Crônicas dos Sonhos - II

Um viajante e dois amantes

Em um beijo sintético toda emoção de um sonho. A realidade mista, ao acordar, desafia Marcos a ser receptivo com ela. Seu quarto, sujo por natureza, abriga bitucas de cigarro e muitos discos. Impossível voltar ao real sem que lhe toque um instrumento, seja guitarra, seja cavaco. Em verdade, dentro daquele antro de areia – vinda da sandália que passeou pela praia – e fumaça, uma possibilidade de adentrar o mundo dos sonhos. As energias, triangulares como vistas em um pôster de banda grudado na porta, encontram facilidade em comportar-se sinergicamente. O quarto de Marcos manifesta uma aura decadente e fantasiosa.

Levanta-se e no banheiro se desfaz em um rápido sêmen. Após o breve calor, continua em sua mente a imagem de seus sonhos, sua ex-namorada. Sabe que está se enganando ao pensar nela durante a temporada no mundo consensual e delirando pelas noites, enquanto dormindo. Coloca a tão esperada música, um mundo de percussões sensuais, o apelo dissonante da androginia vocal e um instinto leve, em forma de flauta. Um cigarro escarra sua dor até o teto da parede e Marcos contabiliza em um calendário de banco mais um dia, com a mesma caneta azul que repousa após seu único uso diário.

Cairia bem uma Coca-Cola, se ele gostasse. O mesmo para o café, mas prefere iogurte de morango – um confronto ao mentolado em seus pulmões. Cinzas de suas revistas pornográficas jazem ao chão: sentia-se diminuto ao apelar para objetos sexuais acríticos. Os estímulos provocados por aquelas tetas e bundas tão forçosamente exibidas eram solitariamente torturantes. Era como ver um morto, do qual foram arrancados os olhos e língua, sem um momento de violência poética: vazio e nojento. Seu sexo constantemente desperto acostumava-se a um masoquismo enquanto ele abusava das moças das revistas – era mais fácil se masturbar por dois minutos que preocupar-se em relacionar com alguém. Aliás, para que mais relação?

O seu último momento de amor, pensava, se deu quando antes de terminar seu namoro. Esforçou-se por ele até o último momento e nunca desejara o fim, nem dera o impulso que o levaria à eclosão. O término foi o maior choque em sua vida e baniu o sentimento de sua vida.

Uma voz ecoava nos ouvidos de Marcos, enquanto sua música fazia efeito alucinógeno. O que seria do dia de hoje? Faculdade? Férias. Sair? Sem amigos. Beber? Sem dinheiro. Ler, desenhar, tocar um pouco, como fez ontem e nos dias marcados no papel – até chegar o momento em que mudaria de rotina, quando talvez voltasse às aulas.

Pegou um terrível livro, em que tudo a lembrava. Inquietou-se, porque não suportava mais ela, a perseguição, aparecendo entre as sombras na parede, na marca em sua virilha, na chama do isqueiro e como um vírus em sua cabeça. Olhou-se no espelho com repugnância, depois ficou mirando sua perna – admirava a coxa, achava-a de bom tamanho e volume, queria fotografá-la. No entanto não o fez, jogou-se na poltrona e se pôs a pensar – em sinceridade não comandou nada, o pensamento lhe foi imposto.

Começou com o básico “por que ela fez isso?”; “ela não deve precisar de revistas, pode experimentar na prática”; “ela era gostosa, até eu arrumar outra está difícil”. Essas reflexões sofriam autocensura, dado a um incessante relativismo mental de Marcos. Sabia que pensava bobagens, que pessoas e pessoas se interessavam por atrativos diferentes; essa história de “gostosa” e “gostoso” era uma das mais desprezíveis existentes. E era incrível a possibilidade da música de neutralizar essas marcas sociais incômodas.

Amoral, assim Herman Hesse chamou a música. Para Marcos, o tipo de canção que ele procurava era exatamente a do tipo que estava desnudada de valores morais. E com ela, contagiava-se de uma liberdade sem razão ou veracidade. Costumeiramente, ao relaxar cada músculo, perdia-se num estado de semi-consciência. Então via mais do que seus olhos materiais refletiam.

Ao acordar, estava excitado. O que era aquela mulher perfeita, de traços orientais? Seu corpo, lânguido e de poucas curvas, tinha uma proximidade com seu próprio corpo. Ela era um menino esperto, cheio de energia e abraços; o beijou, e em poucos segundos fez os cosmos irem do nascimento à escatologia. Renascia um sexo que estava esquecido, Marcos sentia sua pele queimar mais quente do que o fogo que evaporou suas revistas. Nela estava escrito o signo do amor, o despudor e a coragem, mas ela tinha de ir – a Verdade o puxava de volta. Aquele resto de dia foi diferente, pensou em sua (nova) amada e não teve tempo para recordar experiências passadas.

Comia um sanduíche quando, revolvendo a carteira, descobriu-se sem um tostão. Negociou com o dono do lugar, alegando que lavaria os pratos aquela noite, de forma a sanar sua dívida. O homem, sem bigode, mas com pêlos no nariz, riu-se e perguntou se ele via muitos desenhos da Disney. Deixou-o sair dali com o compromisso de vir-lhe pagar logo. Marcos agradeceu e pisou no pé dele enquanto lhe estendia a mão. No caminho encontrou o dinheiro perto de uns gatinhos, só que nem comemorou – um dia tão fantástico e sua percepção ainda voltava-se à sua linda garota-garoto. Dormiu, levando-a para a cama.

A cama desfez-se em areia que as dunas abraçaram. A visão era a do próprio quarto de Marcos, quase a mesma atmosfera, só que sofrendo interferência de raios de sol e de um corpo sombrio, mas distinguível. O rapaz olhou pro corpo e sentiu o ímpeto do beijo. Antes, porém, observou rapidamente para o aparelho de som, que tocava uma faixa que nunca escutar – impossível, conhecia cada música sua! Um milagre? Ou um sonho? As suspeitas fizeram Marcos seguir com calma naquele universo de realidade frágil.

Aproximou-se do seu desejo e lhe tocou – pele rígida e macia, alternando de segundo a segundo. Sabia que o beijo era poderoso, podia fazer-lhe explodir, perder-se. Por isso, trouxe-o de longe da luz, para poder observá-lo direito. Sem ofuscações, viu o seio escasso e não demorou de devorar-lhe. O que havia de tão perfeito naquele selo? O contato era o mais sublime experimentado por Marcos, seus olhos orbitavam, suas cordas vocais gemiam e sua cintura impelia-se em cortejo. Minutos de muito amor e de resgate do sexo aconteceram. O toque à flor da pele impeliu que as roupas fossem despidas. O amante, não percebia Marcos, era dotado de algo alienígena, era a oriental masculinizada e tão diferente de tudo o mais. Ele só via sua beleza – que poucos olhos podem ver.

Marcos sem calça, a saia da amante serpenteando trabalhosamente, meio enroscado, até escapulir pelos pequenos pés, enfim. E, majestosamente, um pênis ereto entre aquelas pernas. Marcos assustou-se, queria-o por completo, a sua garota que era um garoto. Atordoado, resolveu quebrar o encanto, colando seus lábios no do seu consorte – profanidade e salvação. Desfez-se em cores, como se passasse por dentro de um prisma – uma das faces, um lindo triângulo – e sentiu-se elevado por um momento.

A fuga desesperada, moralista, não surtiu efeito: Marcos estava apaixonado. Seus sonhos despertavam, reais, o sexo e a vontade, a coragem e a transgressão. Guardaria o beijo, seria cuidadoso, antes gozaria prazeres eternos, em um mundo de maravilhas que nunca experimentara.