Crônicas dos Sonhos V

Paula, creme dental e eu

Não sei bem como se instaurou a confusão. Essas memórias estão escorrendo como areia em uma ampulheta.

Meu irmão me pediu, forçou, e eu fui com ele para uma cidade do interior, onde ele trabalhara certo período. Sua urgência era evidente, embora não me contasse de forma alguma o que poderia ter acontecido. Eu nem sequer perguntei, na verdade.

O ônibus balouçante nos aguardava na rodoviária. Lentamente ia, parando de quando em quando, para que subissem aqueles que o aguardava. Silêncio entre eu e meu mano. Eu lia sobre a vida de duas mulheres – um homem lendo sobre dilemas femininos descritos por um outro homem. O livro era envolvente, uma delas estava presa em uma ilha por seu marido autoritário e a outra aparentemente havia enlouquecido com sua separação. O renomado escritor tinha um estilo interessante, que talvez eu esteja imitando agora, e eu estava gostando muito da história – só não sei se soa justo um livro feminista escrito por um homem [para mim soa].

Meu irmão ainda parecia preocupado – não!, em definitivo não lhe perguntaria o que estava se passando. Ele, a vida dele, era morta. Ele não fazia mais que a tripartite trabalho, comida e sono. Sono se confundia com a atividade apática de ver televisão. Seja lá o que fosse que estivesse acontecendo, deveria, no máximo, ter a ver com dinheiro ou alguma mulherzinha que alguma vez ele tivesse pegado e agora dependia de vê-la para seguir adiante. Meu irmão era de se perder apenas por coisas triviais ou infantis. Ele abriu o último livro da série Harry Potter e se afundou.

Interior da Bahia: em geral, muitas praças, moças bonitas, rapazes sofríveis, pouco cigarro do bom, festas públicas com bebida barata, comida boa, calor escaldante e DVDs escassos. A cidade a que chegávamos não tinha praças bonitas, as moças ainda estavam lá – curiosamente, elas eram meio andróginas, ora com feições ou corpo masculinos, ora com um ralo bigode. Chegamos às cinco da tarde.

“Vou me resolver...”, disse calmamente o mano. “Um amigo meu está fazendo um show aqui hoje. Estarei lá”, disse eu. Trocamos endereços e telefones, anotando em pedacinhos de papel que se perderiam logo que resolvêssemos tudo. Caminhei pela praça principal, vendo cabelos exóticos presos a bobs e grampos. Nasci em uma cidade interiorana que não se assemelha à maioria das cidades do interior, só que também não chega perto da vivência de uma capital. Na cidadezinha que havia recém-chegado eu era exótico, observado pelos moradores, mas livre, despreocupado.

O luar do sertão não caiu poético, arrombou a realidade em uma queda violenta. Lembrei das noites de lobisomem descritas pela minha mãe, quando morava na cidade chamada Santa Bárbara. Estranhas energias pareciam estar mescladas ao ar, porque sentia meu corpo imbuir-se de uma aura entre o heróico, o estrangeiro e o misterioso. Era preciso tomar cuidado.

Faltavam três minutos para o evento e três ruas para chegar ao local desejado.

Três minutos atrasado. Eu andava muito lentamente e com uma mão atrás das costas, como se portasse uma faca. Arrumei justificativa pra fumar um cigarro: as pessoas que fumam são menos visadas, pois fumar é sinal de má índole, caráter incompleto, improdutividade, impotência sexual, falta de saúde e beijo com sabor de cinzeiro – ninguém quer mexer com um fumante, assim afugento o desconhecido.

Após lançar as primeiras fumaças ao céu, da mesma entidade (o céu ) veio um som gutural, que parecia inglês sendo vomitado. Acompanhou o grunhido uma profusão de baterias e guitarras que faziam firulas de heavy metal.

Quase todos fumavam na festa – boa parte deles, maconha. Não usei erva, estava muito alerta e ansioso. O local era bem vagabundo e absurdo: um galpão, que provavelmente estava abandonado e nem fora limpo para a noite; uma luz vermelha desconexa, presa a uma barra de ferro na parte superior do pequeno palco, batia numa lâmpada apagada que refletia a luz, projetando sobre o chão uma interseção entre prisma e círculo que lembrava um coração humano; outras luzes que piscavam no céu, lembrando vaga-lumes ou discos voadores e que, sabe-se lá de onde vinham, pareciam estar embutidas na organização da festa; havia uma grade enferrujada, circundada por uma parede que parecia feita de papelão e onde estavam escritos preços de bebidas e cigarros, e por detrás dessa grade duas moças gordas, pacientes e de saco cheio, mexendo em dinheiro que não era delas; um carro de som potente, que tocava heavy metal – embora a música que eu havia escutado não viesse do carro e sim do show, que, incrivelmente, acontecia no palquinho e disputava com as caixas de som do automóvel.

Tão estranho quanto os elementos que compunham aquele cenário eram os que o habitava naquele instante: eu, de começo; a velha corja de metaleiros que tinham barbas grandes como defesas de um estilo sujo, porém que muitas vezes eu pensava ser uma desculpa para não se preocupar com pêlos pubianos e higiene; um menininho de roupinha colada e olhos grandes, com tiques estranhos e afetados, que parecia um extra-terrestre anêmico; os membros da banda gótica que tocava no palquinho eram mais brancos que finlandeses, usavam maquiagem pesada mas vestiam-se como qualquer interiorano, destoando dos violinos e do piano tocados de qualquer forma; um menino gordo de oito anos, que pulava e suava, e que ficava atrás de mim o tempo todo – sem querer, virei meu braço rapidamente, o queimei com a brasa de um cigarro e fugi dele, bem sucedido; cachorros sarnentos, que com certeza ouviam heavy metal e pareciam amargurados com suas vidas de viajantes; e... Paula!

Descrever mulheres capazes de “parar o texto” é uma atividade típica, telúrica e não fugirei à regra – sendo inclusive mais caricato: ela tinha o brilho dos anjos do Céu , o perfume que nem todos os cosméticos franceses têm, um olhar estonteante que lembrava um par de pinhas maduras e ásperas, cabelos como carretéis de linhas das vovós e utilizava um vestido brilhante, cravejado de jóias que poderiam sustentar um marido por três anos. Paula era fascinante.

Fitei-a, e ela me notou. Minha atenção era só dela e sorriu pra mim – seus dentes eram o supra-sumo da odontologia contemporânea – e do seu sorriso saiu um ar brilhante, como o hálito fresco que aparece em propagandas de pasta dentifrícia, e aquilo me conquistou ainda mais. Andei com molejo até ela, que não parava de sorrir e demonstrar que se importava comigo. Estava a apenas alguns passos – ela como uma estátua fluorenta e antibactericida por nada desviava seu olhar de mim.

“Paula... Que surpresa!”, e nem me esperou perguntar se gostaria de beber algo para me dar um beijo. Apertou-me contra suas pedras preciosas e ... bzzt! ... desconectei-me do mundo. O beijo terminado, recobrei a consciência e sentia o corpo dela tão macio – suas maravilhosas pernas resvalavam nas minhas. Sorrimos branco um para o outro, olhos brilhando de expectativa para a noite – um começo como aquele não poderia dar errado.

“Uau, não imaginava que poderíamos nos cumprimentar assim algum dia”, disse eu.

“Não gosto de perder tempo com papinhos açucarados”, ela disse, felina.

“Ah, você é meu tipo de mulher preferida, Paulinha”.

“E você é homem com H, como gosto”.

“Resolvi tudo que tinha para resolver e nossas passagens de volta estão aqui, para partirmos em quinze minutos”.

Meu irmão surgia quântico ao nosso lado, pose severa, de ordem. Sabia que se dissesse que não iria agora, ele me forçaria de alguma forma. Então, acenei com a cabeça para Paula e começamos a correr.

Não havia muitas vielas na cidade. Já muito tarde, possivelmente passava das dez da noite e a iluminação pública, precária, contribuía para um interessante jogo de pega-pega. Paula, que morava na cidade, ajudava-me com caminhos secretos escondidos entre jardins, becos de mercadinhos e terrenos baldios. Assim mesmo, o faro do meu irmão o guiava sempre para perto de nós. Respirar o mesmo oxigênio que Paula me excitava e não era essa noite com ela que eu perderia. Bastava suportar mais dez minutos. Em nossa debandada rumamos para um beco que terminava em um muro que podia ser saltado. Apoiei-me em algumas caixas para poder subir e quando estava lá no alto, vi que Paula estava parada, tomando ar, cansada. Voltei atrás até ela e a ajudei-a a sentar-se no chão, para que respirasse.

Ela me olhou e disse: “Não agüento mais essa corrida. Depois desse final de semana eu volto pra capital e nos vemos na faculdade”. Consenti com o rosto, triste, e nos beijamos de novo. Em meio a nossa troca de ares refrescantes, meu irmão me segurou pelo ombro e me arrastou até a rodoviária numa velocidade que me fez voar e minhas pernas balançaram como a cauda de um dragão chinês. Fui vendo Paula se afastar, sozinha naquele lugar escuro, sem um homem para protegê-la.

Meu irmão e eu voltamos, silenciosos, para nossa cidade. No caminho, dormi na poltrona.

Lembro de acordar, sem explicação aparente, já em meu apartamento na capital. Devia ter tomado um porre desorientador para não ter mais recordações do meu final de semana. Levantei atrasado para ir à faculdade.

O dia estava em tudo muito comum: o sol forte e amarelado, os jovens estudantes e seus sorrisos joviais, a cantina e seus lanches caros, eu e minha cara de olheiras. Passava pelo corredor em direção ao laboratório quando vi... Paula! Seu sorriso atrativo, suas importantes pernas debaixo de uma sainha curta, uma blusa onde estava escrito: “Not even if you were the last boy on earth”, tudo embalado fumando um cigarro. Perfeita.

Aproximei-me, fitei-a, caminhei com molejo e direcionei-lhe um sorriso. Ela retribuiu. Não perdi tempo e decidido fui até ela. Nada de papinhos açucarados: prostrei-me à sua frente e sorri. Era o momento de reviver as únicas imagens que restavam em minha mente. Ela continuou sorrindo. Sorri ainda maior e ela me olhou com uma expressão assustada. “Preciso... preciso escovar os dentes, licença!”, ela disse, e saiu de perto. Senti-me o maior dos panacas.