Vocação

Há alguns anos, meu pai comunicou-me que era hora de escolher o meu ofício. “Tudo o que você precisa é descobrir a sua vocação”. Eu não era especialmente dotado para coisa alguma. Tinha a estatura e o peso abaixo do normal para rapazes de minha idade, e a saúde era frágil demais para que pudesse praticar esportes. Também era pouco hábil ao piano, conseguindo executar sofrivelmente apenas algumas sonatas infantis. Atravessava a detestável fase da mudança de voz, destoava ao sustentar qualquer nota, impossibilitando-me fazer aulas de canto. Era inapto também para as Belas Artes. Como estudava em casa, com meus próprios pais, a única atividade que tomava meu tempo além dos livros era entreter-me com o que eu chamava minhas relíquias.

Tratava-se de uma caixa de charutos cheia de parafusos, pregos, colheres velhas, peças de um carrilhão desmontado, moedas antigas e elos de corrente. Não eram brinquedos em si. Com o conteúdo da caixa eu criava meus próprios brinquedos: parafusos tornavam-se soldados, colheres viravam canhões, os elos da corrente viravam cavalos e as engrenagens do relógio velho e as moedas formavam o cenário em miniatura para as mais divertidas batalhas. Eu era bom ao representá-las, imitando com o máximo de fidelidade as que eram narradas nos livros de História. Meus soldados eram únicos, e tinham expressões faciais. Eu não conseguia fazer com todos eles, mas os ao menos os generais conseguiam mover os braços e a cabeça. Os cavalos, esses sim, moviam-se todos eles com muita elegância. Quando as cavalarias não estavam lutando, promovia corridas muito animadas entre os de aço e os de latão.

Esses mesmos livros de história é que mantinham nosso modo de vida. Minha casa era decadente, como eram as daqueles que viveram e fruíram os anos antigos. Vivíamos como ecos do passado. Apesar disso, éramos ícones no imaginário popular. Éramos tão pobres que não fosse pela caridade de uma pessoa singular, morreríamos de fome. Ela se chamava Madame Tereza. Era dessas figuras lendárias que há em todas as famílias, embora eu não saiba dizer com certeza qual era nosso grau de parentesco. Dotada de particular aura de feminilidade e delicadeza sutil, parecia aos meus olhos não uma pessoa de carne e osso, mas uma pintura que se movia. Somente algum tempo depois entendi o porquê de sua aparência etérea.

A primeira vez que ela dirigiu-se a mim foi em meu aniversário de quinze anos. Eu odiei tudo. Não queria uma festa, nem mesmo queria que pessoas fossem convidadas. A pompa e a ostentação, insistentemente mantida por meus pais, eram financiadas por Madame Tereza. Isso para mim era vergonhoso. Acima de tudo eu odiei saber que daquele dia em diante, como as tradições familiares ditavam, eu não seria mais considerado criança. Quando ninguém mais estava prestando atenção em mim, e o ponche ou as delícias do coquetel entretinham a todos, escapei para o terraço, e para lá levei minha caixa de charutos. Em minutos, havia feito quase todo um pelotão mongol, dando atenção especial para os olhos característicos, que era a coisa mais difícil de moldar em um parafuso. Foi então que percebi a presença da dama.

“Cansou-se de sua festa?” ela perguntou.

“Desculpe-me, senhora! Não era minha intenção ofendê-la” respondi, sentindo o rosto ficar quente e vermelho.

“Não há problema algum, meu querido. Sei que tornar-se adulto não é nada fácil” disse. Com um gesto lânguido, estendeu a mão e pegou um de meus soldados, o general da Horda Dourada.

“Que lindo é este aqui. Foi você mesmo quem fez?”

“Sim senhora” respondi com algum orgulho.

“E o que mais você sabe fazer?” quis saber, enquanto analisava um dos cavalos.

“Até hoje só fiz soldados, cavalos, canhões, árvores...”

“Saberia fazer um igual a este?” disse-me, levando a mão em direção ao peito. Com um movimento gracioso, mostrou-me um delicado camafeu, que tinha o busto de uma donzela entalhado em pedra branca.

Olhei a proporção e verifiquei dentre minhas relíquias uma que servisse. Tomei uma colher de prata e uma pedrinha que estava por perto. Trabalhei com os polegares rapidamente, e estudei um pouco mais os entalhes que formavam o rosto da donzela, porque era a parte que sempre dava mais trabalho para fazer. Mostrei-lhe a peça pronta, um pouco apreensivo.

A dama fez uma expressão de surpresa e, ao mesmo tempo de contentamento, dessas habilidades que só as mulheres têm em expressar simultaneamente mais de um sentimento.

“Está perfeitamente igual, meu querido” disse-me com um sorriso. “Bem, agora devo me recolher, porque já fiquei aqui por tempo demais”. E olhou-me com ternura, perguntando “Você vem?”.

“Não, Madame. Muito obrigado pelo convite. Quando chegar a minha hora, eu vou.”

E ela se foi. Sobre o parapeito de mármore do terraço ficaram os dois camafeus, lado a lado. Só então que percebi o quanto eles ficaram idênticos realmente. Não pude encontrar qualquer diferença entre as duas peças, de forma que não saberia dizer qual era o de Madame Tereza e qual o recém-feito. Sorri, entendendo a intenção daquilo.

Aos quinze anos, escolhi minha profissão. A joalheria que abri em sociedade com meu pai tornou-se a mais requisitada de que se tem notícia. E, por falar em notícia, nunca mais vimos ou ouvimos falar de Madame Tereza. Eu acredito que ela, finalmente conseguiu o que queria: não precisar mais sustentar seus parentes falidos, e poder ir para onde vão os mortos de consciência tranqüila. Sua herança foi, por fim, dividida entre os familiares. A mim e meus pais couberam suas jóias. E, especialmente para mim, um certo camafeu com o rosto de uma donzela.

Nas horas de folga, entretanto, continuei brincando com minhas relíquias.