Inércia

Chorou um choro calmo, contido, resignado. Seu rosto não se contraiu dessa vez, como das outras. Estava conformado. Não poderia fazer nada para mudar a situação, como sempre planejava. Não poderia simplesmente colocar uma mochila nas costas e sair à procura de uma vida nova. Não tinha coragem para isso. Nunca havia ficado mais de uma semana fora de casa, e ainda assim, em um lugar seguro e com dinheiro de sobra. Não era rico, mas foi a única vez que teve mais dinheiro do que precisou. Dinheiro! Uma coisa tão suja e tão necessária! Nunca havia precisado tanto disso... Na verdade, nem sabia se realmente o precisava. Dinheiro para fugir. Será que adiantaria? Não estariam seus problemas dentro de si mesmo? O que um psicólogo diria sobre isso? “Odeio psicólogos!”. Era contra a terapia. Preferia morrer em uma crise de pânico a ter seu passado revirado por um profissional que não vê a hora de atender o último paciente do dia e gastar o seu dinheiro no fim de semana. “Odeio psicólogos!”. Parou de chorar. Seus olhos já estavam cansados. Pensou nos pesadelos daquela noite e sentiu medo. Tanto quanto de manhã, quando acordou. Estaria fadado a isso? Essa solidão, essa desespero , onde somente desconhecidos tentariam ajudar. No seu quarto, com a porta fechada, ele temia. Pior que não ter seus sonhos realizados, temia não ter mais sonho algum. Foi-lhe tirado à força o direito de sonhar. Como em um aborto. Queria gritar, falar o que sentia, mas sabia que isso o faria sentir ainda pior. Desde pequeno, aprendeu a esconder o que sentia. Ninguém o levava a sério mesmo quando se machucava e chorava de dor. Dor? Não seja fresco, um cortezinho desse não dói, nem deixa cicatriz! Sim, mãe, ele deixa cicatriz. Uma cicatriz profunda e que ainda dói. O corte não, as palavras, as risadas, os olhares, o deboche nojento, todos debocham dos fracos. Aprendeu que ninguém, ninguém mesmo se importava. Cresceu sozinho, dentro de uma ostra. As pessoas só viam a concha, o ser que havia dentro dele ninguém jamais conheceria. Mais tarde aprendeu que certas pessoas têm paciência e bondade para ouvir quem precisa. Foram esses meros conhecidos que o ajudaram em alguns momentos quando desabafos eram necessários, mas ninguém compreendia realmente. Ele não se deixava compreender. Restava fechar a brecha da concha e enclausurar-se novamente. A mágoa corroendo-lhe por dentro. Melhor do que uma ostra, criou um avatar. Um ator magnífico, interpretava vários personagens por dia, um para cada situação. Algumas vezes insensível e frio, outras humano e piedoso. Esqueceu de quem era, não sabia em quem havia se tornado. Na rua era Judas, no seu quarto Jesus Cristo. Na escola era um louco, no trabalho um robô e com os amigos um “cara legal”. E agora estava ali, fechado novamente em seu quarto, que chegava a ser assustador por saber tantas coisas. Via-se refletido nas paredes, no teto, no chão, na janela. Começava a dizer o que pensava, a ser ele mesmo. Mais uma lágrima quente escorreu pela sua face. Ele a enxugou, sorriu e brincou com a pessoa que bateu na porta. Mais uma personagem.

Virgínia Vizine
Enviado por Virgínia Vizine em 14/06/2008
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