Crônicas dos Sonhos - I

Caindo no mundo

As dunas eram macias quando se gostasse que fossem assim, ou rígidas, quando o passante queria caminhar com firmeza. No céu, roxo-lilás e estrelado de ilusões, sobrevoava o Rosto da Verdade, impassivo, de olhos mortos e composição argilosa – puro barro tangível, mas insensível às súplicas de piedade e conhecimento. Ao invés da lua, o Triângulo das Energias, cujos vértices aprisionam o excesso de possibilidades do mundo. Embora limitante, o Triângulo emite freqüências de rádio que podem ser escutadas por quaisquer seres sentimentais. É o som escutado enquanto se caminha lentamente para o sonho: um zumbido fraco que não parece captada pelos ouvidos, pois se faz sentir nos rins, coração, pulmões, intestinos, medula e terminações nervosas das pontas dos dedos – se assimilado pelos ouvidos, parte numa ressonância cristalina por todo o corpo.

As vibrações corporais em um corpo materialmente desligado podem transportar uma mente, alma ou conceito através do portal do triângulo. Os principais passageiros a cruzar o portal são radiolas azuis, de botões de comando amarelos, que retransmitem a freqüência pelas dunas – e por isso elas são hiperbolicamente plásticas. Quando dormem, os humanos – e talvez também os animais e plantas – passam por um estranho fenômeno de queda: sua cama não contém seu peso e uma vala se abre sob a carcaça sonolenta. Essa experiência real pode ser refletida virtualmente num aspecto onírico – “Sonhei que caía do décimo quinto andar de um prédio e era tão real, eu sentia o vento riscando minha face”. Enquanto caem, o Rosto da Verdade mira os viajantes dos sonhos e sua presença onipotente inunda toda a aparente fantasia e liberdade, o que faz eles se despirem dos próprios olhos, vislumbrarem cenas e então esquecer.

Durante alguns poucos segundos, enquanto livres, os viajantes – que somos todos – visualizam a matéria original daquilo tudo – e um dos mistérios – que é a areia. Areia acumulada em grupos, multidões nômades e arredias – as Dunas do Sonho. E a vala é um redemoinho que se abre no chão branco como farinha, e os grãos se potencializam em micro universos que se instalam por todo o corpo transeunte. Cabe a ele penetrar cada pequena ilusão contida na infinita chuva. É aí que o Rosto da Verdade empurra-o à descrença – não como uma punição, em verdade os mistérios do Rosto são indecifráveis e suas ações pouco passíveis de adivinhação. Porém, há corpos que não caem como os outros. Algumas sensíveis mentes percebem a ligação entre a cama e a areia das dunas – ou o que quer que funcione como cama, o que estende, e muito, as interpretações e reflexões acerca do fenômeno.