fizeram o que sou hoje, você é a unica realidade que me resta...

14 de junho

Seria, Talvez, mais fácil para mim não considerar os sentimentos que me afloram agora ao pensamento. Sim, seria mais fácil sentir desprezo por mim, insano, doente. Me sinto pequeno diante de ti... então tenho um vislumbre da minha mediocridade. Desprezo, desprezo sim, a matéria, a carne que me compõe. Odeio este corpo limitado, odeio estes olhos limitados ao que eu quero ver, odeio por fim a realidade a qual fui designado: Solidão. Seu gosto amargo e quente, solidão. Meu delírio que nunca descansa, solidão. Flui pelo meu corpo inebria a minha mente, solidão. Tanto fere que domina o coração.

15 de junho

Novamente tu, delírio inconstante, à vagar pela minha

mente e embalar-me ébrio em teu seio...

Sinto o frio correr-me as veias e o soar de sua voz em

meus ouvidos. Tenho febre, talvez seja o veneno? Ou tua indiferença? Trava-me à boca o mel enjoado da vida...

Sinto-me vazio estando você tão longe... Ilusões apenas.

Morrer numa noite sonhando contigo, afogar-me nos teus lábios dormir e não mais acordar! Vês! Novamente nada que eu falo tem sentido. Nada faz sentido além dos teus olhos refletidos neste copo de veneno... Que longa vai esta noite e este delírio a lua vermelha se arrasta tediosa pelo céu enquanto procuro-te entre as estrelas...

16 de junho

Das noites que sou atormentado

imagens decompostas que aos gritos me seguem

permanecem em minha mente, quando acordado

e de manhã seus olhos frios ainda me perseguem

se aproximam do meu rosto sussurrando em meu ouvido

... aproveite seus dias de morte silenciosa

cada dia ainda por viver de sua existência sem sentido

poderão ser uma morte lenta e dolorosa

afastando-se e deixando um vazio em meu peito

carregando junto consigo as lembranças

desse delírio Eterno em meu leito

no fim só resta a dor e um espaço

entre o que consigo lembrar

e meu eterno cansaço...

17 de junho

Silencio... Nada se ouve além do som do mar, nada além do silente bater de um coração enquanto observo o céu vazio onde correm estrelas rasgando a escuridão. Bebi esta noite, Bebi até esgotar a ultima gota do fogo ardente que agora corre-me nas veias. Arde ainda fogo do vinho em minha mente, ardem-me suas ultimas gotas em meus lábios trêmulos. Ressoam ainda tuas palavras em meus ouvidos... E agora tremo contemplando o destino. A vida não passa de um sonho e toda filosofia é vã diante do sofrimento, diante da chama que se apaga em meus olhos. Sim! O mundo é belo, mas o que resta quando essa beleza não mais nos encanta, quando o ópio do amor não mais nos embriaga. Resta o vinho, o escapismo, o cismar triste e solitário, o spleen... E teus olhos! Não! Contradições de um ébrio fugindo de um mundo mais vão que sua existência. Sim! O mundo é vão! Tão vão quanto estas palavras... Já amanhece e a razão agora me volta aos poucos, e o que me resta esta noite? Entregar-me ao sono fugindo do teu rosto que brilha no céu pouco iluminado? Me entregar aos braços de uma perdida como outrora e me afogar na embriaguez de seus lábios manchados pelo passado? Resta-me apenas a embriaguez das palavras, a poesia do ébrio que ama solitário...

Esta noite, a lua outrora tão lívida

que iluminava meu corpo inerte

de onde se esvaia a vida

se avermelha agora, anunciando a morte

Com esta ultima carta mandei o endereço de onde eu estava.

Celine veio logo ao meu encontro. Pela janela eu a vi chegando. Pedi que a segurassem por algum tempo na recepção antes de deixa-la entrar. Deixei a porta aberta e andei até a sala.

Eu segurava o livro que Helene tinha me dado, li algumas paginas e o depositei em cima de uma mesa. Bebi um ultimo gole de vinho e cortei meus pulsos.

Me deixei cair no chão segurando a mecha de cabelo que Celine tinha me dado.

Me lembro de sentir-me girando depois lentamente parar. Podia sentir o perfume dos cabelos de Celine misturado ao cheiro do sangue. Ouvi Celine entrando. Ela gritou quando me viu sobre a poça de sangue que escoria dos meus pulsos e se aproximou em lágrimas. Celine se curvou sobre mim e me beijou docemente.

Ela me pediu perdão por tudo o que havia feito. Eu a perdoei em meu coração. Eu desejava abraça-la mas meu corpo não respondia. Tentei falar-lhe mas nenhuma palavra saiu de minha boca. Celine vendo que eu não reagia se desesperou e correu até a porta, parando antes de sair do quarto. Ela voltou até a sala e viu o livro de Helene. Celine leu algumas paginas e controlou-se. Depois de algum tempo ela pegou a faca que eu tinha usado para cortar-me.

Celine tremia e eu pude ver em seus olhos o que tinha decidido fazer.

Eu tentei gritar, queria impedi-la, mas nada pude fazer.

Ela pegou a faca e aproximou dos pulsos, mas hesitou.

Foi quando um frio tremendo tomou o meu corpo e eu me senti flutuando. Eu ascendi e vi Celine segurando a faca e o meu corpo sobre o sangue.

Foi a ultima vez que a vi...

FIM

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 22/02/2008
Reeditado em 02/10/2008
Código do texto: T871213
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.