ROTINA

O carro estaciona. Ela vai até a janela, e afastando um pouco a cortina, observa seu visitante. Crianças gritam estridentemente, correndo pela calçada. A porta do carro abre, e um segundo após, ele está de pé, contemplando a casa. Seus movimentos são lentos, porém precisos. Olha para trás e para os lados, fecha e tranca a porta do automóvel. Ela desce a escada. A campainha soa, e a porta abre.

Sem uma palavra sequer, entra. Resignada, o recebe, cabisbaixa. Fitando-a nos olhos, guia os lábios em direção aos dela: um beijo suave, frio e rápido. Nervosa, leva a mão aos lábios como se tivesse sido picada por um inseto. Seus olhos estão mareados de lágrimas. Displicentemente, uma delas cai. Sem qualquer comentário, ele atravessa o corredor que leva à sala de estar. As chamas da lareira iluminam e aquecem todo o ambiente em volta. O relógio marca 16 horas, enquanto o pêndulo vai e vem sem parar, cumprindo seu ingrato ofício. Ele para no meio da sala e examina cada centímetro, cada objeto, detalhe. Ela chega, surpreendendo-o perdido em pensamentos.

- Café? - sugere.

- Anh...Sim, por favor.- responde, distraidamente.

Sai a passos leves, preguiçosos. Ele deixa-se cair na poltrona, ao lado do fogo. De um dos bolsos, saca um maço de cigarros, acende um, aspirando a fumaça com vontade, apreciando as labaredas. Suas mãos tremem. Ela volta com uma xícara numa bandeja prateada. O conteúdo na xícara fumega. Ele agradece e serve-se, sorvendo o líquido aos poucos. O silêncio, intrigante, ainda continua.

- Ótimo. - elogia.

Ela retribui com um sorriso tímido, sem força. Pousa a xícara na bandeja, e ato contínuo, levanta-se, jogando o que resta do cigarro na lareira. Ela o imita, levantando-se ao mesmo tempo. Caminha até a mulher e a beija mais uma vez, porém com vontade, e algum sentimento. Lágrimas vertem de seus olhos. Com as mãos no rosto, beija-lhe a testa, o pescoço, as maçãs do rosto, afaga os cabelos, apalpa os seios, acaricia as costas , desce até as nádegas. As mãos percorrem todo o corpo da mulher, qual um adolescente imberbe. Minutos depois estão no leito, ofegantes, suados, os corpos em brasa. Uma luz tênue atravessa a janela, e repousa sobre os lençóis, acompanhada por uma brisa fria. O sol põe-se aos poucos, deixando uma mancha escarlate no céu. As nuvens têm formas irregulares, as folhas das árvores farfalham.

Esgotados, cada um rola para um lado da cama. Olhos fixos no teto, pensamentos à milhões de anos-luz de qualquer lugar. Ele levanta, e vai até o banheiro. Ela ouve o barulho da água do chuveiro. Olha pela janela e contempla o início do crepúsculo. Sonhos vagam em sua cabeça: ser mãe, esposa... uma chuva fina começa a cair, a luz dando lugar à escuridão. Morcegos passeiam em frente à janela.

Ele sai envolto numa toalha felpuda. Enxuga-se e começa a vestir-se: a calça, as meias, a camisa, a gravata. Ela apenas observa. Como sempre, calada. O paletó está pendurado na cabeceira da cama; vai pegá-lo e uma mão quente e trêmula o recepciona. Ele para, encarando-a por um segundo, e baixa a cabeça, desviando o olhar.

- Por favor...- ela tenta falar, mas sabe que o esforço será em vão.

- Será melhor assim.

- Melhor? Para quem?

- Ora! Por favor, não comece! - comenta, rispidamente, livrando-se da mão que o segura.

Ela apenas chora. Sua única atitude, em todos os momentos: chorar. Com raiva, ódio, alegria, tristeza. Põe o paletó, ajusta a gravata, encara-se no espelho e vai até ela. Um beijo - o último - sela a despedida.

- Adeus. - é a única palavra que lhe vem à cabeça depois de tantos anos.

- Então...é só isso? Um adeus à tarde, e no jantar volta a ser o pai responsável, o marido afetuoso?

- Por favor, não torne as coisas mais difíceis do que já são!

- Você, me falando de dificuldade? São anos da minha vida dedicados a uma mentira, uma farsa! - joga-se entre as cobertas.- Oh, Deus!

Impassível, ele assiste a tudo sem o mínimo remorso. Ela não entende? Ele é um chefe de família, com uma vida, não podem continuar se encontrando às escondidas, como adolescentes. Isso tem que acabar. Senta-se na cama, e a abraça. Seus olhos estão vermelhos de tanto chorar, e sua voz rouca depois de tantas súplicas.

Por favor! Não! - murmura entre prantos.

Não responde. Levanta, vai até a penteadeira e pega as chaves do carro. Os olhares se encontram pela última vez. Volta-se rapidamente e sai sem mais palavras. Os passos surdos na escada contrastam com o tic-tac do pêndulo ecoando pela casa. A chuva cai mais forte.

Escuta a porta fechando-se, o motor do carro sendo ligado, a partida. O som vai distanciando-se até restar a mais profunda e fúnebre quietude. As cortinas dançam um balé gótico e sedutor, ao ritmo do vento e ao som da chuva. De repente, um estampido, abafado pela violência das gotas no teto, ecoa pela casa. Cães latem. Uma bailarina rodopia sobre uma caixa de música dourada. O espelho reflete um corpo inerte sobre lençóis irregularmente tingidos em vermelho. O relógio dá a sétima badalada.

O telejornal matinal comenta a notícia: “... uma mulher suicidou-se ontem à noite no bairro tal... com um tiro na cabeça. A polícia suspeita que a vítima sofresse de esquizofrenia. E agora, a previsão do tempo...”.

As ruas amanhecem alagadas, crianças passam para a escola fazendo barulho. O sol aparece timidamente entre as nuvens, e nasce mais um dia.

Gustavo Marinho
Enviado por Gustavo Marinho em 28/01/2006
Reeditado em 06/01/2012
Código do texto: T105177
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