Coca -Cola

Fecha a porta. No sofá, uma carícia nela. Deseja passar-lhe a língua, sugá-la, beijá-la. Olha-a, pensando nos desafios enfrentados para levá-la para casa: escapara da namorada, enganara a mãe, convencera o pai.

Se alguém descobre, escândalo geral. Notícia correndo de boca em boca, servindo de exemplo de pecado nas pregações e liturgias das igrejas, fotografias grandes nos jornais locais, informações nas rádios veiculadas três vezes ao dia, interrompendo a programação normal para dar notícias atualizadas. Quem sabe se a televisão não apareceria?

Encarar os vizinhos, os amigos, os conhecidos, os colegas de trabalho e os transeuntes no dia seguinte. Embora pouco apropriada, uma alternativa a mudança de cidade e de hábitos.

- Ou vai ou racha, disse, segurando-a com mais intensidade.

- Abra a porta! Alguém gritou de fora.

- Quem é? Perguntou assustado e apoplético.

- Abra ou arrombo.

A namorada, batendo nervosamente o pé direito no chão. Um rapaz, calças no meio do joelho e cuecas à mostra, cortou a fila do cinema. Ela olhava silenciosa, batendo nervosamente o pé direito. Depois de percebê-la encarando-o: - Se está achando ruim, vem me tirar daqui.

Não esperou dois tempos. Voou em cima dele, saiu rolando no chão, aplicando-lhe golpes certeiros no queixo. Envergonhado, orgulhava-se dos aplausos, assobios e gritos de apoio.

Ela estava à porta. Levaria uma surra como o garoto do cinema. Correu para o banheiro, mas antes de se trancarem ouviu a porta da sala estourar.

Quase enfartou quando a escutou mandar abrir a porta. O instinto natural dizia-lhe para não perder tempo, mesmo na iminência do perigo. Pegá-la, encostá-la na boca com força e rapidez. Introduzir a língua nela, sugá-la, chupá-la. Molhadinha, suada, escorrendo, delicada, atraente.

- Cachorro! Desgraçado! Você me faz promessas e eu te pego trancado em casa com ela. - Socos na porta: - Quando entrar, mato você e passo com o carro em cima dela.

As vizinhas vieram em auxílio dos encurralados. Tentavam conter a namorada quando, aproveitando a oportunidade, os dois saíram do banheiro, se meteram no quarto. A namorada pulara o sofá, passara por uma cadeira, esbarrara numa vizinha, empurrara outra e dera de cara na porta.

Encontrou uma faca afiada, usada pelo sogro em churrascos, pescarias e alguns trabalhos rurais. Chutou a porta do quarto uma, duas, três vezes. Escancarou-a na quarta. As mulheres gritavam. Uma delas ligou disfarçadamente para a polícia. Pediu pressa.

Encolhido no canto, o namorado se apavorou.

- Onde está ela? Com você me resolvo depois, mas vou acabar com ela agora. Alisava a lâmina com a mão esquerda.

Olhou embaixo da cama, atrás da porta, embaixo do sofá (razoavelmente gordo, o namorado comprara uma poltrona reforçada sob a qual uma pessoa poderia se esconder facilmente), no banheiro, na banheira. As janelas tinham grades reforçadas contra ladrões.

Dirigiu-se ao guarda-roupa.

Uma vizinha ensaiou intervenção, mas as outras a contiveram. Imaginava-se em entrevistas aos principais jornais, revistas e redes de televisão relatando, chorosamente, o extermínio. Pensava no discurso que faria, na roupa que vestiria, nos gestos de desespero, na biografia exemplar do vizinho.

A namorada revirou gavetas, espalhou meias, cuecas, caixinhas de remédios. Abriu a primeira porta. Retirou camisetas brancas, bermudas azuis, verdes e pretas, mais meias, cinco novos pares de sapato.

Ternos, camisas, calças e cintos na segunda.

Parou na terceira porta. Olhou radiante para o namorado, alisando novamente a lâmina. Mandou pelos ares roupa por roupa: bermudas velhas, camisetas de campanha política, meias desemparelhadas, camisetas de time de futebol, chuteiras velhas, bandeiras rasgadas.

Rápidos, certeiros, raivosos golpes contra a gostosa, a atraente, a deliciosa que se atrevera a flanar com o namorado. Enquanto a golpeava, o líquido saía sob pressão, inundava o quarto, manchava o guarda-roupa e a parede branca. Não as facadas, mas o alarido das vizinhas transtornava.

Vitoriosa, aproximou-se do namorado:

- Se te encontrar novamente com uma Coca-Cola...

* Conto publicado originalmente no 12º Volume de "Contos Fantásticos" (Rio de Janeiro: CBJE, 2008, p. 59-61)