Crônicas dos Sonhos - III

A Mandala de Mundos Possíveis

Sozinha na capital, cheia de sonhos, mas quase todos eles sobressaltando-se em pesadelos. Fernanda andava ressabiada, como uma menina de doze anos que uma vez fora, sem energia para viver. Desde a primeira vez que se encontrou perdida, sua vida nunca mais voltou ao caminho natural da “felicidade” e da “realização”.

As caminhadas a aliviavam um pouco. Ela topava em todos os desníveis do solo, só que nunca ia ao chão. Se não caminhasse, voltaria para casa e não saberia o que seria de seu futuro. Estar em casa a fazia pensar, primeiramente, em suicídio.

Quando estava só, ponderava sobre sua existência. Nestes momentos que concluía o que considerava uma obviedade: as outras pessoas, as felizes, não refletiam sobre suas mortes – essa reflexão surgia para os solitários, realistas quanto a seus futuros e vivências. Estar bem, estar vivo, era se enganar.

Assim mesmo, ela percebia vivacidade. Quando se deitava, fones no ouvido e câmera fotográfica nas mãos, adentrava um momento que não conseguia acreditar que existisse – e que aparentemente se apagava horas depois de cada acontecido.

Com a extensão digital ocular, Fernanda mirava os confins de seu quarto. No teto, imediatamente acima de sua cama, um filtro dos sonhos azulado como um guardião atento, balouçando ao toque enérgico dos ventos. Após o ar se debater nele, seguiam-se vários tilintares que se harmonizavam como sininhos dourados – sinos dos ventos – que só são encontrados na casa dos avôs. Com a canção no ar, Fernanda imaginava objetos. Esquadrinhava seus baguás, suas cartas de tarô e todas as substâncias de sua alma explodiam sobre os itens. Ela ajustava o obturador e o diafragma e capturava seus olhares sobre gnomos, dragões, budas, santos, yin yangs, homens, mulheres, sexo, drogas. Escorregava pelo lençol sedoso da cama, vendo tudo se abrir sem fim, numa viagem por um mundo auto-referente e luminoso.

A cama ensopada de suor a obrigou a ligar o ventilador. Aquele barulhinho de leve do aparelho acompanhou sua respiração semi-estática. Queria tocar um instrumento e fazer ecos pelo ambiente. Fotografar dava alma a seu quarto, mas não era só isso, sua vida precisava de outros adormecidos sentidos. Achava que as caminhadas poderiam sanar isso.

Caminhou até a cidade começar a morrer. Nessas horas, gostava de ver os focos de luzes tímidas – postes “acende-apaga”, brasinhas de cigarro, lanternas de vigias, faróis de carro, raros vaga-lumes. Imaginava a alegria que seria ter um pouco de luz pulando dos olhos, num giroscópio esquizofrênico.

Ainda enfrentado a noite, à relva do monumento cristão, ela esperava que OVNIs (ou estupradores) viessem lhe causar uma nova experiência. Como em outras saídas noturnas, imaginava muito e não trazia sua câmera, porque não conseguia mais fotografar a essa hora. Trazia consigo apenas a mala, a mesma que trouxera da cidade natal, que fedia e nunca podia ser esvaziada. Foi para chegar a esse ponto que me tornei adulta?, questionava-se ao sentir o fedor se expandir.

O perfume da adolescência estava impregnado em uma camiseta de botões, que ela cuidava e mantinha inteira fazia anos. O cheiro a fazia esquecer-se da mala, das dores, do seu próprio e maldito corpo. Em casa não tinha um espelho sequer que fosse visível, nem foto alguma à mostra. Tornara-se tão esperta em evitar a própria visão de seu rosto de vinte e cinco anos, que seu formato lhe era em parte um mistério. Ela apenas sabia dos cabelos, que preferia aparar sempre que conseguia os notar claramente na periferia da visão.

Cada botão da camisa a lembrava um momento específico e especial. Seu corpo inflamava e ela se lembrava de sua aparência por alguns instantes. Naquele dia, perto do Cristo de pedra, estava vestida com a roupa masculina. Tê-la amaciando sua própria pele a fazia bem, e por isso não temia ver um disco voador e seu espetáculo de cores arco-íricas. Estava sendo um momento feliz até ela notar que estava imersa em alegria. Recatou-se, pois não era a hora de ser contente. As condições lhe eram desfavoráveis. A boa sorte, ela considerava, só poderia coexistir consigo mesma quando reencontrasse o dono daquela roupa – a única pessoa que lhe amara de verdade e que ela não foi capaz de respeitar quando pôde. Como, diante desta falha, ainda se permitia ver as cores de um OVNI? – o que a lhe deixaria muito satisfeita.

Depois de fotografar todas as entidades que transitavam pelo seu quarto, Fernanda sentia-se muito cansada e vaga. Era quando abria as portas do seu guarda-roupa de quinquilharias – livros, cristais vários, gaita e sinos, tênis e pôsteres, álbuns lacrados e diários. Lá dentro, tomava aquele objeto mágico, adimensional, granulado e sem começo ou fim: uma mandala.

O objeto multifacetado a deslumbrava. Fazia-a entrar em contato consigo mesma, pois cada um dos espelhos que o compunha exibia uma imagem fractal que a tragava para um mundo diferente. Mesmo que fosse obrigada nesses momentos a se ver, não era a si própria que compreendia refletida, e sim uma entidade de luz, um rosto cheio de sinceridade. Inicialmente se assustava com aquele desafio inteiro de universos, ideologias e seres, no entanto logo se animava em aventurá-los. Deixando o medo de lado, perigava pelo desconhecido. E então, não via seres como gnomos e dragões, mas fluidas formas, de luz e de sombra, que eram as chaves e ideais de todas as imagens possíveis em qualquer outro sistema ou planeta. Fernanda, claro, não tinha conta do que sua consciência estava visitando e se perdia em meio a ventanias e tempestades de grãos de luz, que, apesar da clareza, assumiam a vagueza de todas as coisas.

Ela tinha uma camisa, além da camisetinha de botões do seu amor, que ela cultuava. Uma camisa com uma estampa de lâmpada incandescente, de sua infância de doze anos – e que não sabia por qual milagre ainda cabia em seu corpo. Estava caminhado, esquecera seus fones nesse dia, e sentia a cidade – e principalmente seus sonhos – em sua pele. A cidade ainda estava viva e uma rara brisa a fez despertar um sentido de devir esperançoso.

Uma lâmpada se acendeu. Vinha de longe, ela reconhecia, num corpo de energia sem fim. Uma mulher loira, esguia, usando uma camisa com uma lâmpada no centro – maior e com algumas linhas externas que denotavam intensidade. Fernanda gelou, iam se cruzar logo, e ela queria que ela o olhasse. Encontrara uma correspondente – um amor, uma alma gêmea, alguém que a faria esquecer-se da sua camiseta de botões.

Estavam a três passos, dois, todos os universos entre elas, um, Fernanda ansiava o momento... CRUZARAM-SE! Quanta energia explodindo naquele encontro – iam-se atracar e exasperar-se uma na outra. Porém, a garota loira escutava música em seu MP3 Player e nem mesmo olhava para o lado – estava imersa em um clipe musical, blasée em meio à multidão incompreensiva e triste – como assim pensou Fernanda, sobre o pensamento dela.

Fernanda olhou sua camisa dos doze anos, desbotada, a lâmpada já bem triste e incompreensível.

A mandala tinha um efeito tão forte que ela a colocava longe, dentro do armário, para que não a visualizasse e se perdesse. Guardou-a rapidamente, quando se deu conta de que a olhava. Sua cama, quando ela se jogou, parecia um montinho de areia reconfortante. Puxou o travesseiro e estava ali a camisa de botõezinhos, seu consolo, seu maior sonho. Abraçou a vestimenta e sentiu-se nua.