o soldado caído

O soldado caído

Espero que se lembre de que algo foi dito em sua memória, mas não por mim, que fui o último a vê-lo, um jovem crivado de projéteis. Foi apenas uma parte do ritual, sempre necessário nessas ocasiões. Que idiotice a minha, será a velhice? Um cadáver se lembrar. Sim, foi dito algo suave que você numa daquelas intermináveis reuniões não prestou a devida atenção. O gênio, o talentoso, à sua glória, alguém disse levantando a taça. Confiávamos em você.

Mas gostaria de saber qual foi o instante da morte, estas indagações de como é que a alma se desprende. Sempre me calha esta indagação. Se ela consegue mesmo importunar em algum outro lugar. Os meus companheiros lamentam esta minha... Como dizem... torpe curiosidade. Ao todo, foram quatro atiradores, os três se foram; foram beber porque a sede os consumia, são compulsivos em várias matérias, mas principalmente em beber. E confesso a você que nunca mais os verei, e se por acaso alguém perguntar sobre o paradeiro deles, somente evasivas. Talvez nem existam. Direi que houve uma espécie de contaminação, algo está corrompendo a nossa Ordem. E agora temo pela minha vida. Ou pela morte. Não sei.

Estou me retirando agora. Desculpa não deixar flores, umas velhas e murchas begônias combinariam com a lividez da sua pele; e alguém terá que pagar pelo caixão, certamente a sociedade, a mesma sociedade que parece que você condenava. Olho bem o seu reflexo no espelho do teto, e fico abismado ao perceber que lá parece haver mais sangue do que sobre você mesmo e tenho a sensação de que receberei uma chuva vermelha sobre mim e as minhas narinas já antecipam o cheiro ferroso e renitente de sangue. Mas como somos iludidos, não? Estou agora desligando esse computador já ultrapassado, com decalques aviltantes nas latas negras, então inevitavelmente a música parará e ela certamente consta no rol das suas últimas memórias. Desculpa, a letra é imperdoável para que eu possa cantarolá-la e talvez isso até consolidasse mais esse momento. O mundo no qual eu vivo precisa de imagens fortes como esta; e para o seu futuro mundo, que imagens levará? Deus meu, como não me canso de perguntar.

Observo você uma vez mais, tentando contar as perfurações; puxa, como o seu corpo foi palmilhado sem tréguas. Sobraram poucas partes intactas, mas pelo menos uma que me interessa. Não devo te cobrir com um lençol, isso não nos é permitido. Apuro os ouvidos e até agora nenhuma denúncia dessa exemplar e justa barbárie; eles não conseguiram acordar os idosos que vivem ao lado. Lamento ter chegado tarde e não ter ajudado em nada. Estou me sentindo culpado, inútil, quando penso que outros foram mais prestos. Isso pode me custar caro. Ah, sim, há outros mais preparados, calculam o tempo todo em segundos os seus atos e são tão hábeis que te digo que chegaram ao apogeu dessa arte; existe uma espécie de competição entre nós nesse sentido; enquanto continuo a ver amadores fazendo uma competição mesquinha sobre as sobras que nós deixamos. E os amadores também morrem, e você morreu como um amador, trouxe a morte até si como quem pede pizza pelo telefone.

Infelizmente você chamou muita atenção para o que fazíamos, despertando dissensões em indivíduos custosamente doutrinados; estava ficando arrogante, não seguia as regras que impedem a excessiva bondade; não estava comendo o nosso pão. Não gostava do fermento? Nós te amávamos, cara. Tinha um futuro brilhante, só estávamos te testando, víamos o seu proceder, sondávamos as suas fraquezas, e você estava se revelando perfeito: autodomínio, insensível, incorruptível e nada volúvel às tentações mundanas. Era o homem buscado. Uma raridade da espécie. Mas você decepcionou mais a mim, não fui eu quem te apresentei ao grupo depois de muito me implorar para entrar, que era o teu sonho, tudo que queria na vida? O que esta indicação trará agora para mim? È claro que não percebe o quanto fui estúpido. Mas o nosso exército está ficando cada vez mais reduzido, e talvez... Não, de fato fui precipitado ao te escolher, ao ceder aos seus insistentes pedidos.

E o que você fez? Simplesmente abdicou do Poder. Discutimos muito sobre as eventuais saídas, é claro, se era possível evitarmos a sua morte; poderíamos recuperar tal perda? Nada no nosso trabalho pode ser feito deliberadamente; é preciso medir tudo, e medir conseqüências é o nosso forte, como se fôssemos peritos em matéria de limpeza. Mas você era uma infecção, daquelas que se espalha. Você estava tendo idéias, estava sonhando com tigres, estava vislumbrando túneis, e isso é sonhar com liberdade. Liberdade entre nós? Devia ter permanecido calado, se quisesse continuar vivendo; mas não devo omitir que cedo ou tarde desconfiaríamos e descobriríamos as suas pretensões.

Não se lembra quanto te apresentamos ao Imperador? E ele saiu da toca naquela ocasião somente para te conhecer, estava ficando famoso, pois foi detectado em você o talento para continuar o nosso trabalho, e o mais incrível de tudo é que não precisou ser recrutado: veio até nós por sua livre vontade. Não é qualquer um que consegue tal aproximação com o Imperador, um ser que raríssimas vezes se mostra, para quem a nossa existência é um enfado, pois é o único dentre todos que não crê em mais nada. Mas é ele quem permite que vaguemos com honra sobre os demais. Andamos altivos como arautos sabedores dos mistérios. E naquela ocasião ele levantou o copo em sua honra. Como saberíamos, e como ele, o grande imperador pode ter errado? Agora estou confuso. Parece que há algo se dissolvendo. Estou com medo. Devo me retirar.

Não pedirei perdão pelo que farei e darei mais um tiro, na tua testa, para que fique como um emblema e faça o seu fantasma, enquanto este não se desfaz na acidez do tempo, meditar sobre juramentos. As conseqüências do perjúrio te seguirão por algum tempo e espero que a tua sombra, a sombra de teu fantasma, possa inspirar algum bem-aventurado, vendo o belo estrago que fizemos, para que nunca cometa o erro que cometeu.

Agora vou, pois as velhas acordaram e talvez se preocupem com a sua demora, e vou me retirar não me preocupando em apagar os meus vestígios e nem os dos meus companheiros. Até que numa outra morte nos encontremos. Adeus.

luiz silva
Enviado por luiz silva em 06/07/2008
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