COMO SE O NADA FOSSE ALGUMA COISA.

Ele vinha andando pela calçada, e não demonstrava ter a mínima noção de para onde ia. Simplesmente andava. Não tinha nada nas mãos, e seus pensamentos silenciosos eram um mistério. Seu ar não era importante, nem seu porte majestoso. Quem arriscasse adivinhar-lhe a idade, com certeza se enganaria. Seus sutis cabelos brancos eram bem distribuídos de forma a lhe dar um homogêneo tom grisalho. Seu olhar existia, mas como se não existisse. Não demonstrava traço personal algum. Talvez não fosse alegre, nem triste. Sinceramente, esse homem me intrigava.

Vestia um tom pastel, equilibrado entre o sisudo, e o esporte. E seu andar não era apressado, como o de quem tem negócios. Com certeza se perguntado de como estava, nunca que responderia com um lugar-comum do tipo: “estou correndo atrás” ou, “vou à luta de sempre”. Talvez nem respondesse.

Mas o que mais intrigava não era o apelo estético, ou a falta de pistas que seu ser subtraia de si mesmo. Era um ritmo que emanava, de seus poucos e rápidos gestos. O jeito de alisar o cabelo, e de olhar para o nada, como se o nada fosse alguma coisa. Se eu fosse místico, ou músico ousaria dizer que ele tinha uma vibração, é que esta era um coma atrasado em relação ao fá sustenido que soa da terra.

Além da sutileza dos gestos, seu andar retilíneo como de máquina, revelava um equilíbrio interior, que antes só era legado aos monges. Mas sobrepujava nele o humano, de fato, não era frio. Talvez tivesse até amado um dia. Assim o digo pois uma paixão, mesmo passado três anos, ainda deixa traços de displicência no andar e no vestir de quem a teve. Nele não; era demais vigilante pra ter amado próximo.

Céus! Para onde poderia estar indo um homem assim nesse passo? Duvido que haja endereço que o aguarde. Ele não possuía o olhar curioso de quem procura um logradouro. Nem engolia a dobra das esquinas com ânsia de tocar alguma campainha. Caminhava numa ascese mundana. Cheguei a querer criar nele uma ponta de arrogância, mas seu silêncio não me permitia.. Mesmo não existindo auréola nenhuma sobre sua cabeça, era como se fosse um pecado. Seu corpo mal delineava sua própria sombra. Caminhava na tarde, como se fosse três da madrugada.

Não resisti. Eu tinha que saber. Resolvi segui-lo. Ora começava a me sentir um detetive frustrado. Desses que se vendem em classificados. Ora me sentia prestes a descobrir o enigma do século. E o homem caminhava como se o mundo já tivesse acabado, e ele fosse Deus sobre os escombros. Os pombos da praça não o comoviam, nem os pedintes, nem o barulho. Era como se sorvesse com prazer o monóxido de carbono. Ou não soubesse distingui-lo do oxigênio. Não reparava nos prédios, nem lia os cartazes. Talvez a única coisa que quisesse, era que a rua não tivesse fim.

A leveza no passo, me fez lembrar o andar de um curador de museus. Mas existia uma aura de naturalidade em volta desse ser, que nem de longe se encontra nos estetas. Ele caminhava na cidade, como se supõe caminhar às almas nas casas abandonadas. A cada passo, cada minuto, cada cruzamento, eu pensava mil coisas. Atormentado minha única certeza, era de que na minha frente seguia um homem incólume, sem pensar em nada.

Li nos tratados budistas, que qualquer um que atingisse esse estágio de andar sem pensar , nem se incomodar com nada, seria um iluminado. Não poderia ser possível que esse cidadão comum tivesse atingido o nirvana. Tampouco era possível se traçar um perfil mínimo dele.

Seus sapatos. Brilhavam como se tivesse um campo de força que os livrasse de toda poeira. Não faziam rastros. Algo me diz que os sapatos de Fernando Pessoa deveriam ser assim. E um detalhe me chamava muito a atenção. Não usava relógio. Seu descuido com o tempo era latente. Nada no caminho fazia esse homem desviar o olhar de seu objetivo, que deveria ser caminhar por falta mesmo de um objetivo. Nem o cheiro do churrasco grego, nem as saias levantadas pelo vento, nem as placas de compra-se ouro. Nada. É como se a estátua de Castro Alves abandonasse o pedestal, e de braço em riste, descesse a Rua Chile, sem perder o ânimo do bronze. Eu continuava o seguindo, como se o vazio dele, fosse um buraco negro me sugando.

Não se sentiu pequeno diante da catedral, nem fez o sinal da cruz. Atravessou o centro sem notar detalhes nos velhos prédios. De tanto o observar, comecei a esquecer de todo o resto. Eu também já não via detalhes, e mais que ele, não sabia para onde ia. Simplesmente caminhava, talvez a curiosidade mesma houvesse cessado. A cidade ficou para trás, o homem seguia na direção da ponte suspensa, que separa o centro do subúrbio.

O sol começava a cair e o tráfego dos carros aumentava a cada minuto, assim como meu desejo de entender aquele destino.

Aproximei-me um pouco mais. Ele não notou minha presença, eu quase lhe pisava os calcanhares. Comecei a seguir seus passos, olhando obsessivamente para o verniz daquele sapato brilhante. Novamente um vácuo se apoderou de mim. Não existia mais ponte, tarde, busca, ou sentido. Seguia como se fosse ordem. Não via nem mesmo o homem, somente seus sapatos. Tentava imprimir no chão seu rastro invisível. Ele subiu na amurada da ponte. Subi. Andamos sem medo do abismo. Seu andar era desde sempre retilíneo. Eu já era metade ele. Andava solene. Os carros buzinavam tentando nos avisar de algum perigo. Ele parou. olhamos a baía como se ela fosse nada e nada fosse alguma coisa. Uma brisa anunciou a chegada da noite. Ele alisou o cabelo. Sem perceber fiz o mesmo.

O homem pulou da ponte. Antes que nossos corpos encontrassem a água gelada da baía. Ele me olhou, pude notar um esboço de sorriso no canto de sua boca. O homem sabia para onde ia.

Ramiro Luiz