Raízes (ou O Mesmo Raio)

João Natanael Silvério era um garoto que sabia o que queria desde cedo. E o que ele queria era ser músico. Aos 15 anos já tocava violão e guitarra de ouvido, nos luais ou garagens dos amigos.

Compunha alguns versos que sonhava em musicar. Era uma pessoa simples, autentica e que queria ser reconhecida um dia não só como um grande cantor, mas como um músico completo, que compusesse letra e melodia e interpretasse ao grande público não só as suas, como também as melhores e memoráveis canções do pop-rock nacional e internacional.

Seu sonho começou a se tornar realidade dois anos mais tarde. Acabara os estudos e já se dedicava quase que em tempo integral a música. Escutava as músicas de Cazuza e Renato Russo, suas preferidas e muitos jazz, blues e rock & roll. De suas músicas preferidas fazia versões e as tocava para os amigos, com novos arranjos e em ritmos até muito diferentes. A primeira vista ou escutada, provocavam estranheza, mas com o passar do tempo as pessoas que com ele se relacionavam chegavam a preferir suas versões até às originais.

Sempre com inovações criteriosas e que João fazia questão de explicar as modificações em respeito a seus devidos autores que, na maioria das vezes eram também os ídolos de João. João Silvério excluía repetições desnecessárias, incluía estrofes de sua autoria, re-arranjava introduções e quase sempre incluía músicas incidentais ou emendava duas ou três canções de ritmo e significado similares. Os mais chegados diziam até que ele não fazia versões, mas evoluções nas músicas por ele trabalhadas.

Naquela quinta-feira, João atendeu assim ao telefone:

– Alô!

– João!

– Sim, quem é?

– Marquinhos.

– Fala camarada, que é que você manda?

– É para mandar? Então vamos lá. Tome uma chuveirada rápida que em 20 ou 30 minutos estou passando em sua casa para lhe pegar.

– Que é isso? Seqüestro com aviso prévio?

– Não, mas bem que pode vir a ser. Hoje tem uma balada e você é o convidado de honra.

– Ai tem.

– Se liga João. Está com medo malandro?

– Você sabe que eu não tenho medo, mas quero saber para onde vamos e com quem.

– Vamos a um barzinho novo com musica ao vivo, para relaxar. Fui lá na semana passada e conheci um pessoal maneiro. O ambiente é legal e tem umas gatinhas que só vendo.

– Em 15 minutos estou pronto.

– Esse é o João. Rápido que já estou saindo.

Chegaram no bar. Escutaram a música e João conheceu uma garota. No meio do papo ele comentou que também cantava e que já havia até escrito alguma coisa. Ela sorriu meio descrente, mas antes que pudessem continuar, a banda anunciou que iria fazer uma pausa de 20 minutos. Enquanto eles desligavam o equipamento subiu ao pequeno palco o proprietário e anunciou:

– Estamos propondo desde a semana passada um intercâmbio cultural e convidamos ao palco alguns artistas que queiram dar uma canja ou fazer uma pequena propaganda de seu trabalho. Na semana anterior se apresentaram malabaristas e até um poeta recitou seus versos. Damos preferência a música mas estamos abertos a qualquer tipo de arte. Alguém se habilita?

Neste momento a garota que estava com João falou:

– Pode ser a sua chance, cantor.

João ficou perturbado com o sorriso da menina e o sangue subiu e seu olhar se modificou. Ele era honesto e puro e virava bicho se alguém duvidasse dele.

– Você quer me ouvir cantar? – Perguntou João já com a mão levantada chamando a atenção para si. O sorriso da garota e sua jogada de sobrancelhas acentuaram o desafio e sem aguardar resposta nenhuma, ele se dirigiu ao palco.

O proprietário da casa ao vê-lo se aproximando perguntou:

– Você se habilita garoto? Qual é seu nome?

João já havia subido no palco e neste momento estava a seu lado. Tomou-lhe o microfone das mãos e falou baixo para que os outros não pudessem ouvi-lo.

– Quer me conhecer? Sente e escute.

A banda ainda não havia descido do palco, apenas o vocalista e o percursionista, que bebiam algo ao lado do dono do bar. Quando o vocalista perguntou para este:

– Você sabe quem ele é?

Louco para dar o troco e confiante na pretensão e segurança do garoto ele respondeu.

– Quer saber quem ele é? Sente e escute.

Cantando sozinho, sem acompanhamento ou na capela como chamam, João soltou sua voz para que todos o conhecessem.

– Me chamam de ladrão, de bicha, maconheiro e transformam o país inteiro num puteiro, porque assim se ganha mais dinheiro...

Instintivamente o baterista e o baixista começaram a acompanha-lo até o final da música, tornando ainda mais fácil a aceitação de João pelo público. O vocalista engasgara com a bebida, pois percebera que seu emprego ali estava por um fio. Marquinhos e a galera aplaudiram com fervor para incentivar o amigo. Muitos tiveram a certeza de que nascia naquela noite uma estrela.

Depois da brincadeira, ele sorrindo combinou algo com o baterista e os outros integrantes da banda que já não queriam mais parar, pois sentiram a energia que emanava daquele ser. Ele sentou no banquinho confortavelmente como se este sempre o pertencesse, tomou o violão nos braços e as baquetas soaram 1, 2, 3, 4.

João contou duas estórias, nas músicas de Renato Russo e da Legião Urbana, que tem como personagem central um João: Faroeste Caboclo e Dezesseis e fechou com chave de ouro sua apresentação com uma versão da lendária Johnny Be Good.

Agradeceu com um aceno a oportunidade e retornou para o seu lugar saudado por palmas e cumprimentos de todos. Beijou a garota calorosamente assim que chegou.

Antes de terminar a noite, Johnny, como ficou ali conhecido, saiu sem pagar um tostão apesar das várias doses de vodka e do maço de cigarros de cravo mentolados que pegou. Elegeu Marquinhos como seu empresário e agendou para todas as sextas a partir daquela, apresentações de uma hora que nunca terminavam por sua própria conta antes de duas horas e 3 saideiras.

O sucesso era inevitável, depois daquele contrato vieram outros cada vez melhores e mais rentáveis e daí até a gravação de seu primeiro disco foi apenas um pulo. E sua carreira hoje era sólida, depois de 2 discos gravados de músicas de sua autoria, turnês por todo o país e aparições esporádicas na MTV. João Silvério virara Johnny Silver e após alguns contatos com os autores e as gravadoras, ele lançava agora um CD com as “evoluções” de suas músicas preferidas.

A única coisa que o sucesso trouxe que o incomodava é que ele não podia sair pelas noites como fazia antigamente e essa situação, que era provocada pela imagem de artista e pelas turnês, entrevistas, o angustiava e o estava deixando em um estado de profunda depressão.

Por mais que todos lhe falassem que ele tinha conseguido o que muitos não conseguiram em um curto espaço de tempo, ele tinha algo que o incomodava e muito. Só não sabia o que era.

Certa vez falando com seu pai ele mencionara que ninguém pode ser mais amigo de alguém além de nós mesmos e de nossos pais. Com todos os defeitos que eles possam ter, eles querem no fundo do coração proteger a integridade de seus filhos, seja ela física ou moral.

Resolveu então dar o braço a torcer e falar com seu velho, que apesar de não concordar, lhe entendia.

Conversaram muito, jantaram juntos e ao final da conversa escutou a seguinte frase:

– Meu filho, te dei toda a liberdade para escolher o que quisesse de sua vida e hoje você é o que é, graças a mim e sua mãe, mas principalmente graças a você. Nunca se esqueça de lutar por aquilo que acredita e de que uma pessoa tem de buscar voar alto como se tivesse asas, mas fincar os pés no chão como se tivesse raízes. Uns se fixam demais e não chegam a conhecer o mundo que lhes aguarda, enquanto outros voam tão alto que esquecem quem lhes deu aquelas asas e o mundo que deixou para trás. Feliz do homem que ao mesmo tempo possui raízes e asas.

Johnny saiu da casa de seu pai pensativo e percebeu que voara tão alto quanto pudera e que o que lhe faltava eram as raízes. Decidiu que o que tinha que fazer para acabar com a depressão era retornar as raízes de sua música, as garagens, aos luais e aos bares. Mas como fazer isso sem quebrar os inúmeros contratos de imagem, direitos e tudo o mais?

Não tinha nenhum jeito, mas tinha que ter. Só se ele não fosse ele. Mas como ser ele sem ser?

Johnny lembrou que até um certo dia, perdido no passado, não existia nenhum Johnny Silver, mas um João Natanael Silveira. E se João pariu um Johnny Silver, porque não poderia parir outro? Quem sabe um Billie Joe?

– Ei gostei do nome, Billie Joe. – Falou para si. - Só tem um jeito de saber se ele realmente nasceu. Cantando para que todos possam ouvir.

Na mesma hora negociou com o empresário Marcos Vinícius de Albuquerque, o Marquinhos, uma folga semanal, pois segundo ele estava sentindo o desgaste dos inúmeros shows, o que foi acertado na mesma hora. Folga semanal todas as quintas a começar de hoje.

João tentou se lembrar do nome do bar que iniciara a carreira a anos atrás. Tentativa em vão mas ele ainda sabia chegar lá. Antes de ir tomou alguns cuidados. Arrancou do armário o jeans e camiseta, há muito aposentados pelos figurinos. Vestiu um tênis surrado e descolou uns óculos amarelos, que lhe escondia parcialmente o rosto. Não satisfeito, colocou uma peruca longa de cabelos naturais que havia comprado na Argentina e lentes coloridas. Para terminar vestiu um boné e chamou um táxi.

Entrou no bar e pediu uma dose de vodka com gelo. Perguntou pelo proprietário e para sua alegria ainda era o mesmo senhor, um pouco castigado pelo tempo. Conversaram um pouco e ficou sabendo que o sucesso atingido pelo bar fora concomitante com a sua escalada e que o bar depois de 15 anos aberto, por força das circunstâncias iria acabar fechando dentro de poucas semanas. Não contente João perguntou:

– Vai haver show hoje a noite?

– É uma banda nova, tocam por bebida, não sei nem o nome deles.

– Que horas começa o show?

– Por volta das onze como sempre. Por quê?

– Encho o seu bar de pessoas se você me deixar cantar meia hora hoje a noite.

– Fechado. Mas o que você vai querer em troca?

– Quero de volta minhas raízes.

João fez alguns telefonemas e em uma hora as pessoas começaram a chegar. Ele não disse que iria mas deu desculpas semelhantes para todos, de que era um cara bom e que se desse para se desvencilhar dos compromissos ele tentaria aparecer no final da noite para bater papo como faziam antigamente.

A banda começou a tocar e eles não eram tão ruins assim. Chegou a hora da pausa. Seu Felipe Golveia, o dono do local, subiu ao palco e refez a proposta de muitos anos atrás, esquecida no tempo. João estava só nesta noite e para não perder a deixa, próximo do palco. Subiu como se nada estivesse combinado e cantou como só ele saberia fazer. A banda retornou ao palco, mas para acompanhar João, que já se apresentara a todos como Billie Joe. As duas e pouco da manhã ele desceu do palco e sentou na mesa de seu Felipe.

– Porque você não me falou que era tão bom?

– É você quem está dizendo. Sou?

– Claro que é! É uma pena não poder pagar-lhe para que cante toda semana. Você é praticamente um profissional.

– Cantarei de graça, todas as quintas em troca de bebidas e cigarros.

– Para falar a verdade, você está me fazendo lembrar os tempos áureos desta casa.

– Continue.

– Havia aberto a casa a cerca de dois meses e numa das noites, se não me engano uma quinta ou sexta, já não me lembro mais. Cantou aqui por quase um ano, toda sexta-feira sem nunca faltar. Deus sabe o esforço que fiz para segurar o garoto, mas todos sabem, aquele nasceu com asas, mas nasceu aqui aquela estrela.

– E ele era tão bom assim?

– Ainda é! Mas você também é bom, devia até ter cantado algo dele.

– Quem é ele?

– Como quem? Johnny Silver!

– Até poderia ter tentado mas não quis misturar as coisas.

– Que cigarros você fuma? Pode pedir que eu pego.

– Sampoerna Mentolado!

– Sabia que você tinha alguma coisa em comum com o Johnny! Estes eram os preferidos dele!

– Ainda são!

– Como sabe?

– Acho que li algo em algum lugar.

– Você é bom rapaz, mas não me iluda. Em breve você faz sucesso como o Johnny e me abandona também.

– Não fale assim. O Johnny apenas seguiu o caminho dele. Se fosse você talvez fizesse o mesmo.

– Ou talvez pior – Respondeu ele. – Mas é uma pena que um raio não caia duas vezes no mesmo lugar.

– Pode cair sim, seu Filipe – Deu uma tragada no cigarro – Se for o mesmo raio.

João balançou as sobrancelhas, se levantou e saiu...sorrindo...