Crônicas dos Sonhos - IV

Sonho com você

"Esta carta, em papel que lembrava um pergaminho, jazia na lixeira do banheiro do meu filho, em meio a camisinhas usadas e uma calcinha rasgada, de sua namorada. Estava escrito:"

Olá meu santuário secreto,

Será estranho receber uma carta anônima nos dias de hoje? Ainda mais se tratando de uma carta de amor? Vez ou outra, aparecem nos filmes histórias de apaixonados que escrevem cartas e suas paixões procuram saber quem os escreveu, várias pistas vão sendo plantadas e quando se encontram o desejo é maior que expectativa. Nosso caso, meu querido, é, no entanto, diferente: desde que te vi, venho te deixando indícios da minha existência, quase que totalmente devotada a você e só agora me resolvi a mandar um sinal escrito. É por isso que essa carta não é anônima, mas a revelação de um anonimato que, relembrando meus atos e supondo os efeitos deles, deve estar te provocando curiosidade. Pense – não vinha sentindo um par de olhos abaixados, leves e corriqueiros a te observar e guardar?

Vivi diversas aventuras contigo. Não esteve se apercebendo da adrenalina e emoção que nos envolvia? Talvez estivesse muito distraído em suas práticas com garotas mais jovens que você para notar, mas eu te perdôo de todos esses pequenos detalhes – pecados da carne, não é mesmo? E pra que perder tempo contando de minhas pequenas irritações e tristezas se posso te contar a felicidade de encontrar-me contigo?

Encontrei contigo em um dia lindo, que aconteceu durante um sonho. Estava observando o sol ofuscante do verão, encostado à balaustrada da varanda de um amigo. Reunia-me com ele e mais alguns companheiros para discutir literatura e fazer arte. Esta mesma a que recorro para ficcionalizar nossa história. Sem ela, talvez nada tivesse acontecido. Parece artificial, eu sei, mas o que nessa vida não é? É até mais bonito: passamos parte de nossas vidas ao léu, fazendo coisinhas aqui e ali, tendo momentos marcantes toda semana, nos divertindo um pouco com as pessoas. Quanto disso não fica perdido em meio ao mar especulativo do tempo e da emoção, enquanto que uma pequena parte fica registrada? Por isso, meu amado, resolvi dar corpo a nós dois. Concedo-nos um senso narrativo, uma vida diferenciada, maior que as outras, porque cada fragmento é importante.

Ao sair da varanda estava com a mente fervilhando. Descemos todos, eu e meus amigos, para o ponto de ônibus, mesmo sabendo que morávamos ali perto e que não era necessário tomar condução. Pensei que estava tudo muito estranho, mas combinava com a falta de coerência da minha personalidade. O ônibus esperado despejou fuligem acima de nossos narizes e tomou o caminho inverso ao de nossa casa, “Odeio esses ônibus que pra nos levar ali pertinho antes roda toda a cidade”, alguém comentou. O dia estava tão poético que não reclamei, era bom ver a praia e percorrer a orla. A areia parecia estar tão fofa que aposto que, quando pisada, ela te transportava para o outro lado do mundo – ou para dentro da Terra e dos seus mistérios.

Em um ponto que achávamos ser qualquer, tivemos de descer, porque era o fim de linha. Estranhamos a paisagem encontrada – a entrada do que parecia ser uma gruta, defronte ao mar e quiosques paradisíacos que nunca havíamos visitado. “Estamos numa tirinha do Pequeno Nemo?”, um dos meus amigos fã de cultura pop comentou. Logo depois ele desapareceu, assim como os outros passageiros e não sei como recordo disso agora, porque no momento nem me dei conta.

Entrei na suposta gruta e as paredes me lembravam diamantes. Era bem iluminada, brilhos de três pontas resplandeciam de quando em quando, deixando uma aura celestial me indicar o caminho. Estava embasbacado – meu corpo reagia à experiência com verve. Um sonzinho leve, como de sininhos natalinos tocando, abrangeu meus ouvidos e sentimentos. Os cristais (sim, eles existiam!), ressoavam uma melodia. Parecia a canção dos mais belos sonhos, daqueles que você pede pra não existir nunca mais, para viver uma repetição de vida intensa e artificial. Sonhos perigosos esses, pois se nos fosse dado a possibilidade real de escolher entre eles e o real, não mais voltaríamos a quem amamos.

(Você, meu amor, não precisa temer isso. Quando te conheci, o misto de sonho e realidade foi tão grave que estarei contigo, não importa que caminho eu siga – e sei que te terei por completo apenas com a fusão dos dois mundos).

Caminhei mais, pisando em um chão de estrelas, e atingi o cerne da utopia realizada: uma cachoeira e um laguinho, paridos sabe-se de lá onde, mas tão singelos que nem posso descrevê-los. Suas gotas, no entanto, posso detalhar: grudavam-se à pele como líquido macio e hidratante e carregavam dentro de si imagens. Eram lunetas para o mundo, o universo e tudo o mais de extraordinário que a mente pudesse conceber. Fiquei ali, jogando-me entre os microcosmos, cego de alegria. Apesar dos sabores, fui-me contendo, recalcando-me, e o lago começou a secar. Algumas gotas, as últimas, pareciam exibir um corpo masculino, só que deve ter sido fruto da minha imaginação – uma invenção para dizer que te vi lindo e esplendoroso naquele momento.

Uma porta, que antes não havia visto, estava nítida, atrás da rocha por onde descia a água da cachoeira. Abri a porta e me deparei com o ambiente dinâmico da universidade onde estudamos. Naturalmente me pus a caminhar – reconheci o pátio de um dos pavilhões de aula. Caminhei entre os campi, cada um como se fosse um planeta de regras próprias, e dei de cara com meu despertador clamando que eu me arrumasse para ir à universidade. Levantei-me da cama, escovei os dentes, tirei uma maçã da geladeira – porém não a comi – e arrumei a mochila.

Então, minha vida, tão jovem e hedonista, transformou-se por completo.

Andando pelo pavilhão de aulas, senti-me sonhando e guiado por recém iluminadas memórias oníricas. Decidido, fui até a porta que havia aberto pelo outro lado, onde dentro escondia-se a cachoeira e o lago sagrados, portais para toda a existência. Sem titubear, girei a manivela quase solta e meus olhos saltaram de susto – e satisfação. Avistei você, meu amor.

Três mesas compunham a saleta cinza. Estavam organizadas como vértices de um triângulo, todas elas simples, com um computador. Acompanhando a máquina, o típico material de escritório, nada de mais, nada de menos. Dois garotos e uma garota operavam os equipamentos. Defronte a porta, sua mesa.

Eu esperava encontrar um santuário e encontrei outro: um homem cosmopolita, de todas as cores, que não lembrava nada de fixo, mas todos os fragmentos do mundo. Você, um espelho quebrado, uma foto a ser sempre revelada. Em mim uma flor de romantismo nasceu, como nunca antes acontecido.

“Olá, procura algo?”, quando perguntou, sabia que tinha me descoberto por inteiro.

Saí e fechei a porta. Corri, chorando, e em todas as lágrimas eu tinha certeza de que te veria.

Voltei, dias depois, e vi a placa acima da porta: LABORATÓRIO DE WEBDESIGN. Esperei você sair, meu amor, mas não aconteceu. Estava ficando tarde e fui embora, acreditando que, por ser tão responsável, passaria a noite desenvolvendo projetos.

Em casa, acessei os seus sites. Descobri seu vicio em mitologias diversas, pois sempre colocava como assistente das páginas, figuras como Hermes, Heimdallr ou o Anjo Gabriel. Uma sensibilidade rara nos meninos de hoje em dia, tão preocupados com os deuses bobos de sua música contemporânea. Excetuando-se os personagens divinos, o restante dos sites era típico, mas eu os lia e relia, imaginando suas mãos sobre o mouse e teclado, criando, compondo, jogando com os mundos infinitos da internet.

Os deuses invadiram meus sonhos. Estava contigo, em situações que te exigiam heroísmo, enquanto eu estava indefeso. Salvara-me uma vez das fúrias das bruxas do Bosque de Ferro, lembra? Eu estava amarrado a um pinheiro, seria estuprado e oferecido aos lobos, quando você chegou, assassino e amável, portando a Espada do Universo que liquidou a bruxa em um tempo.

Depois, teve aquela vez que fui levado ao mundo de Hades, espécie de inferno descolorido, onde almas lamentavam sem real vontade de lamentar. Você fez um trato com Hades: ele me soltaria se fosse embora como Orfeu, sem olhar para trás. E assim foi feito, você saiu com a ânsia do abraço pulando no peito, correndo e saltando como uma criança. Qual emoção não foi, quando me desfiz em teus braços. Você estava lá, comigo!

Uma vez mais fui te esperar em frente ao laboratório. Carregava comigo uma poesia, um bálsamo que compusera para aliviar as tensões de não te ver. Meu coração batia forte, porque dessa vez te veria, com toda a certeza. Eu seria para você a doce vítima do mal, que te impeliria a realizações que acreditava impossíveis. Você me pagaria depois, com um amor que nenhuma poesia épica seria capaz de retratar.

A manivela girou, o momento apontava no horizonte, só que era um amigo seu que saía. Meu suor aderiu à camisa de botões rosa.

Esperei horas – nenhum problema, heróis mitológicos são imortais – e seu amigo voltou. Aproveitei quando ele abriu a porta e espiei pelo espaço – você estava lá, seus óculos refletindo luas prateadas. Exclamei de satisfação.

Esperar não é ruim, quando se tem certeza de que a graça será alcançada. Por isso, quase me cortei com a pulseira do meu relógio quando te vi sair de lá, mãos dadas com a menina sem graça, sem seios ou bunda, que trabalhava dia e noite contigo. Tive nojo: pareciam o casal do ano, prêmio IBest, Braskem ou seja lá qual a premiação atribuída nesse caso. Vomitei uma dor invisível, tive contrações estomacais e lágrimas irromperam. O que estava acontecendo? Meu herói estava vencido?

Sei que não, meu amor. O que te faria apagar-me de sua mente? Uma bruxa, claro. Então, me preparei para quebrar o feitiço.

Inicialmente, fiz todos os rituais com flores e líquidos, incensos e crenças – seriam os potencializadores do item mágico principal, que te traria plenamente aos meus toques. Banhei-me longamente, em essências caras compradas em casas esotéricas; pus leite em bacias, para afastar os maus espíritos; fiz minhas unhas, afeminando-as e, enfim, esculpi em pedaço de pinheiro um recipiente tubuliforme.

Fui até a varanda, observar a lua cheia ofuscante. Enchi-me de garbo, e em um pergaminho comecei a escrever esta carta – o recipiente, uma caneta, repleto de seiva mágica. É a prova do amor de nós dois, todas as lembranças lindas dos sonhos que tivemos e a semente para todos os delírios que futuramente teremos.

Em teu ouvido, certa vez, disse: “Não existe corpo que suporte o Amor, que não seja o de um herói, de um guerreiro. Vamos à busca disso, da divindade, juntos. Seja nos sonhos, seja na realidade”. Cada palavra é verdadeira... Acorde, meu amor, e saberá de novo o que nós fomos.

Do seu amado, de sua vítima a ser salva dos perigos, do seu mel e canção,

M. Lopes

"O resto do espaço do pergaminho estava manchado por algum líquido pesado, que não sei dizer se era lágrima ou sêmen".