Laranjal / anos setenta

Os meus olhos enfiados na água - vaivém, mais vem do que vai - eu espero. Espero o não chegar de nada, a água vai e vem, diante dessa gente, os corpos na areia, a ânsia do bronzeado, a vida que eles procuram nesse resto de praia, nesse fundo de baía... Eu - também solto, também suspenso, atirado ao mundo como eles, mais só, mais consciente desse vaivém que promete algo, que promete apenas, e dará?

O meu corpo jaz como os outros, na carícia da areia miúda, uma espécie de cócega mexendo com os nervos da gente, um roçar, um deslizar, os olhos contra o sol, o fogo ardendo de mansinho, ardendo mais, ardendo forte, ardendo para valer... Ai! eu pego fogo! Ai! não quero torrar. Ando à procura de sombra. Agora, meus problemas esquecidos por uma única necessidade, a miragem de um recanto fresco, água, uma fonte, qualquer coisa, qualquer pequena coisa, não as grandes coisas que se almejam na flor dos anos, dou meu reino por uma sombra, por um recanto sem fogo, sem torrar.

Ah! o povo do guarda-sol. Como se as pessoas aqui fossem divididas entre os com guarda-sol e os sem. Sem o importante, sem o fundamental. Eu vislumbro agora o terceiro grupo, os que vencendo a concorrência com a máquina chegaram primeiro à sombra das árvores. Viro de costas, o meu nariz encontra a areia, comicha, isso é coisa de nenê, mas acontece também aos grandes - e lá estou eu suando, tresandando a bolhas d'água que vão escorrendo devagarinho para o chão, gotas quentes. Os carros na paisagem natural, os carros invasores, agora os vejo bem, o nariz na areia, os olhos na estrada, o caminho que ainda não ganhou calçamento fica logo coalhado de poeira, aquela onda se despegando do solo e subindo até a copa dos coqueiros...

O homem do picolé se achegando, o carrinho colorido, o homem bufando no dia vermelho, o homem gritando: sorvete, picolé! Não, copo grande não tem mais, não, tem muita gente. Muita gente, estão consumindo. Copo pequeno, a senhora quer copo pequeno? Morango não tem mais. Terminou. É, terminou. Sorvete, picolé! O homem leva a mão à testa, enxuga o molhado, dá umas passadas para a frente, mete os olhos no azul fulgurando à distância, dá um suspiro e berra: picolé!

Um barquinho aparece, ganha a atenção dos atirados na areia, dos atirados no ócio do calor, suantes e não-suantes, habitantes do guarda-sol, ouvintes do radiozinho de pilha, embalados ao som da musiquinha de domingo, o pequeno barco aparece, as velas brancas sopradas pela brisa, uma aragem que vem trazendo as velas, docemente, para junto da margem.

Agora, virado, apoiado nos cotovelos, a frente exposta ao sol, a sede acometendo sem piedade, caído na enorme preguiça de ficar ali, de não fazer nada, de não atravessar ao menos a rua para tomar algo, sem vontade de sorvete ou coisa que o valha, apenas estendido, curtindo esse domingo que é como todos os outros domingos da estação, uma promessa alegre a bafejar os dias de semana, ali fico eu acompanhando com os outros o barquinho, encontrados todos nessa distração, nesse ver as velas brancas chegarem para perto, vindo procurar-nos à beira da praia.

Gosto do festival de bicicletas que se vão enterrando na areia, daí a pouco saem para a circulação. Vamos ferver por aí. A garotada sai, a pele queimada, os corpos enxutos, tangas espremendo as carnes, pedaços coloridos de tecido sobressaindo no bronzeado, lá se vão disputar a corrida da poeira com os automóveis, os grandes e os pequenos automóveis, os táxis em dia de folga ou a serviço, algum caminhão, algum ônibus que despeja gente e se manda no pó.

Olha o barquinho! O dedo da criança em riste, apontando para o fundo, para os limites do horizonte em que céu e lagoa se encontram no mesmo azul sem manchas, sem fronteiras, o vulto branco agora já bem nítido, tomando dimensões de coisa adulta, como se antes fosse um mero brinquedo. O barquinho! O meu olhar se fixa, as velas se dobram, já quase chegando a terra, o barco se inclina, perde o equilíbrio, o barco virou!

O barco virou! Meia praia se dá conta desse fato grave, importante, o mais importante que está acontecendo nessa praia retirada, no escondido dessa baía, aonde as pessoas acorrem para tranqüilamente tomar sol, para queimar a epiderme, para dar um mergulho, para gozar o domingo - e isso para algumas já é um acontecimento, por si só já é significativo. E agora, na praia parada diante dos raios incandescentes, o barquinho virou. Os homens levantam-se, estão na beira, a água chega-lhes à altura da coxa. A platéia acompanha a cena: a ação dos homens, as velas caídas, a sensação de fracasso do barquinho lampeiro que avançava no azul.

Estou queimando, mas esqueci do calor. Também eu acompanho os lances dos navegadores. Também eu, perdido na praia, mais só do que os outros, talvez mais consciente do vaivém da água, mais vem do que vai, esse movimento que promete, e talvez não dê, perdido de tudo, eu vejo os homens tentarem erguer as velas, se esforçarem por recolocá-las no lugar, a despeito do vento que sopra agora, a despeito de estarem os panos encharcados. Todo esforço parece vão. Fecho os olhos, estiro-me, fico pensando nisso como uma parábola, o barquinho que virou, a coragem desmentida, a inutilidade, Sartre, Virginia Woolf, uma confusão de gente com quem de alguma forma convivi espiritualmente, e que me ajudaram a pensar, e que me ajudaram a duvidar. Fecho os olhos e pergunto o que estou esperando, nesse domingo de sol escaldante, torrando na praia, sem água para beber, sem consolo de ninguém, tão só como talvez nunca tenha estado, mais só pelo fato de dar-me conta de que eu não queria estar só, mas, ao mesmo tempo, incapaz de agir, incapaz de me mexer, tocaiado na modorra que pode trazer o calor dessa tarde, a preguiça desse verão.

Conservo o rosto escondido nos braços cruzados, roçando com a areia, com essa areia que faço questão de tocar, os últimos laços com o natural me chamando, os corredores da faculdade cheirando a gente suada, alunos reclamando notas, alunos se abraçando alegres, alunos vivendo os anos que um dia não voltarão mais - e lá começam, ou recomeçam, mais uma vez, pois tudo não passa de um processo ininterrupto, lá recomeçam as costas a arder.

A irritação diante do meu egoísmo me faz mal. Um egocentrismo agudo, qualquer coisa assim, me pinicando por dentro, nesse vir das ondas, nesse movimento que embala o tempo, que embala as pessoas, que embala essa concha travestida em baía... As ondas balançam suavemente, o sol me dá vontade de dormir. Talvez eu tenha perdido a sensibilidade, como talvez os outros a tenham perdido. Tenho vontade de dormir, tenho vontade de esquecer que sou precisamente eu, professor fulano de tal, domiciliado rua tal, solteiro, tantos anos. Quero ser ninado, como criança, pelo murmurejar das ondas.

O barquinho! Olha o barquinho! Perdi os contatos. Venho de longe, de sono ou de sonho, o corpo queimando, estalando a cabeça. Um som entra ouvido adentro, bem perto de mim, voz de guri, entusiasmo de guri. Sento-me, viro para a praia, para todas essas pessoas que brincam na água, nadando, borrifando-se, refrescando-se, coisas boas, coisas muito boas - eu me viro para elas e, mais para lá, vejo as velas brancas enfunadas, o barquinho que se recompôs, que readquiriu dignidade. Será o mesmo? Talvez não seja, talvez no meio tempo tenha sido retirado de circulação, talvez um novo barco o tenha substituído, assim como todas as coisas se substituem umas às outras, mas, de qualquer maneira, é bom ver de novo as velas dançando com o vento, o barquinho deslizando mansamente pela grande extensão azulada.

Lentamente, eu me levanto, enxugo a testa, deixo toda essa gente que como eu um dia surgiu, e lotou a margem da lagoa, deixo esse sol que queima como um desatino, procurando talvez destruir, talvez inflamar - quem sabe? - e vou caminhando devagar para casa, desfilando com os carros, as bicicletas, os rapazes e as moças bonitas.

Béti Mecking
Enviado por Béti Mecking em 22/04/2008
Reeditado em 23/04/2008
Código do texto: T957846
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