DUCHA DE ÁGUA FRIA NA HORA ERRADA

Era uma tarde de sábado. O clima, quente e abafado. Ele estava visitando uma exposição de fotografias que retratavam imagens e paisagens da sua cidade natal, a partir dos anos 20. Aquelas fotos, muitas já amarelecidas pelo tempo, despertavam nele um verdadeiro sentimento de nostalgia.

A sua mente voltou-se no tempo. Algumas fotos fizerem com que ele recordasse a sua juventude, identificada com as avenidas, ruas, prédios, praças, paisagens e recantos que, imediatamente, o fizerem reviver uma época em que a vida era um sonho juvenil, pleno de romantismo e de esperanças peculiares à sua idade.

Naquele momento, poucas pessoas estavam no recinto. Talvez a maioria dos visitantes não se detivesse tanto na apreciação da mostra como ele, provavelmente por não sentirem a mesma emoção de quem, um dia, conviveu com aquelas imagens e ambientes.

Em certo instante, ele se viu apreciando uma foto de uma avenida, a principal da cidade, que, naquele tempo, era ornamentada por uma arborização magnífica de ficus, dispostos em ambos os lados da via pública e que proporcionava um ambiente muito agradável àqueles que por ali transitavam.

Havia aquela sensação de frescor sob as imensas árvores, cuja sombra era capaz de amenizar o mais inclemente calor. A sombra abarcava por inteiro a avenida. Diga-se, a propósito, que naquela época o clima da cidade era ameno e agradável. Talvez porque existissem muito mais árvores e muito menos asfalto. E menos agressões ao planeta como acontecem hoje.

Uma senhora, ou senhorita, também estava a admirar a mesma foto. Ela, evidentemente, não viveu aquela época. Começou a haver um diálogo entre ele a a moça, com a descrição que ele fazia sobre aquele tempo e aqueles ambientes. Ela se mostrou interessada na descrição e assim foram, juntos, percorrer o restante das fotos. Ao término da visita, ele achou por bem convidar a moça para um café, ao que ela aquiesceu.

Numa cafeteria próxima, sentaram-se e fizeram o pedido ao garçon. Durante a conversa, ele percebeu nela uma pessoa inteligente, desembaraçada, atualizada e com vivo interesse em saber mais sobre o crescimento e as transformações havidas na cidade, a partir daqueles tempos refletidos na mostra fotográfica.

Depois de algum tempo de conversa, quando já se podia sentir um certo clima de confiança recíproca, o assunto passou a um campo mais pessoal. Identificaram-se pelo primeiro nome, falaram de suas atividades profissionais, suas predileções em lazer, em literatura, música e outras.

Tudo indicava que se estava iniciando, se não um romance, pelo menos uma empatia entre duas pessoas que, numa hipótese plausível, poderia sugerir novos encontros. Num dado momento, a moça mencionou o seu sobrenome. Ele ouviu e sentiu o corpo arrepiar. Foi como se uma ducha de água fria se despencasse sobre ele, na hora errada.

Ouvindo mais a partir daquela revelação, ele chegou à conclusão de que a moça ninguém mais era do que sua sobrinha, a qual não via fazia anos, dado que ela residiu, estudou e trabalhou no exterior por alguns anos, tendo regressado há poucos meses e perdendo o contato com muitos dos parentes que aqui deixou, ele inclusive.

Ele não a reconheceu de pronto já que, quando de sua ida para o exterior, ela era ainda muito jovem e, decorridos vários anos, não poderia mesmo reconhecê-la. Agora já era uma mulher feita, elegante e sedutora.

Ele ficou perplexo por uns instantes. Quando tudo estava a indicar que uma nova relação estava para se iniciar, relação de homem e mulher, naturalmente, sua constatação caiu-lhe como um balde de água fria. A custo, ele conseguiu recompor-se e, com calma, disse à moça o quê tinha que ser revelado. Ela também demonstrou, pelos seus gestos e semblante, ter sentido o impacto da revelação inesperada e contundente.

Vencidos os primeiros momentos de estupefação, ele se dispôs a levá-la até sua casa, convite ao qual ela declinou, pois deve ter sentido que precisaria ficar só para absorver melhor tamanho desapontamento que, se não tivesse ocorrido, provavelmente um novo romance estaria para começar.

Ele pagou a conta e ambos sairam da cafeteria. Despediram-se, algo desconsertados, e cada um tomou o seu rumo. O que veio depois de algum tempo foi o reatamento de uma relação fraternal entre tio e sobrinha, sendo que, ao que se sabe, nenhum dos dois jamais revelou o episódio a terceiros.

Em outras oportunidades em que se viram, era notório, de ambas as partes, um comportamento que fugia do natural. Na realidade, a relação já não podia ser tão fraternal assim. Houve um episódio entre os dois que jamais poderia ser esquecido. Circunstancial, é verdade, mas concreto.

Uma pena. Uma relação de parentesco cortou, como uma lâmina afiada, o que poderia ter se transformado em um belo caso de amor. Coisas da vida. Acontecem, quando menos se espera.

Augusto Canabrava
Enviado por Augusto Canabrava em 30/10/2008
Reeditado em 20/11/2008
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