A História dos Joões

João e João nasceram no mesmo ano, mês, dia e hora. Apesar do nome, do signo e ascendente zodiacal, havia uma grande diferença entre os dois.

A mãe de João sentiu as primeiras contrações durante um chá com as amigas no country club, a mãe de João, por outro lado, lavava uma pilha de roupa suja para a patroa.

João nasceu numa clínica particular. João quase foi parido no corredor dum hospital público, cercado de infectos da dengue e baleados.

João cresceu numa cobertura dum bairro nobre, freqüentou as melhores escolas da cidade, fazia aula de inglês, natação, judô, tinha um videogame de última geração. João morava numa palafita, suspendendo-se sobre um esgoto de rio. Só freqüentava a escola pública por causa da merenda e também para não ter ficar ouvindo a ladainha da mãe de que “sem escola não há futuro”. Vendia chiclete nos cruzamentos, furtava ocasionalmente alguns otários, cheirava cola, mas logo avançou para o crack.

João ingressou na faculdade de Direito. João era um habitué da Cracolândia.

João arranjou uma namorada. João engravidou uma vagabunda qualquer.

João se formou, casou-se, comprou um apartamento, abriu seu escritório. João reuniu um bando, roubaram bancos, casas lotéricas, seqüestraram executivos.

João se tornou parceiro duma grande firma de advocacia. João foi preso pela terceira vez.

João teve a maior alegria da vida: o nascimento de sua filha. João foi alvejado pelo polícia durante uma tentativa de fuga do presídio.

***

A Morte, pálida e em trajes negros, como que saída dum filme de Ingmar Bergman, vagava pelo hospital da carceragem. Tinha um nome em sua lista: João Ribeiro.

Ela parou diante do moribundo, que estertorava após receber treze tiros, e refletiu.

— Este sujeito é um desgraçado... — a Morte murmurou. Freqüentemente, as pessoas, no leito de morte, imploravam para viverem, mas aquele pobre-diabo quase suplicava pelo fim.

O duro coração da Morte se compadeceu.

Ela aproximou sua boca funesta do ouvido de João e sussurrou:

— Dar-te-ei uma segunda chance.

E desapareceu porta afora.

No entanto, a Morte ainda tinha de prestar contas com seus superiores. O nome “João Ribeiro” ainda constava na lista. Precisava encontrar um substituto.

A Morte peregrinou pelas UTIs dos hospitais, mas nada.

Quando já estava quase desistindo, a Morte passou pelos corredores da maternidade e viu um sujeito sorridente, cara colada no vidro do berçário.

— Ei-lo aqui! Uma existência perfeita! Cumpriu todos os seus projetos. Enfim, um homem feliz. Levá-lo-ei comigo, antes que o peso dos anos e a frustração das derrotas o atinjam.

Inexplicavelmente, João foi acometido por um súbito ataque cardíaco. Morreu na plenitude de seus trinta e poucos anos.

O outro João, no entanto, nem teve como aproveitar a segunda oportunidade que a Morte lhe deu. Com terríveis seqüelas, em estado vegetativo, ele viveu muitos e longos anos aprisionado a uma cama. Completará cento e três anos em novembro. Dizem que a Morte o esqueceu. Era a última desgraça que lhe faltava.