Fabulações

<<Prólogo>>

Era no mezanino, diante das prateleiras de Lingüística, bem de frente para a porta de acesso à ala de Literatura, que Eliseu costumava se sentar.

Eliseu era um rapaz tímido, daqueles que se cala na companhia de duas ou mais pessoas, daqueles que, em festas, quase desaparece num dos cantos escuros da sala com o copo de refrigerante na mão, daqueles que gagueja ao ser indagado pelo professor, ou que sofre palpitações e sudorese nas mãos na presença de garotas.

Sempre havia sido assim e Eliseu temia que sempre fosse assim.

Namoradas?

Nenhumas. Nunca houve. Um beijinho aqui, uma mãozinha num peitinho lá, mas geralmente encontros fortuitos em bares, acompanhado de amigos, sendo que estes haviam servido de ponte para ajeitar Eliseu com alguma bêbada. Ele, que se considerava o último dos românticos, se penitenciava posteriormente por tais deslizes: “nem me lembro do nome dela!”, ou “ela tinha hálito de fumante”, e ele jurava para si que, da próxima vez, seria por amor, com alguma moça que realmente fosse especial.

Foi por causa do vestibular que ele acabou tendo de recorrer à Biblioteca. Não que ele fosse avesso à leitura — pelo contrário —, mas a mãe, professora de Português, possuía um belo acervo de clássicos e uma Barsa, então Eliseu poucas vezes se viu obrigado a empregar fontes fora de casa. Graças a esta exceção, Eliseu avistou pela primeira vez a “ruivinha”, como ele a chamaria.

Ele consultava o catálogo na altura do “G”, sentiu uma presença atrás de si, desculpou-se e abriu espaço. A ruivinha abriu a gaveta do “H”, fuçou rapidamente as fichas, anotou o código dum livro e saiu. Foi se sentar numa das mesas do saguão.

As mãos de Eliseu tremiam. A moça tinha um cheiro tão bom, mãos delicadas e sardas pelo braço. Eliseu apanhou um volume qualquer, subiu ao mezanino e acomodou-se na mesa que permitia a melhor visibilidade possível.

Entreabriu o livro, mas seus olhos não desviavam da ruivinha, que apoiava a cabeça num dos punhos e com a outra mão folheava o livro. Eliseu cuidou cada movimento mínimo, desde o dedo correndo pelas mechas rubras e prendendo-as atrás da orelha, o tamborilar sobre as páginas, a língua umedecendo os lábios, até o espreguiçar-se que lhe realçava os seios pequenos.

Em certa ocasião, a ruivinha olhou para cima e seus olhos se encontraram com os de Eliseu. Por dois ou três segundos eles se encararam, por fim, a ruivinha baixou o olhar e conteve um sorriso. O coração de Eliseu disparou.

Mas ele conhecia a si mesmo, e já havia praticado este mesmo ritual um sem par de vezes — no ônibus, no pátio da escola, na missa, no shopping center. Estes eram os únicos momentos em que ele conseguia despistar a timidez. Ele poderia paquerar uma garota por horas, trocar sorrisos, mas se ele tivesse que tomar alguma atitude, aproximar-se e puxar conversa, então ele estaria em maus lençóis. Observar era uma coisa, agir, outra completamente diferente.

A ruivinha ficou mais uma meia hora na Biblioteca, arrumou seus pertences, lançou um último olhar em direção a Eliseu e partiu.

Esta cena se repetiu pelos três meses seguintes.

<<A Meta>>

Mas naquela tarde, Eliseu havia finalmente criado coragem. Desceu do seu bastião, caminhou até a mesa da ruivinha e perguntou:

— Posso me sentar?

A moça sorriu, o mesmo sorriso contido e acanhado, e concordou.

Eliseu puxou a cadeira e se sentou. Perguntou o que ela estudava e descobriu que ela estava no primeiro ano de Biologia. Falaram de cinema, de literatura, de música. Descobriram uma paixão mútua por clássicos do rock de 70, Led Zeppelin, Pink Floyd e Jethro Tull. Ela gostava de comida japonesa e passava as férias na praia. Chamava-se Renata, ou Rafaela.

Mas esta abordagem direta não fazia o estilo de Eliseu. Ele não teria coragem de se aproximar, puxar conversa, sentar-se ao lado da ruivinha e agir com naturalidade. Para ele, tudo tinha de transcorrer de maneira sutil, quase ao acaso, como se fosse incidental. Precisaria conceber outra maneira.

Por isto, ele elaborou o plano perfeito: aguardaria até que a ruivinha adentrasse as prateleiras para apanhar um livro; ele desceria atrás dela, traria consigo uns cinco ou seis livros sob o braço; numa das esquinas, ele esbarraria “acidentalmente” na ruivinha e deixaria os livros caírem; tanto ele quanto ela se abaixariam para recolhê-los, suas mãos se tocariam, seus rostos a um palmo de distância, poderiam até ouvir o outro respirando; ele agradeceria a ajuda, estenderia a mãe e se apresentaria: “Sou Eliseu”, e ela responderia: “Sou Priscila”.

Daquele momento em diante, Eliseu sabia que tudo poderia ocorrer. Numa das alternativas, eles conversariam ali mesmo, entre as prateleiras, ela rindo a cada besteira que ele falasse, em outra, eles se beijariam, para constrangimento dos passantes. Eles poderiam trocar o número de telefone e combinarem de se encontrar para tomarem um chope, ou para irem ao cinema, ou para um sorvete no parque. Ou Eliseu poderia descobrir que não tinha nada em comum com a ruivinha e que havia alimentado sonhos vãos, mas até esta alternativa era melhor do que o impasse em que se encontrava.

O importante era ater-se ao essencial do plano: descer, esbarrar, derrubar livros, apresentar-se.

E a data limite era a sexta-feira daquela semana. Eliseu aproveitou os dias seguintes para se preparar psicologicamente. Os olhares e sorrisos entre ele e a ruivinha prosseguiam, porém a moça apresentava uma inquietação que não existia anteriormente. Talvez ela já estivesse se cansando. Sexta-feira tudo se resolverá, Eliseu refletia.

Os preparativos foram cuidadosos — desodorante, Sepacol, cueca nova e uma borrifada de perfume. Eliseu comeu um rissole numa boca-de-porco na frente da Biblioteca e pôde avistar quando a ruivinha surgiu e entrou no prédio.

Ele começou a suar frio e temia ser acometido por uma caganeira súbita. As pernas tremiam, a garganta seca, mas não havia mais desculpas, aquele era o dia!

Ele adentrou a ala de Literatura e, desta vez, sentou-se num lugar diferente, numa mesa ao rés-do-chão. A ruivinha esta lá, no entanto, ela não havia dado atenção a Eliseu naquele dia.

A convicção do rapaz estava sendo abalada. Pensava seriamente em desistir. O jogo acabou, Eliseu concluiu. Deixa pra lá, não vale a pena.

Foi quando a ruivinha se levantou e sumiu entre as prateleiras.

Eliseu engoliu a seco. Os dados haviam sido lançados. Ali estava sua grande oportunidade. Ele também se ergueu, catou a pilha de livros e passou a procurá-la entre as estantes. Assim como havia previsto, numa das esquinas dos corredores, eles se esbarraram, os livros se espalharam pelo chão, ambos se abaixaram.

— Oi, sou Eliseu, ele estendeu a mão para cumprimentá-la.

A ruivinha sorriu. Mas antes que ela pudesse dizer-lhe seu nome em resposta, o olhar dela se fixou em algum ponto atrás de Eliseu.

— Prazer, ela disse, sorrindo. Com licença, e ela desviou dele e caminhou em direção a um rapaz, que a aguardava no final do corredor.

Eles se beijaram.

O avô de Eliseu cunhava uma expressão que resumia seu sentimento naquela ocasião — era como se ele fosse o cocô do cavalo do bandido. O plano infalível havia sido um fiasco. Todos os projetos e sonhos, inúteis. A ruivinha tinha um maldito namorado! E o que significavam aqueles olhares, risinhos, mexidas no cabelo?

Eliseu recolheu suas coisas e não apareceu mais na Biblioteca. A simples lembrança do papel de tolo feito o constrangia, humilhava-o.

O seu único consolo era o de saber que, no plano das idéias, no universo das possibilidades, havia pelo menos uma em que ele e a ruivinha se apaixonavam, casavam-se, tinham filhos e aquela vida perfeita retratada em filmes e romances românticos. Um consolo, mesmo que ideal.

<<Epílogo>>

Na segunda-feira subseqüente, a ruivinha reapareceu na Biblioteca. Entrou na seção de Literatura e mirou a mesa vazia no mezanino.

Buscou um assento e folheou seus livros por alguns minutos, mas não conseguia prestar atenção em nada. Consultava o relógio a cada trinta segundos. Ele já deveria ter chegado, ela pensou.

Na semana passada, ela havia concebido um plano perfeito. Como o rapaz que a observava incessantemente por meses não tomava atitude alguma, ela aceitaria o convite dum colega de faculdade para tomarem um drinque. Foram a um bar, rolaram uns beijos e ela o convidou para estudarem juntos no dia seguinte.

A lógica não poderia ser mais simples: o rapaz do mezanino deveria ser tímido, talvez receoso de que ela fosse uma garota inacessível, que não estivesse disponível. Ela atrairia seu colega para a Biblioteca e provaria ao rapaz do mezanino que era só chegar e conversar com ela. Não é assim que as pessoas são? Elas não desejam sempre aquilo que é proibido? Não era assim com suas amigas, que sempre se apaixonavam por garotos comprometidos? Não é a visão do obstáculo que estimula as pessoas a agirem?

Ele havia se apresentado. Eliseu, este era o nome dele. A ruivinha até pensou em responder e também se apresentar, mas agora tinha de jogar o jogo. Com certeza, ele tentaria falar com ela de novo.

No entanto, Eliseu não apareceu na Biblioteca naquela segunda-feira, nem na terça, nem em nenhum dos dias seguintes. A ruivinha, que só continuava estudando na Biblioteca por causa dele, também deixou de ir.

Logo o esqueceria.

O jogo havia acabado.