Com carinho, Isolda

Renata voltou da escola a pé. Atividade física regular estava fora de cogitação. A economia do tempo só lhe permitia trabalhar e descansar do trabalho, e pouca coisa além. Comer, dormir e namorar, dizia ela, enquadravam-se nessa última categoria, nessa ordem de importância.

— A transportadora deixou uma caixa aí pra você. – disse a empregada assim que Renata pôs o pé para dentro de casa.

— Eu hem! Não encomendei nada. Cobraram alguma coisa?

— Disseram que era só entregar. E deixaram isso aqui também.

Era um envelope, sem remetente, trazendo no anverso o seu nome, Renata Schmidt, com uma caligrafia inconfundível.

— Meu Deus! – disse, sentando-se lentamente no sofá, como quem tenta assimilar assuntos inconciliáveis.

— Tá tudo bem, Re? – perguntou a doméstica.

— Sim. – respondeu a professora, absorta em um pensamento que lhe ocorreu.

Abriu o envelope. Era uma carta escrita à mão. A caligrafia, a disposição das letras, o suave perfume que rescendia daquele papel, tudo evocou em Renata uma profunda nostalgia. Assim estava escrito

"Minha querida Renata

Em primeiro lugar, gostaria de pedir perdão a você por ter descoberto o seu endereço como uma intrusa. Como há muito não nos falamos, recorri à sua Tia Margot, em nome de nossa amizade.

Muitos anos se passaram sem que eu esquecesse a época em que convivemos. Lembro-me da primeira vez em que a vi, ainda muito pequena, muito magra, e trazia as mãos escondidas. As mesmas que nos aproximaram tanto. De suas primeiras lições ao piano até seu último recital, foram destas mãos que as oitenta e oito teclas tornaram-se íntimas.

As coisas em minha casa, como é a ordem da Natureza, modificaram-se bastante desde então.

Você foi uma de minhas últimas alunas, o que atribuo, antes de tudo, à consideração de sua família por mim. Poucas crianças têm hoje o mesmo entusiasmo para a música, e as poucas que conheci, raramente tinham paciência e a dedicação que o piano exige, e que você demonstrou já no primeiro dia. Hoje tudo tem de ser muito rápido, não é mesmo? Ainda por alguns anos, esta casa esteve inundada pela música. Mas, aos poucos, foi cessando até permanecermos apenas eu e “Herr Zimmermann” nos finais de tarde.

Meu Abraão também não ficou por muito tempo. Quando eu lhe dizia que, no fundo, ele sentia falta de ter crianças em casa, era a mais pura verdade – e ser ranzinza, sobretudo com os meninos, era a sua forma de dar-lhes atenção. Sempre que ele colhia jabuticabas, lembrava o quanto você gostava – e ria muito de sua surpresa, Renata, quando viu que elas nasciam do caule da árvore. Quando a casa esvaziou-se de vez, e não havia mais Eduardos e Felipes para ele resmungar e afastar das flores, Abraão diminuiu, e foi embora sem sobressaltos.

Também não quero ser uma portadora só de notícias ruins. O Pingo – lembra-se dele? – encontrou uma companheira à sua altura. Minha neta, Abigail, apaixonou-se pelo cãozinho, e a recíproca foi tão verdadeira, que não pude conter o amor dos dois. Acho que você o mimou tanto que, depois disso, ele só conseguiria ser feliz se você mesma ou outra menina de óculos o tratasse da mesma forma.

A casa ficou vazia e silenciosa. E, como acontece às casas antigas – vazias e silenciosas – tornou-se muito grande para mim. Torna-se melancólica a pessoa que perambula por uma casa onde todos os detalhes trazem lembranças felizes, de tempos felizes, de pessoas que viveram nesses tempos que se foram. A solidão dá às pessoas, em proporções iguais, o tempo para pensar e para recordar.

A música que eu ouvia estava dentro de mim, e ela tocava sempre. E como era doce, como era inexplicável a exatidão com que era executada! Pois, a música que tocava em mim era um eco de um passado muito mais distante do que a minha vida, e a vida desta casa. O virtuosismo é, mais do que a perfeição, a fusão entre o homem e a música. Eu jamais consegui ser uma virtuose. Mas eu buscava ser, e enquanto jovem, dediquei todas as minhas horas, todos os dias, toda a energia para sê-lo, porque de fato existe um caminho para a perfeição. E nós sabemos qual é este caminho, não é? Você o descobriu, e foi sem que ninguém lhe apresentasse. E, talvez, como aconteceu comigo, você tenha desistido de percorrê-lo.

Em minhas reflexões de pessoa velha que cheguei a uma conclusão importante. Faltava ainda uma coisa para que minha tarefa aqui estivesse completa. Não há, como dizem, um significado para a vida. Há um objetivo para ela, uma razão para que seja vivida. E eu entendi, finalmente, que a minha não foi, de forma alguma, uma vida sem objetivo. Vivi tão intensamente para a música, e dediquei tanto da vida para que eu fosse um instrumento dela, mesmo que esta meta não houvesse atingido. Mas em uma única coisa, eu senti ter falhado. Ou melhor, com uma única pessoa. Com você, minha querida.

Por isso, Renata, deixo-lhe este que foi o meu companheiro de tantas décadas. Junto dele, está O Livro, aquele mesmo que você descobriu. Ninguém além de você tem mais direito sobre este volume, uma vez que foi você quem o encontrou, oculto onde nenhuma pessoa imaginava. “Herr Zimmermann” está silencioso há tempo demais, e meu coração sabe que você fará com que seja o seu companheiro ainda por muitas décadas. E que, assim espero, a chama que uma vez foi acesa não se tenha apagado ainda.

Quanto a mim, sinto que meu tempo já passou. A melancolia não traz nada de bom para ninguém. Estou certa de que tudo está em seu devido lugar, agora que deixo com você o meu legado. A música chama por mim, e eu, atendo ao seu chamado.

Com carinho

Isolda"

Sem poder conter as lágrimas, Renata afundou o rosto entre as mãos, e por um quarto de hora, chorou ininterruptamente. Levantando-se, ainda com a carta úmida entre os dedos, caminhou até a garagem onde estava a enorme caixa de madeira. Abriu-a, com alguma dificuldade, com a ajuda de um martelo. Dentro dela, um piano vertical onde, na parte frontal do móvel, lia-se em letras douradas o nome Zimmermann. No mesmo instante, levantou a tampa. Ali estava, exatamente no mesmo lugar, disfarçado como uma peça do próprio móvel, um caderno com uma resistente encadernação de couro. A recordação daquele dia, mais de quinze anos antes, fez novamente os olhos transbordarem. Abriu na primeira página. Tinha o cheiro da madeira, da poeira, dos anos que passou escondido dentro do piano. Era um exemplar raro, em volume único, em alemão, entitulado Das wohltemperierte klavier, O Cravo bem temperado, de Bach. Como se sua velha professora houvesse falado naquele preciso momento, Renata lembrou-se vivamente de sua voz dizendo “O caminho para a perfeição”.

Ainda naquela noite, a professora tomou o telefone. Discou de memória o número de sua tia Margot.

— Oi tia. É a Renata.

— Oi, meu amor! Quanto tempo?

— Tia. Recebi um presente hoje. Você tem idéia do que seja, não tem?

Um breve silêncio do outro lado da linha.

— Tenho. É o piano, não é?

— É. Tia... por que a senhora não me ligou?

— Isolda pediu que não fizesse.

— Quando foi que ela morreu?

— O quê?

— Ela me deixou um piano de herança. Ela deixou uma carta e... – interrompeu, com a voz embargada. Tia Margot riu.

— Não, meu amor. Ela não morreu não.

— Mas então...

— Ela fez coisas que eu não esperava, que ninguém esperava na verdade. Entregou as chaves da casa para a filha, vendeu o Sinca Chambord do Seu Abraão, juntou as economias e foi para a Alemanha. Disse que ia fazer a pé um tal caminho, entre...

— ...Arnstadt e Lübeck?

— Isso mesmo! Como você sabe?

— Nada, tia. É uma coisa que eu já devia ter pensado. Acho que perdi minha sensibilidade.

— Você está bem?

— Ganhei um piano, tia Margot! Quem não estaria? Bem, preciso desligar.

— Está muito ocupada?

— Não, não. É que tenho um encontro com um velho conhecido.

***

Três semanas depois, o carteiro entregou a Renata um telegrama.

"Minha querida Renata

Espero que você, Bach e “Herr Zimmermann” estejam se divertindo. Cheguei ontem a Lübeck. Hoje à tarde há um concerto na MarienKirche e – adivinhe só – uma mostra de algumas das peças do Cravo Bem Temperado. Fiquem bem vocês três.

Com carinho

Isolda"

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Comentário do Autor:

Os dados biográficos de J.S. Bach referem-se ao evento que mais me atraiu para ele, que mais tornou-o um ser humano aos meus olhos: a intempestiva viagem que ele fez a pé de Arnstadt (no centro) até Lübeck (ao norte da atual Alemanha). São mais de quatrocentos quilômetros! Ele fez isso para assistir às apresentações públicas de Buxtehude, o mais famoso organista da época. Eu mesmo fiz uma coisa parecida quando tinha a mesma idade. É sinal que nós, reles mortais, e os gênios temos mais em comum além da origem.