A Farmácia de Platão

A FARMÁCIA DE PLATÃO

Não sou do tempo em que farmácia era “pharmacia” com pê agá. Não, não sou tão antigo assim. Minha geração é da época em que farmácia era farmácia mesmo, tal como na definição de qualquer dicionário, ou seja, um lugar onde se prepara se compra e se vende remédios ou materiais necessários para cuidar da saúde. Pensamos em xaropes, pomadas, comprimidos, soluções, na famosa balança (para quem sempre dispensamos uns vinte segundos) e por aí vai. Tudo bem: vendiam-se também artigos de higiene, perfumaria e cosméticos, afinal de contas o trato para com a beleza (mesmo que a pessoa não a possua!) reflete um cuidado com a saúde.

Neste pensamento, estando eu em um dos terminais rodoviários da cidade – aguardando o ônibus que me levaria para o bairro de minha residência (depois de um dia atribulado no escritório) – observava uma farmácia que se encontrava à minha frente, bem ao lado do terminal. E quão diferente se apresentava esta farmácia da minha! Se não fosse o grande letreiro na fachada do estabelecimento, anunciando em cores vermelhas “FARMÁCIA 82”, poderia eu confundir o local com uma loja de conveniência ou um pequenino mercado.

Foi interessante acompanhar a entrada de um cliente na drogaria. Dirigiu-se diretamente para um dos caixas eletrônicos que lá havia (sim, pois eram dois) e deve ter retirado uma quantia em dinheiro, pois logo foi ao caixa para pagar algo. “Um boleto ou uma conta de água ou luz”, imaginei. Quando estava já saindo, deu dois passos atrás e inseriu duas moedas num refrigerador, retirando do mesmo uma latinha de qualquer coisa. Não comprou nem uma aspirina.

É engraçado: ao fundo da loja (?) ficavam as estantes com os inúmeros medicamentos. Mas até chegarmos a eles como é grande o mundo de variedades que nos são apresentadas pelo caminho: chocolates, biscoitos, ovos de páscoa (sim, estamos na época), refrigerantes, chás, energéticos, petiscos, salgadinhos, caixas eletrônicos, sorvetes, jornais, revistas, canetas, lápis, chicletes, cartões telefônicos, brinquedos, máquinas de café... Não mais só das dores e males humanos se vive uma farmácia. Como me disse certa vez um primo farmacêutico: “O propósito do farmacêutico hoje em dia é vender, seja o que for. Acima de tudo sou um vendedor!”. Nunca tinha pensado a farmácia como um ponto de venda. “Reflexos de uma sociedade pós-moderna”, concluí.

Chegou meu ônibus. “Ótimo”.

No caminho para casa (o ônibus lotado como de praxe) recordei-me da estranha e contraditória relação que certo amigo meu travava com uma destas casas de cura.

Haroldo, que também é da época em que farmácia era farmácia mesmo, é meu vizinho - apenas duas residências separam as nossas casas - e amigo de alguns anos. Ora, bem em frente à sua casa temos uma farmácia que por um bom tempo foi alvo de queixas e lamentações de meu amigo. Deixe-me explicar: penso que nenhum ser humano, em sã consciência, reclamaria de ter uma farmácia perto de sua residência (muito menos a do seu Gomes, que era uma ótima pessoa), mas a argumentação de Haroldo pautava-se no imperativo necessidade: “Antigripais necessitamos duas ou três vezes ao ano; quem sabe um remédio aqui, outro ali. É preferível uma padaria à esta farmácia. Pão e leite necessitamos todos os dias para o café!”. A padaria mais próxima das nossas residências se encontrava a sete quarteirões; ou seja, dispêndio de tempo e esforço!

Mas as coisas mudam. As farmácias mudaram. E o pensamento de Haroldo também mudou. Deveras, na medida em que as farmácias começaram a vender também pão e leite, agregando ao seu arsenal de mercadorias mais elementos que fossem úteis para os cidadãos, Haroldo começou a sorrir. Não precisa mais andar centenas de metros até a padaria do seu Juvenal. Bastava abrir o portão e atravessar a rua para estar com o leite, o pão e a carteira de cigarros. Sim, exatamente. Havia me esquecido, mas no rol de produtos comercializados dentro das farmácias o cigarro era apenas mais um deles. O mostruário com várias marcas de cigarro ficava na maioria dos estabelecimentos junto ao caixa. A pessoa chegava, comprava uma dipirona sódica e na hora de pagar olhava para cima e dizia: “Me vê tal marca”. E o atendente já ia puxando o isqueiro. “Precisa de fogo?”

Haroldo era um fumante inveterado. Uma carteira todos os dias. Às vezes no final da tarde, depois do trabalho, comprava outra. Sempre a mesma marca. Seu Gomes pela manhã, ao ver Haroldo se aproximando, já ia retirando um litro de leite, meia dúzia de pão francês e um maço de cigarros. Sempre a mesma marca; ai se faltasse a tal marca!

Meu amigo defendia a causa, com referência a história das boticas nacionais: “Se até meados de 1938, no Brasil, era vendido drogas nas farmácias, que hoje são consideradas ilegais e podem levar qualquer um para a cadeia, por que o meu inofensivo cigarrinho não pode ser comercializado? E outra: farmácia não é sinônimo de drogaria? Minha droga é lícita como muitas outras que lá se encontram nas prateleiras”. Dava risada.

Apesar de sermos vizinhos, fazia cinco dias que não via Haroldo. Nossa última conversa esteve pautada sobre sua saúde. Havia tempos que ele reclamava de dificuldades para respirar, além de tossir regularmente. Tudo, é óbvio, obra da nicotina e da vida sedentária. “Pelo menos antes, de vez em quando, caminhava até a padaria do seu Juvenal, mas agora nem isso faz mais” – pensei comigo. Tinha consultado um pneumologista, que lhe recomendou alguns exames e estava convencido a fazê-los naquele dia mesmo.

O resultado dos exames sairia depois de cinco dias. Ou seja: hoje.

Desci no meu ponto de sempre, já convicto em dar uma rápida passada na casa de Haroldo para vê-lo e também saber o que tinha dado nos exames.

 - Oi, Marta! Tudo bem? O Haroldo já chegou?

- Ainda não. Ele ia sair do serviço e passar pegar os exames para depois levar ao médico.

Mas no momento que sua esposa acabou de responder, ele já vinha chegando.

Enfisema pulmonar. Iria iniciar o tratamento pela amanhã mesmo. “Terei que dormir com esta notícia hoje” - refleti eu com meus botões, após uma despedida amarela.

Acordo cedo e sempre tenho como sagrado hábito tomar no mínimo uma xícara de café com leite antes de sair de casa. Mas hoje acordei com uma mal estar no estômago horrível, que até o café parecia intragável. Antes de ir para o escritório teria que passar na farmácia e comprar um sal de frutas para ver se aliviava o incômodo.

Enquanto seu Gomes ia pegando meu alívio em pó, Haroldo adentrava no recinto. “Bom dias” e mais algumas palavras. Aquela dureza de ser simpático pela manhã, ainda mais com um peso nas costas como aquele que ela já estava carregando.

 - Um litro e meia dúzia, Gomes. No lugar do cigarro pega isso.

E jogou uma receita médica no balcão. Broncodilatador, corticosteróide e antibiótico. Prescrições do médico para aliviar os sintomas da enfisema.

Me despeço do farmacêutico e de Haroldo e sigo na rua. Olho para trás e fito o letreiro da farmácia : FARMÁCIA MODERNA. Ao lado das palavras, um símbolo que era tão antigo quanto as farmácias da minha época: o desenho da cobra enrolada na taça – símbolo herdado da Antigüidade grega, demonstrando o poder da cura. E pensando ainda sobre a má sorte de meu amigo e a via crucis que ele ia enfrentar, pondero: “É... agora a cobra vai fumar, Haroldo”.

Dennis Dcalyjhuan
Enviado por Dennis Dcalyjhuan em 17/10/2008
Código do texto: T1233294
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