Viagens

Ainda era verão. Hugo dirigia por uma estrada situada à beira-mar, e também apreciava as raras ondas brancas que marulhavam. Estava indo a uma festa no quilômetro 63, a festa dos caminhoneiros. De subito, brecou. Havia uma loira na estrada: uma mulher de mais de metro e oitenta, vestida com minissaia vermelha e camiseta branca, que pedia carona. Hugo abriu totalmente o vidro do veículo e foi logo perguntando:

"Quer carona?"

"Sim, por favor. Estou aqui há mais de uma horra e ninguém párra. Talvez achem que sou uma...bom, uma boneca."

"Você tem sotaque estrangeiro ou é só cambalhacho?"

"Sou frrancesa. Cheguei de Fraança ontem, parra a festa."

"Está bem, então entre."

A viagem prosseguiu normalmente, mas o silêncio dentro da boléia era glacial. Hugo não acreditava que uma estrangeira estivesse ali, naquela região, pedindo carona. Era coisa meio inaceitável. Mas de qualquer forma, achou que a mulher parecia honesta e não uma vigarista. Após meia hora, resolveu romper o silêncio. Percebeu que a mulher estava choramingando.

"Por que você está chorando, algum problema?"

"Toda mulher é chorrona, bobona, e eu não fujo à regrra."

"Estava parada no acostamento, tomando esse Sol. Acha que me engana?"

"Na verdade, minha histórria parecerrá um tanto ou quanto inverrossímel, mas é verdadeirra. Eu estava vindo do Rio com uma amiga que irria até São Paulo. Combinamos de ela me deixar no quilômetrro 63. Mas aí, acendi um cigarro dentrro do carro dela e ela me expulsou, ficou irrada. Se aqui pelo menos passasse táxi!"

"Você é deliciosa. Como soube do evento?"

"Vim me encontrrar com Arron, meu amor aqui no Brrasil. Sabe, sou dançarrina em Frrança, e numa tarde, eu estava ensaiando alguns passos quando ele me ligou pedindo parra vir imediatamente, pois querria que eu dançasse parra muitos caminhoneiros."

"Você fez essa viagem toda só para vir a uma festa?"

"Na verdade, amo Arron. Amo-o muito. Não podia deixar de atender a um pedido dele, nunca."

"Você está sempre disponível assim para esse tal de Aron?"

"Semprre estarrei disponível. Sempre."

"E para mim, que tal estar disponível?"

"Sou dançarrina, não prrostituta."

"Não seja boba, menina."

"Oh, está bem. Só um pouquinho. Então parre o caminhão."

Após uma hora, Hugo e Brigite chegaram ao quilômetro 63 e se despediram. Hugo foi tomar um banho de mar. Vestiu sua sunga negra e entrou na água. Faltava uma hora para a festa ter início. Voltando para o caminhão, pôde ver Brigite e Aron trocando beijos e abraços. Não tolerou muito aquela cena, mas enfim, pensou, Brigite era uma mulher fácil. Teve vontade de ir embora, porém uma voz gritando seu nome o deteve. Era a voz de um grande amor do passado.

"Hugo!Hugo!"

"Você por aqui Penélope? E então, como vai a vida de caminhoneira?"

"Que felicidade te reencontrar! Sabe que estava pensando em ti hoje, naqueles momentos inesquecíveis que passamos juntos em Las Lenas? Foi mesmo uma pena nosso romance ter acabado. Lembra-se de que jeito eu esquiava? Parecia uma anciã de cento e oito anos, toda encurvada, temendo a queda."

"Não arrumou mais namorado depois de mim?"

"Não."

"E agora fuma! Que coisa feia, Penélope. Mas não entendo. Por que não teve mais ninguém? Não vai me dizer que você tem coachado por aí."

"Não é minha praia, meu querido. Preferi dar um tempo. Não estou curtindo tanto sexo como a dois anos atrás. Estou só. Sou uma loba solitária."

"Vamos então ao evento juntos, está bem?"

"Claro. Uma capricorniana adora essas coisas, adora dançar!"

Quando Hugo e Penélope entraram no salão, deram de cara com Aron e Penélope. Os quatro sentaram-se na mesma mesa noite adentro. Por volta das dez horas, Margarete Tadeu, a atriz de maior prestígio dos anos 2000, subiu ao palco para anunciar o prêmio de o homem do ano no mundo dos caminhoneiros.

"Penélope, nem eu nem você irá ganhar."

"Quem sabe você ganha este ano? Só não entendo como essa Ong que premia caminhoneiros pode ser meio machista. Devia ter também a mulher do ano no mundo dos caminhoneiros, não devia?"

"Também concordo com ela. As mulherres deviam ser mais valorrizadas."

Margarete Tadeu, após incorporar o personagem de Dias Selvagens, minissérie de Tv no qual era protagonista, caiu em si diante de tantas gargalhadas, e deu início à cerimônia de entrega do prêmio.

"Queridos amigos e amigas. Este ano não foi nada fácil encontrar um caminhoneiro para levar o título de Homem do ano. Mas nossos detetives-repórteres se encarregaram de observar a vida de todo mundo, e descobriram que há alguém aqui que gosta muito de dar caronas, ato tido como perigoso no nosso país. Ademais, esse homem faz serviços voluntários, emprestando todo mês parte de seu tempo à entrega de alimentos para famílias necessitadas do sul. Há mais de vinte anos ele trabalha como caminhoneiro e diz que sempre fez o que gosta. Por essas e outras, a equipe de jurados, composta de cinquenta elementos ultra-gabaritados, resolveu que o homem do ano é...Mas antes, quero falar sobre os prêmios: uma viagem a Amsterdã com direito a acompanhante e mais cinco mil dólares em dinheiro. O homem do ano é... Hugo Rios!"

Ao ser anunciado, Hugo levantou-se e apontou o indicador contra si mesmo, incrédulo. Foi caminhando lentamente até o palco e nesse percurso, a música de fundo, One moment in time, fê-lo começar a chorar. Foram tantos anos dedicados ao trabalho, e ele sempre deu o melhor de si. Abraçou Margarete Tadeu e falou:

"Muito obrigado."

Silêncio absoluto.

"Ei, ei caminhoneiro. Você aí que está me escutando através das ondas do rádio, você mesmo. Deixa eu limpar estas minhas lágrimas. Eu sei que elas são sinceras. Talvez eu nao mereça ter ganho essa viagem, esse troféu, esse reconhecimento. Ainda não sei o que fiz para merecê-los. Apenas amo o que faço. Sim, caminhoneiro, é só isso que posso dar de lição, amem o que vocês fazem!"

Hugo foi aplaudido de pé por centenas de pessoas. Cumprimentou muitos amigos e amigas, e por volta da meia-noite, estava exausto. Foi falar com Penélope, mas percebeu que ela estava papeando com Brigite de uma forma pouco convencional: estavam embriagadas e dançando quase que coladinhas.

"Penélope, o que significa isso?"

"A duas mulheres é permitido dançar juntas, meu querido. Que maldade há nisso? De qualquer forma, eu e Brigite decidimos dividir o meu apartamento, na Barra. Você irá nos visitar?"

"Claro, claro. Mas e quanto a Aron? Você disse que o amava, não é Brigite?"

"Não o querro mais. Ele é muito xarrope."

"Está bem. Sejam felizes. E até breve."

De novo na estrada, Hugo voltou fazendo o mesmo percurso da vinda. A próxima cidade estava a dois quilômetros. Ao chegar, procurou um hotel, um três estrelas, e ficou logo interessado na recepcionista, que lhe deu uma piscada irresistível. Sem medir os corolários, agarrou-a ali mesmo, na recepção, e em poucos minutos nascia uma nova paixão. O nome dela era Anna e, num frenesi, sentiu que era essa a mulher de sua vida. Ficou no hotel dois meses. Anna foi convidada para a viagem até Amsterdã e aceitou o convite sem pestanejar. Enfim, eles arrumaram suas malas e no caminho do aeroporto, pareciam realmente apaixonados. O vôo 188 rumo aos Estados Unidos, sairia por volta das onze e trinta da manhã. Já dentro do avião, que fez uma belíssima decolagem, Anna quis confessar algo a Hugo.

"Quer se confessar? Não sou padre, doçura, mas entre nós não há segredos. Há somente uma diferença de idade de trinta anos, e eu adoro mulheres mais jovens."

"Sabe, entrou um pouco antes de você, no hotel, uma mulher loira, que se dizia francesa, e..."

"Brigite?"

"Não recordo o nome dela. Só sei que a mulher deu em cima de mim e não resisti aos seus encantos. É só isso."

"Só isso? E quer que eu perdoe você por me contar que tem componentes inconvencionais na sua personalidade? Se tivesse me contado antes, não estaríamos juntos agora, aqui. "

"Sou mulher, Hugo. Apenas quis experimentar."

"Isso não existe, Anna. Não iremos mais nos tocar."

"Tá bom; então manda parar o avião, quero descer agora."

"Isso é impossível, minha cara."

Anna levantou-se para se jogar de alguma janela, mas Hugo a segurou com força. Ela estava surtando. De súbito, uma leve turbulência passou a preocupar os tripulantes, pois não cessava, mas ia aumentando aos poucos. Um comissário surgiu e disse pelo alto-falante para todos se acalmarem, pois era inevitável um pouso forçado sobre uma ilha.

"Talvez essa viagem seja uma viagem mais profunda, Anna."

"Não estou preparada para morrer, Hugo."

O avião caiu,espatifando-se na terra, como um brinquedo. Alguns anos após a tragédia, numa velha casinha situada em um bairro do Rio de Janeiro, um menino chorava em seu aposento. Era Víctor, que nao conseguia dormir. A mãe do garoto, como que adivinhando o estado do filho, entrou no quarto com a pretensão de lhe contar histórias.

"Mamãe, quando eu crescer quero ser igual ao papai. Ele era alguém, não era mamãe?"

"Sim, foi alguém."

"Não precisa me contar história, hoje. Quando eu crescer não quero dirigir caminhão, mas pilotar um avião bem moderno para encontrar o papai no céu."

"Seu papai está lá no céu vendo a gente. Amanhã, bom, amanhã mamãe e você vamos à missa, depois te deixarrei numa crreche e irrei prrocurrar emprrego. Vai tudo dar certo."

"Como é que o papai chamava mesmo, mamãe?"

"Hugo, filho. Papai se chamava Hugo. E ele foi o Homem do ano!"