Sustos

Começa a tarefa de casa quando um amigo, subindo no muro e sobre ele equilibrando-se, grita. Que tal irem ao rio?

Lembra-se do pai: se recebesse reclamações da escola...

Recusa o convite. Ao saber o motivo da preocupação, o amigo compromete-se a solucionar os problemas de matemática.

Veste calção de banho, guarda o material escolar embaixo do colchão, fecha a porta da cozinha cuidadosamente, mas não se esquece de deixar a janela do quarto entreaberta: precaução.

Coberto de lodo, o atalho ao rio leva invariavelmente os transeuntes ao chão de modo que, os dois amigos acompanhados de cinco parceiros, entram na água com os braços, os cotovelos, as costas e as nádegas doloridas.

A algazarra, a gritaria e as brincadeiras dos meninos atiçam os instintos de um cachorro. Aguarda o deslize da dona ao abrir o portão para pegar algumas verduras de uma charrete. Em pouco tempo, rasga a roupa depositada sobre algumas folhas grandes.

Os protestos aumentam a fúria canina. O cachorro atira-se na água, movendo-se rapidamente. Três dos garotos alcançam a margem contrária, sobem em árvores. Fazem caretas e gargalham aos remanescentes que, faces assustadas, esforçam-se no rio.

Pouco menos de dez braçadas antes de chegarem, um deles, precisamente o último, desaparece. Todos salvos em galhos altos, espantam-se quando o procuram.

- Esse maldito o engoliu, grita um.

- Ele deve ter morrido de medo, afirma outro.

-Ai, meu Deus! Geme o terceiro, o garoto convidado. Como explicar ao pai a saída de casa sem sua ordem? Como responder às perguntas sobre o sumiço do amigo? Quem fará as contas de matemática para entregar na manhã seguinte?

O cachorro enfada-se, atravessa o rio e desaparece. Descem, chamam, gritam, andam nas margens, revolvem matos e capins, perguntam a alguns pescadores de um menino de calção vermelho.

Inconformados, rumam para casa. Prometem silêncio total. Caso ninguém descubra o corpo, escapam da justiça.

À noite, enquanto pensa numa maneira de faltar à escola, ajoelha-se para rezar pela alma do companheiro cujo corpo, pensa comovidamente, ultrapassara os limites da cidade e se encontrava vagando pelo oceano. Antes de concluir a reza, o pai entra no quarto, acende a luz:

- O dever de casa está pronto?

Responderia que sim, mas ao abrir a boca vê o amigo desaparecido coberto de lama, de folhas e de pequenos ferimentos. Grita. O pai se assusta. A imagem desaparece. Essa alma quer reza, diz para si mesmo. Veio me levar. Dribla as perguntas do pai. Não dorme. Olha constantemente para a janela. Esperança sombria de vislumbrar novamente o espírito. Por que não corria ao céu, ao purgatório ou ao inferno? Por que o azucrinava?

Dia seguinte, a professora adverte. Nenhum esforço para resolver as contas no fim de semana?

Os alunos indisciplinados recebem um comunicado que deverá trazer assinatura do pai. O comunicado informa da falta de responsabilidade do filho, da advertência que recebera, do registro de seu nome no Livro Preto da escola e da necessidade inexorável (de onde eles tiravam essas palavras?) do comparecimento do genitor à unidade escolar em uma semana.

Chorava. Pela surra que levaria do pai. Pelo amigo que retornava para levá-lo. A caminho de casa, não cumprimentou a mãe do colega desaparecido. Sentia falta do filho? Por que não telefonara para perguntar se ele estava em sua casa, como sempre fazia? Por um instante pensou que ela estivesse numa conspiração para prender os assassinos. Iria para a cadeia.

Ao portão, frio na barriga, moleza nas pernas, batimento acelerado no peito, respiração desaparecendo...

Entra em casa. No sofá, o espírito da noite anterior sentado, sorrindo, tomando refrigerante. No quintal, o pai afia um machado. Influenciado pelo espírito que procura arrastá-lo ao outro mundo, destrinchá-lo-ia. Na sala, olha novamente o amigo sentado, fita o machado...

- Oi.

Novo grito ecoa. O amigo bebia pausadamente o refrigerante.

- Vai embora espírito de treva. Vai embora...

- Pára de palhaçada. Que espírito de treva?

O cachorro aproximara-se. Inexplicavelmente encontrou um canudo de mamão. Uma extremidade na superfície, outra embaixo d’água, recobrara o fôlego e nadara discretamente até um lugar seguro.

- Como estou feliz em saber que estás vivo!

- Eu estou vivo. Porém, devo avisar que teu pai encontrou no chão o comunicado da escola que trazias na mão...

- Otávio!

* Conto publicado originalmente no 15º volume de “Contos Fantásticos” (Rio de Janeiro: CBJE, 2008).