Uma peça no destino.

Bem assim, como por instinto, o hábito o levava. Acostumara-se. Subia, então, sobre mim, após algumas passadas de mão em partes mais sensíveis de meu corpo, pois as conhecia de cor. Ríspidas passadas de língua nos seios até enrijecer os mamilos, dedos desajeitados por sobre o monte de Vênus e fricção clitoriana. O prazer surgia do nada, às vezes sim, às vezes não. E a solução era fingir, na maioria das vezes.

Mas ele só tinha um pensamento, penetração. Coisa rápida mesmo, algo mecânico, pois seu objetivo era enfiar e enfiar e enfiar. Como um bate-estacas. Depois que subia, e eu torcia para que estivesse suficientemente lubrificada para recebê-lo, agia como um cavalo, no sentido pejorativo também. Algumas estocadas, achando que eu também atingiria o clímax com ele, e "pá!". Gemia, urrava abafado em meu ouvido, como um bicho. E caía, quase desfalecido, satisfeito (com seu próprio desempenho), sem a mínima preocupação com o "meu" prazer. E terminava sempre do mesmo jeito!

Aquilo se tornara rotina, como se ele estivesse seguindo um "manual prático de amor e sexo", empírico e barato, do tipo "como ‘se’ satisfazer, fazendo sexo ‘em’ uma mulher". Agia quase que cegamente. Até o dia em que chegou mais uma vez bêbado em casa, numa madrugada de uma dessas malditas sextas-feiras em que jogava boliche com os amigos. Cheirava a sarro de cigarro, perfume de quinta, fumaça e aquele hálito insuportável.

Fez o mesmo de sempre, mais atrapalhado ainda pela bebida. Precipitado e violento, machucou-me ao se colocar de mau jeito, fazendo com que eu tivesse que suportar uma dor lancinante. E eu torcia para que o vai-e-vem amenizasse meu sofrimento. Mas a bebida o fazia demorar ainda mais, até que "fez" e caiu desmaiado, como um porco, literalmente, estirado ao meu lado, recendendo à noitada.

Segurava as lágrimas o quanto podia. Fui ao banheiro e tentei lavar até meu espírito, na tentativa de que algo mudasse. E, pela manhã, bem cedo, fiz as malas e fui embora, para nunca mais. Era a decisão mais sensata a se fazer. Era o fim, o derradeiro! E, ainda hoje, pergunto-me como o suportei por tanto tempo. Mas "nunca é tarde", penso, seja para o quê e para quem for...

Não muito tempo depois, enquanto um amigo cabeleireiro procurava encontrar um corte ou um penteado que combinasse com meu rosto, percebi algo que me fez pensar em tudo isso e outras coisas nessa minha vidinha cotidiana. Observava pelo espelho seus trejeitos delicados. Eu me perguntava silenciosamente se haveria explicação para uma pessoa ser assim. Como se tudo precisasse ser explicado, uma mania mesmo.

Embora com seus gestos delicados e numa profissão em que predominam homens homossexuais, ele era heterossexual. Todos sabiam que ele mantinha um relacionamento estável com uma colega sua de trabalho. Era carinhoso, delicado, sensível e, ao mesmo tempo, "homem", como muitos dizem preconceituosamente.

Analisando assim, então, questionava-me sobre o que levaria determinados "homens" a acharem que, para serem reconhecidos como tais, deviam ser rudes, violentos, insensíveis, vulgares, grosseiros. Sempre achei que a explicação seria uma das inúmeras conseqüências da nossa "velha e equivocada" sociedade "católica", ortodoxa. E o que me entristecia, ainda mais, era o fato de que, embora existam explicações para esses e muitos outros dos nossos problemas, eles são, na sua quase totalidade, sem solução, por mais que nos esforcemos em resolvê-los...

Há alguns meses, comecei a freqüentar uma nova livraria no centro da cidade, a algumas quadras do prédio onde moro. Sempre estou atrás de novidades e, numa dessas visitas, eu conheci uma pessoa fantástica. Uma das vendedoras da livraria. Ela, uma jovem, vinte e poucos, muito simpática, extrovertida, meiga, vivaz, apaixonante e bastante culta. Para a sua idade, ela parecia estar muitos anos à frente dos de seu tempo.

Conversávamos sobre livros, escritores e tendências literárias. Tornamo-nos amigas, trocamos telefones e, numa de nossas conversas, ela, não se contendo mais, passou-me uma indireta "cantada". Coisa de mulher, com leve sutileza e muita perspicácia. Jamais imaginei algo assim vindo dela. Confesso que fiquei surpresa e, na hora, não soube o que dizer.

Tentei amenizar meu constrangimento e sugeri que saíssemos para tomar um café colonial num local em que eu adorava freqüentar. A tarde caía, não muito rápida. Havia muitos pontos comuns entre nós. Gostos musicais, filmes, arte e livros, obviamente. Teríamos assunto para dias, meses, talvez anos. Conversávamos, ríamos, flertávamos, intimidávamos uma à outra.

Até que, num momento em que eu soltava uma gargalhada espontânea, sobre algo muito engraçado que eu dissera, ela parou, séria, e me disse que eu tinha o sorriso mais lindo que jamais vira. "Que eu ficava mais ‘linda’ ainda, quando fechava os olhos e sorria. Gargalhava com a boca aberta, exibindo meus lindos dentes... numa expressão contagiante... sedutora..."

Ao ouvir aquelas palavras tão meigas e repletas de sentimento, como até então jamais ouvira, ou lera, não me contive. Levantei de minha cadeira. Cheia de coragem, mas com o coração aos pulos. Tomei seu lindo rosto entre minhas mãos ainda trêmulas e a beijei. Na boca. Um pouco desajeitada pelo ímpeto. Suficientemente demorado para silenciar o café inteiro. Ao notar o silêncio, parei e a olhei no fundo de seus olhos. Verdes, cristalinos, encantadores.

Foi então a sua vez de me beijar... Por instantes ficamos ali, daquele jeito... O gerente do café veio até nós e pediu, gentil, mas inoportunamente, que parássemos, pois estávamos constrangendo os demais clientes. Ouvi alguém falar: "que obscenidade!".

Bem! Já estava na hora de sairmos mesmo, pois ambas tínhamos em mente muita coisa para fazer. Até que, na calçada, ela me perguntou: "no meu ou no seu?". "Apartamento, sabe?". Perguntou ironicamente, como se eu não soubesse. E rimos de nós mesmas e do inusitado do momento. Encantei-me com o brilho dos seus olhos, enquanto me perguntava, sorrindo.

Seus olhos pareciam querer me dizer algo. Um mistério intrigante. Mais tarde eu, talvez, o desvendasse. Mas não era hora para devaneios. Saímos abraçadas, achando graça de tudo e de todos, como se somente nós tivéssemos importância naquele momento. E era a mais pura realidade. Pregávamos, então, uma peça no destino, para seu próprio espanto. Parávamos, de vez em quando, para nos beijarmos. Em frente à igreja, corremos de mãos dadas, escada acima, só para vermos os pombos baterem suas asas em revoada.

Olhamos juntas para o céu, que exibia um tom avermelhado em meio a nuvens escuras. A noite chegava mansinha. Vimos os rasantes dos pombos na torre da igreja. Vislumbramos a lua que surgia ao crepúsculo, estava enorme, prestes a iluminar nossos caminhos. Alguns pingos de chuva caíam, pequenos e leves, como bênção...

E... Bem! Não deixávamos de achar graça da incredulidade estampada nos rostos das pessoas que passavam e que se surpreendiam com a nossa felicidade. Ou talvez devesse dizer que as pessoas se surpreendiam em ver alguém... alguém feliz... muito, muito feliz...

Mas... nossa felicidade poderia ter sido menos intensa e mais duradoura, como se pudéssemos desfrutá-la um pouquinho a cada dia. Destino? Talvez... E... observo, agora, no gelado granito verde-musgo, seu nome, em letras garrafais, uniformes, insensíveis, alheias. Poderiam ter colocado um granito com uma cor que fosse mais parecida com ela. Deito as flores com os botões à cabeceira. Lírios e crisântemos. Não me importava com os nomes, bastava que fossem flores, pensei em dizer ao florista.

Minha visão embaça com o choro que desanda, incontrolável, como sempre, e seu último sorriso me vem à mente, nítido, como se fosse exatamente agora. Seus olhos haviam se desviados dos meus. Ela observava alguém se aproximando atrás de mim. Foi tudo muito, muito rápido. Girei meu rosto e só tive tempo de ver a policial de arma em punho. À iminência do disparo. A pressão do indicador.

O estampido seco fora tão forte pela proximidade, que me deixou parcialmente surda, por dias. O grito, o nervosismo, o tumulto, as pessoas, o pânico, o socorro em vão. A dor! Ainda hoje não saem de minha cabeça as palavras ditas pela voz rouca da policial feminina... mulher... mãe. Depois de atingir o alvo, pontaria certeira, fatal, gritava algo insano, incompreensível: "... ato obsceno! ...ato obsceno! ...ato obsceno! Artigo 233..."

Levanto-me. Sinto dores nas pernas depois de tanto tempo agachada. Limpo o rosto com o lenço. Meus olhos agora límpidos, lubrificados. Assôo o nariz congestionado pelo pranto. Há um tipo de dor que me apunhala o coração e parece não ter fim nem remédio. Inspiro profundamente, como se não estivesse respirando há muito, muito tempo. E penso: na próxima vez, talvez eu traga flores num vaso. Talvez durem mais, mas... tem chovido tão pouco ultimamente.

Suelen Buschtabieren
Enviado por Suelen Buschtabieren em 03/03/2006
Reeditado em 15/10/2009
Código do texto: T118239
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