Recomeçando a viver

Isolda de nove anos, mesmo sem muito tempo para pensar em problemas, havia percebido que existia alguma coisa diferente em sua casa. Os irmãos menores, Petrus de cinco anos e Mafalda de três anos, ainda eram muito pequenos para perceber alguma mudança no comportamento familiar.

Era a filha mais velha quem ajudava a mãe a tomar conta dos irmãos menores e, por isso, existia uma forte amizade entre elas. Nos últimos seis meses, Isolda havia percebido um certo desleixo da mãe nas atividades domésticas.

Pela manhã, Isolda acordava cedo e após tomas seu café, pegava o transporte escolar. Quando chegava ao meio dia, ajudava a dar o almoço aos irmãos, que normalmente já estavam de banhos tomados e arrumados com a farda da escola. Em virtude desse desleixo de Maria Rita, a mãe de Isolda, ultimamente quando ela chegava em casa, os irmãos ainda nem haviam tomado banho.

Na parte da tarde, Isolda fazia as lições de casa e após o silencioso jantar, ia para a solidão do seu quarto. Lá dentro, ela passava horas pensando nas mudanças que estavam acontecendo em sua casa e, invariavelmente acabava chorando antes de dormir.

Todo esse ritual já havia sido muito diferente e mais feliz. Na hora do almoço, sempre com a presença do pai, por quem Isolda nutria um carinho todo especial, eles conversavam bastante. Após o jantar, todos se reuniam no quarto de casal, onde Caetano, o pai das crianças, contava-lhes belas histórias para elas dormirem.

Nos finais de semana, os banhos de praia, os passeios de bicicleta, os jogos com bola, os sanduíches na lanchonete... Nada disso existia mais. Tudo havia ficado mais silencioso e monótono.

Aquela nova ordem estava incomodando a todos. Petrus retroagiu em sua evolução e voltou a urinar na cama durante o sono; Mafalda tinha sustos durante a noite e passou a ter medo de escuro; Maria Rita ficou desleixada com a organização do lar; Caetano aumentou os seu plantões noturnos e quase não dormia mais em casa; Isolda, essa sim, estava sofrendo muito. Na escola o seu rendimento havia caído de forma vertiginosa. Ela que sempre foi uma aluna exemplar, agora não conseguia tirar nem mesmo uma nota cinco.

Durante o calmo plantão no hospital de urgências da cidade, doutor Caetano fazia planos para o dia seguinte, data do aniversário de sua filha mais velha que completaria 10 anos. De repente foi surpreendido pelo chamado das enfermeiras de forma desesperada, pois acabara de chegar uma criança com sintomas de envenenamento por ingestão. De imediato, ele foi ao setor de urgência e deparou-se com a criança já em estado convulsivo; tinha espasmos incontroláveis, lábios azulados, olhos virados para cima e salivação abundante. Num ato instintivo, o médico agiu como tal, forrou o chão com um lençol e deitou a criança no chão, levantou o seu queixo para facilitar a respiração, colocou uma toalha entre os dentes dela para que não mordesse a língua e retirou objetos que estavam ao seu redor para que não se machucasse, enquanto analisava a amostra do líquido que estava derramado na roupa da menina. Era soda cáustica. De imediato pediu que a levassem para a UTI.

Ao passar pelo relógio do corredor, viu que já passava da meia noite e, o seu horário de plantão já havia terminado. Mesmo assim, ele queria salvar a vida daquela criança. Entrou na UTI e aproximou-se dela. Foi ai que ele percebeu que a criança envenenada era sua filha Isolda. Achou que era delírio pelo cansaço do plantão e fechou os olhos por alguns segundos. Ao reabri-los, teve a certeza que não era ilusão. Era real. Ficou atônito. As vozes dentro da sala já não eram percebidas por ele. Tudo começou a girar e ele tombou, batendo fortemente com a cabeça no chão. Mais alvoroço dentro da UTI. Ninguém sabia o que fazer. O médico que iria salvar a criança, agora precisava ser socorrido. Doutor Adriano, que estava assumindo o plantão, entrou na sala e colocou as coisas em ordem. Examinou o amigo e o encaminhou para a sala de tomografia, enquanto cuidava do envenenamento da menina.

O dia começava a nascer, e as vidas começavam a renascer. Isolda tinha saído do quadro gravíssimo em que chegara e já estava consciente. Doutor Caetano estava no quarto em recuperação.

Ao meio dia, Isolda pediu para avisarem ao seu pai que ela estava no hospital e que queria falar com ele. A enfermeira tomou um susto quando perguntou o nome e o telefone do pai da menina. Era a filha de doutor Caetano. E agora, como explicar a ela que o seu pai estava internado no mesmo hospital que ela? Juntaram-se todos e conseguiram entender o que havia acontecido. Doutor Caetano ao perceber que era a sua filha que havia chegado envenenada, entrou em estado de choque e desmaiou, batendo com a cabeça e perdendo a consciência. Enquanto discutiam o que fazer, uma velha senhora que escutava a conversa enquanto fazia a limpeza dos corredores, opinou:

- Eu não sou doutora como vocês, mais acho que o melhor remédio para os dois e colocá-los no mesmo quarto. Um ao lado do outro. Amor de pai e filha cura qualquer doença.

Todos ficaram interrogativos com aquelas palavras. Olharam-se em silêncio por um bom tempo e decidiram.

- Vamos contar a Isolda o que aconteceu. Apesar de criança ela está consciente e quando o pai dela acordar terá uma bela surpresa.

Assim foi feito. Ela ouviu resignada e foi para o apartamento onde estava o pai, que ainda dormia pelos efeitos da medicação. Por volta das três horas da tarde, o doutor Caetano começa a acordar, balbuciando o nome de sua filha. Ela já estava ao seu lado. Ele outra vez, ao ver Isolda ao seu lado, pensou ser uma miragem, fechou outra vez os olhos por alguns segundos e ao reabri-los ela realmente estava ao seu lado. Os dois se abraçaram em silêncio por um longo período, que só foi interrompido com a chegada do amigo e médico Adriano.

- Que bom que vocês estão bem. Tem mais gente aqui querendo participar deste momento de alegria.

Logo atrás dele, entraram Maria Rita, Petrus e Mafalda. Foi uma grande emoção. Todos se abraçaram e no dia seguinte, retornaram para casa, recomeçando uma nova vida.

Henrique Gondim