A FAINA MAIOR

Naquela tarde a Joana chegara a casa acompanhada de três colegas.

- Boa tarde, Avózinha - exclama indo beijar as faces enrugadas da velhota que estava sentada numa cadeira de “tabua”, baixa, a fazer umas peúgas de lã! Era um velho hábito que lhe ficara dessa vida do mar, em que levava horas e horas a “tricotar”, para fazer as dúzias de meias grossas que eram necessárias, e que o avô levava para aqueles mares gelados, perto do Pólo Norte.

Sentada com as suas lunetas na ponta do nariz, junto a uma mesa redonda, donde se via um candeeiro eléctrico iluminado, e sobre ela, um álbum de fotografias. Era enternecedor, ver como avó ainda fazia lindas rendas e vistosas malhas arrendadas naquela idade!...

Mas avó... ainda vê fazer “tricot”? A luz está fraca e dá cabo da vista!

Fora habituada a grandes poupanças e ainda conservava o grande “espírito de produzir e aproveitar tudo.” Imaginem!...Até os lençóis eram “arremendados” Igualmente estava habituada a deitar “fundilhos” nas calças de mar e terra do avô... E quantas vezes me resmungava:

- Estão mal habituadas, as minhas netas! Têm fartura... mas dantes...era uma vida de miséria...por isso, o avô, tal como outros pescadores algarvios, iam para a pesca do bacalhau nos bancos longínquos da Groenlândia e Terra Nova, porque era a única alternativa que tinham a uma vida sem ganhos, de fome, de miséria e de sacrifícios. Por outro lado, tinham muitos filhos para sustentar e os ganhos escasseavam ao longo da nossa costa marítima. Eram homens valentes que desde pequenos se habituaram a desafiar o mar, sem receio de deixar nele a própria vida! E lá iam aos mares da Beirinha, do Charnal, desafiando o mar em todo o litoral, e indo até mais longe, nos descobrimentos, ao Brasil, a Marrocos sempre a pescar... mas aquela na luta do seu ganha-pão – a da faina bacalhoeira, era sem dúvida uma vida de escravidão! Quantos não tiveram que ir na tenra idade para essa vida? Quantos perderam os pais no alto mar? E quantas noivas ficaram por casar? Quantas mães sem os filhos? Quantos lares desfeitos, como a espuma?

Enquanto no seu pensamento, surgia um desfile de recordações, as raparigas acercaram-se carinhosamente da anciã.

- Mas olha que grande habilidade! - exclamam as duas amigas ao mesmo tempo.

- Ai, minhas meninas, isto já não é nada... Noutro tempo sim, nós aprendíamos muita coisa: costura, bordados, rendas... e fazíamos o nosso enxoval! Era tudo de chita, de popelina,

ninguém usava essas sedas... tafetá, moirée, nylon, organza... alguma vez? Ainda me lembro do meu marido trazer de Saint Joanes, quando veio dos Grandes Bancos, uma combinação de “laine” (nylon) mas eu vestia aquilo assim transparente? Deus m’a mim livre! - as raparigas deram um sorriso com uma certa ironia.

E a avó de Isabel, continuava... fiz lindas rendas a “crochet” para enfeitar as minhas “anáguas”, até aprendi a renda de bilros e da “naveta” e tinha tanta habilidade que ainda ajudava a consertar as redes de pesca ao meu marido.

- Mas afinal o que é que avó está agora a fazer?

- Olha filha, isto são umas meias grossas para a faina do mar...Ficou-me o vício quando fazia para o meu marido levar para a faina do “bacalhau”.

- A propósito, a avó sabe porque trago hoje aqui estas duas colegas?

...É que o nosso professor de Português, mandou-nos fazer uma pesquisa para a elaboração de um trabalho, sobre a “Faina Maior” - que nós sabemos ter sido - “A Pesca do Bacalhau”, já fomos ao Museu, fazer uma visita de estudo... mas a avó que “sentiu na pele” esses momentos, por isso nós queremos saber um pouco mais. Pensamos que o seu testemunho enriquece o nosso trabalho.

- Não me digas que querem saber coisas sobre essa vida!?

E a avó suspira... Ai... ai... quando eles partiam a família ficava de luto carregado, sem saber se aquele

seria o último abraço. As mulheres cobriam-se com xailes negros que contrastavam com a brancura do

casario. Tudo era melancolia! Junto à praia, as mulheres lembravam bandos de andorinhas...os velhos reuniam-se junto ao cais, olhos vidrados no azul sem fim, contrastando com as gaivotas, os barcos veleiros, as ondas de espuma branquinha e as crianças que brincavam na areia fazendo castelos de areia.

- Sim, nós desejamos fazer-lhe algumas perguntas, está bem?

- A avó respondeu com um acenar de cabeça, afirmativamente.

- Sabe que agora é necessário que cada pescador tenha uma certa formação técnica especializada? Mas dantes como era?

- Ai era, não era, andava lavrando, nasceu sem fala e morreu penando... e continuava meio resmungona.

Ó Meninas isso são coisas da CEE... Cursos e mais Cursos, não faltam... até para apanhar os mariscos é preciso carta! Antigamente, ninguém gastava dinheiro a dar cursos aos homens, elas aprendiam indo ao mar, uns com os outros...

- Mas isso era muito mau, porque assim não tinham reforma condigna? Diz uma das raparigas, a Ana.

- Lá isso é verdade! Sabe a reforma que deram ao meu pai, quando ele estava no bacalhau e o lugre onde ele ia, foi torpedeado por um submarino alemão, uma vítima na guerra que ficou com as balas no corpo? Teve direito apenas a 50$00 de reforma em 1956. O mesmo aconteceu com a viúvas da Tragédia do Lugre Maria da Glória” que deram os homens como desaparecidos e nada receberam, muitas ficaram na miséria.

- Bem, vamos mudar de assunto e explique-nos, por favor, porque é que os rapazes desta vila iam tão novos para essa arrojada faina?

Uma das razões era para se livrarem da tropa, era a única maneira de fugir à tropa, à guerra do ultramar e de ajudar os pais, uma vez que naquela época, era a actividade piscatória mais rentável e as necessidades eram muitas... mas... escrevam aí meninas, também... que os homens quando abalavam era como se fossem para a morte e faziam a promessa de nunca mais voltar aquela vida de escravidão, justificando quantas atrocidades foram cometidas.

- Vocês, filhas, nem sabem o que nós passámos, nem dão valor ao que hoje podem desfrutar. Nós nem um brinquedo, nem um chocolate, ou quaisquer outra guloseima. As crianças faziam bolas de trapos, bonecas, barquinhos de cortiça, papagaios de papel, por onde voavam os seus sonhos!....

Enquanto a avó ia falando, alguém bateu à porta. Era Tia Ermelinda do Moínho, comadre da minha avó que a vinha visitar.

- Boa Tarde, comadre “Fracisca”! Boa tarde Meninas!

- Boa-tarde! - repetem todas.

- Ah! Hoje tem mais visitas! - exclama Ermelinda.

- É verdade, tenho aqui umas amigas da minha neta e ainda bem que você veio que tem melhor memória que eu, que elas querem saber coisas da Faina Maior, da vida do Bacalhoeiro... Lembra-se quando seu marido foi de “verde” ao bacalhau?

- De verde? Porque se vestiam dessa cor? Então no mar havia algum “lagarto”?

- Se havia lagartos... ai se havia... ainda pior que lagartos, mas verde, verde... eram assim designados os pescadores que iam pela primeira vez à faina do bacalhau.

- Quem dava as ordens a bordo dos lugres bacalhoeiros? Pergunta uma das companheiras de Joana.

- Ai... quem dava as ordens, desde os comandantes ao imediatos, aos contramestres....eram tudo boa gente! Ai, ai boa gente, boa gente que o mê pai leva a Larache!

- O meu Zé contava que esses eram terríveis, exerciam a maior repressão sobre os homens, chamavam-lhes: malandros, bandidos, pulhas... e enquanto eles com as mãos gretadas apertavam as nepas com que alavam o trol iam baixinho murmurando “ já não me dizes mais vezes” e obrigavam-nos ao trabalho de vinte horas por dia.

Segundo os depoimentos dos nossos pescadores, a comida era de fome, trabalhavam de sol a sol e iam para longe do navio nuns barquinhos pequenos - os dóris - levando um termo de café e pão bolorento. Se não apanhassem nada nesse dia não comiam, os cozinheiros eram instruídos para não lhes dar de comer.

- Ainda me lembro de alguns episódios contados por alguns deles. Foi no dia 13 de Maio nos Grandes Bancos num mar chamado “Pierre” a que chegou o Gil Eanes, num grande dia de névoa. Como não havia peixe, este capitão não deu de comer aos homens senão à uma hora da noite e mandou espancar os homens. Mandavam arrear os dóris para a pesca mesmo com temporal - o Conceição Vilarinhos foi um dos que mandou arrear com arrogância. Um pescador que tinha uma Nossa Senhora de Fátima, ao fazer os louvados, com a sua fé... ele nem a santa respeitou. Um algarvio de nome Chico Pedro Larencinha até lhe fez uns versos, que tenho ainda em mente.

Capitães do bacalhau

Não há um sequer perfeito

é tudo a mesma canalha

e não há um só direito.

Ó tu Henrique Vilão

Capitão do atentador

dos homens és um horror,

o teu olhar mete respeito.

Não pode andar satisfeito

Quem anda na tua companhia,

puseram-te o “Pancadaria”

e já não há um só com jeito.

Tira a vida a quem trabalha

Este capitão malvado

Pois faz parte da canalha

Que só come pão roubado!

Lá por teres bons colarinhos

O carrasco com chicote

Faz parte desses mesquinhos

Que comem do nosso “bote”

- Porque quanto tempo iam para tão longe pescar?

A avó recomeça a contar:

... Normalmente os lugres partiam de Lisboa nos meses de Março e Abril. As famílias iam despedir-se, por vezes a Lisboa. Depois rumavam Atlântico afora até aos mares da Terra Nova e ”Groenlândia”.

Quando chegavam os dóris eram sorteados”. O sorteio era feito por números.. Se eram vinte, tiravam 20 bilhetinhos de dentro de um boné de oleado e cada um tirava o seu. Depois do sorteio cada dóri recebia um nome e começavam depois os pescadores a prepará-los. Começavam às 4 da madrugada.

- Bem penso que estamos bastante mais elucidadas - repete a rapariga que anotava no caderno as informações.

- Mas a nossa professora, fala-nos nos louvados: O que eram os louvados?

Os louvados era uma oração de trabalho estratégica para dizer que estava na hora de trabalho:

OS LOUVADOS

“Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo

para sempre seja louvado.

Em louvor da Virgem Maria.

Venha o homem do leme para baixo

e vai outro para a vigia

Mas como isto está tudo acabado

Vamos em hora para o trabalho.

Seja louvado e adorado

O Santo Nome de Jesus

Em louvor das cinco chagas

Está Deus pregado na cruz

Em louvor da Virgem Maria

Levantai-vos camaradas

Quatro horas é de dia.

Vamos embora todos comer

que temos de ir para a pescaria

Seja louvado nosso Senhor Jesus Cristo

- Embora, rapaziada, vamos a isto.

Mas ainda uma última questão, não nos disse, como é que eles não se perdiam do navio, perante o nevoeiro cerrado?

- Ai... aqui também há muito de trágico... às vezes o som era dado de bordo do navio e noutros casos orientavam-se pela bússola. Mas a verdade é que muitos desapareciam, remavam debaixo do nevoeiro, a uma lonjura tal que chegava a ultrapassar 40 metros, se fossem atrevidos...e muitos mercê da sua heroicidade, arrojo e valentia.. por lá ficaram sepultados. Depois quando os pobres chegavam ao navio, os capitães mediam o peixe a “olho nú” e apontavam os quintais de bacalhau apanhados pelos pescadores, conforme muito bem lhe apeteciam. Muitos sentiam-se roubados e diziam os mais corajosos: “Não direito que nos roubem o nosso suor e o pão dos nossos filhinhos.” Mas esses desumanos não tinham coração, ainda o tinham mais gelados que as montanhas de “icebergs”.

- Já agora diga-nos mais uma coisa:.. como eram as Comunicações nesse tempo?

- Nessa altura as comunicações eram difíceis. Os pescadores e suas mulheres não sabiam escrever a maior parte, a ausência no mar, não permitia o tipo de comunicação se não através de recursos precários. Havia um momento de comunicação com as famílias, com pompa de circunstância, em que emitiam as mensagens feitas por gravação, através da Emissora Nacional e Rádio Renascença - cujo momento passou a chamar-se: A HORA DA SAUDADE!

- Mas vocês imaginam a alegria nesta vila quando recebiam alguma carta? O mulherio corria a vila....quando havia notícias do bacalhau, o boato corria de boca em boca... Havia sempre um receio e angústia espelhado no rosto das mulheres que percorriam as ruas... de alma ansiosa e coração palpitando de ansiedade...

- Relativamente à Higiene? Como era? Ainda era mais uma pergunta ficara por fazer...

- Bem... vá lá... dizia pachorrenta a avó... que mostrava sempre vontade de colaborar...

- Ah!... A roupa daqueles infelizes... só era lavada em casa quando chegava, porque lá. molhada na água salgada, punham-na ao sol a secar para vesti-la de novo .

- Já chega!... diz peremptória a Joana... com o material que recolhemos que alguns pescadores nos ofereceram, devemos fazer um bom trabalho. Amanhã, vamos a Alvor entrevistar pescadores para enriquecer o trabalho!

- Muito Obrigada! Vamos fazer um grande trabalho sobre a Faina Maior e sobre os

nossos bravos homens do mar, que honraram esta terra

de pescadores.!

Ainda bem que na nossa escola, se preocupam com o nosso património cultural ....esses heróis sem nome que foram heróicos marinheiros que honraram a nossa terra e Portugal, e deviam ter honras de museu onde se mostrasse as nossas artes piscatórias de quantos arriscaram a vida ao serviço da Pátria - os grandes Soldados do Mar!

zezinha
Enviado por zezinha em 22/05/2008
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