UM NATAL DIFERENTE

Meio dia de um domingo tão quente quanto um asfalto no deserto. Em meus sonhos, os calangos não conseguem atravessar a linha amarela que corta o asfalto. Os raios de sol espancam-me. É o dia me recebendo com bofetadas. Meu arcabouço dói e não suporta mais a posição fetal em que me encontro. Logo, meu estômago resolve tomar a frente de tudo e me tira de um estado de torpor.

Com passos leves, caminho lentamente até a cozinha. Abro a geladeira e não encontro nada para beliscar. Meu estômago faz contato comigo. Diz o que quer comer, mas, infelizmente, não posso atendê-lo. Então, viro-me para a despensa e nada encontro também. Ainda com os passos lentos, porém, agora tortos, sigo para a sala, pego o telefone e peço uma marmita “Demora mais ou menos uns trinta minutos para chegar, senhor”. A voz do outro lado nada informa e me aborrece. Aceito os termos propostos e espero por meu almoço. “Urrrghhhh!”, calma, meu amigo estômago, já, já, o almoço chega.

Sento em meu sofá, pulo de canal em canal, sem achar nada que agrade meus olhos. Minutos depois, resolvo me deteriorar. Mas, espere um minuto: como pode, em uma televisão com mais de cem canais, não existir um que me agrade? Apenas ouvi o silêncio dos meus pensamentos, que me empurravam para um abismo desconhecido por tantos que já tentaram e aqui não estão mais, para contar nenhum detalhe...

Estou no meu quarto, pego os saquinhos mágicos que escondo em um lugar sagrado – literalmente sagrado: debaixo de Nossa Senhora de Aparecida, que ganhei quando era criança para me proteger de todo mal (e ela me protege, esconde o pó mágico que me distancia dessa sociedade medíocre e condenada) – para ninguém me repreender ou dar um prejuízo de alguns míseros reais (ganhados com muito suor!). Chego à cozinha e na mesa de jantar faço o meu banquete. Monto um tapete branco, lindo, que se mistura às demais cores dos guardanapos em cima da mesa. O pó mágico, enfileirado, diminui um a um da mesa, como se fosse a última vez que faria aquilo na vida. A mesa está limpa. Meus pais jamais suspeitariam.

Enfim a marmita chega. Abro a porta. Pego o embrulho e o guaraná. Volto à cozinha. Caminho até a porta, para entregar o dinheiro sem troco ao moto-boy, assim facilito a vida dele. Antes de chegar à porta, sou levado ao chão como se uma marretada atravessasse o meu coração. Uma mão bem forte e pesada aperta meu corpo, igual ao abraço de uma jibóia. Por instante, uma onda cortante sai do meu estômago e sobe à cabeça e ao coração. Penso que vou explodir e que meus sonhos não passariam de sonhos. Que meus sonhos não passariam de noites dormidas sem um compromisso qualquer. Que minha cama seria apenas ocupada por mim e um enorme vazio nas noites frias.

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Oito horas da noite, de um domingo que acompanhou a temperatura do dia.

Entreabertos, os meus olhos ainda estão grudados por remelas e só vêem branco.

Ahhh... (pânico!). Tirem todo esse branco de perto de mim. Cadê as paredes coloridas do meu quarto? As paredes, os móveis, o chão, os lençóis... Tudo branco! Será que tudo isso é o céu? Será que encontro Deus aqui? Terei que esperar muito, igual aqueles consultórios, em que você espera um tempão para ser atendido pelo melhor médico da cidade? Será que morri? Como, se não me despedi de meus pais, de meus bichos e de todos que um dia fizeram algum significado em minha miserável sobrevida? Ou seria Deus um grande traficante, enfiado dos pés à cabeça dentro de um castelo de coca? Quem sabe não consigo uma vaga de sócio de Deus, hein? Minha avó e minha mãe, nessa hora, diriam que é pecado blasfemar. Que blasfêmia, que nada, afinal, negócios são negócios!

- Bom dia, senhor! Como está se sentindo agora? Um pouco melhor, garanto.

Essa voz não é estranha. Já ouvi essa sonoridade antes. Levanto minhas pálpebras, novamente e lentamente, já que tudo não é mesmo um sonho. A voz que eu ouvi era do médico que está cuidando de mim. Só a partir daí, consegui entender que se tratava de um hospital e que estava internado, sem risco nenhum de passar dessa para melhor ou me tornar sócio de Deus. Algumas pessoas, nessa hora, já estão comemorando o meu sono eterno. E eu aposto com você que sim.

Entra outra pessoa na sala, que não consigo identificar quem é. Passo, então, a ver dois corpos, escondidos, um pouco atrás da porta: um é o médico e depois de alguns movimentos, consegui ver que o outro é o moto-boy que havia levado minha marmita. Eles se abraçavam e se beijavam, como há muito não beijo e abraço uma mulher. Tudo feito muito bem timidamente, e ao ver aquela cena horrorosa, tive a vontade de gritar, pular do quarto onde estava. Neste instante, um mal-estar lançou-me de volta à vida.

- Senhor. Este é o Hector. Ele salvou a sua vida, hoje. Se não fosse ele chegar a tempo, o senhor estaria morto, de overdose, em casa e ninguém saberia.

Claro! Agora minhas memórias refrescavam meus pensamentos. Os dois são namorados; são homossexuais. Recordo-me brevemente deles, como poderia me esquecer?! Estavam em uma casa noturna um dia desses e os tratei de maneira totalmente desumana. Nem o pior de todos os seres rastejantes merecia as palavras duras, secas e amargas que lancei sobre eles. Igualo-me a um verme. Se antes, a vontade de pular e de gritar era grande e perturbadora, agora, diante de tais fatos, minha ignorância e estupidez me torturavam a alma, incomodavam profundamente minhas sensações e faziam transbordar de raiva minha consciência. O mal-estar se metamorfoseou em auto-repulsa.

De repente, um mar de lágrimas vertia de minha face. Um enjôo cortava minhas entranhas e apertava o meu peito contra o meu coração, esmagando, assim, minhas costelas, que os perfurava. Era essa a minha vontade neste instante. Que vida carreguei até agora, meu Deus?!

Depois do pequeno showzinho das minhas angústias, o que mais me comoveu, foi pensar e saber do fato deles terem nas mãos e na consciência o poder de decidir a vida de uma pessoa que os tratou muito mal e, em vez de se vingarem, salvaram uma vida. Uma vida ordinária, medíocre e ainda por cima, decadente. Uma vida vazia. Errante. Uma vida cheia de pecados, de crimes contra a humanidade e de vergonha.

O moto-boy poderia ter me deixado ali em casa e ir embora sem se preocupar comigo. Depois poderia rir, rir e se esbaldar em mais risos, até se realizar completamente. O médico poderia ter errado e dito depois que nada poderia ter feito por mim. Que eu havia exagerado na dose. Mas, não foram estes os rumos tomados...

Agora me dou ao luxo de acreditar nas pessoas. Em todas as pessoas, inclusive nos gays. Eles também amam, vivem, trabalham... fazem tudo o que uma pessoa “normal” faz. São tão gente como a gente. Tão humanos como qualquer outro humano que anda por ai, matando, roubando, praticando crimes cruéis contra todos sem graves razões.

Nesse dia, afirmo com todas as palavras que: FUI SALVO POR DOIS HOMOSSEXUAIS. E não tenho problemas nenhum em afirmar isto.

Por instante, as lágrimas cessaram o mal-estar, que deu lugar a soluços.

- O Natal deixa as pessoas bastante comovidas, não é mesmo?!

- Ahhh... como eu adoro o Natal! É época de presentes!

ADAMS ALPES
Enviado por ADAMS ALPES em 09/09/2008
Código do texto: T1168510
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