Noite fria

Noite fria na BR-153, entre Ituiutaba e Prata. Dentro do ônibus da Nacional Expresso, uma senhora rezava um terço. Era perto de meia noite. A senhora era minha mãe, e eu, um adolescente de 14 anos, que dormia, tranquilamente, ao seu lado. Não só eu, como quase todos os passageiros. Afinal, já era tarde e a viagem até Campinas estava apenas começando. “Ave Maria, cheia de graça”- murmurava mamãe, suavemente, para não acordar ninguém. O balançar do ônibus na escuridão, os flashs dos faróis dos carros que passavam e aquela poltrona macia, potencializavam ainda mais o meu sono.”Agora e na hora de nossa morte. Amém”.

_Ninguém se mexe, porra! Tô falando sério, caralho! É ... é isso mesmo!

Abri, calma e lentamente, os olhos e, ainda pensando ser um sonho, não acreditei no que vi. Um sujeito encapuzado, jaqueta de couro, muito ofegante e com uma submetralhadora nas mãos, ameaçava aos gritos:

_É um assalto! Assalto! O motorista já tá na nossa mão! Se alguém se mexer, morre!

Ainda inebriado pelo sono, desviei meu olhar, que duvidava, para mamãe que, ainda rezando, balançou a cabeça positivamente. “Meu Deus!” Era isso mesmo. O ônibus estava sendo assaltado. E o pior: comigo dentro! Logo apareceram três homens, todos encapuzados e armados (um, com uma 765 e os outros, com um 38 cada). Meu primo Fábio tinha um Super Trunfo (quem tem mais de 30 anos sabe o que é isso) de armas de fogo. Como tinha ficado em sua casa nas últimas férias, aprendi a identificar quase todo tipo de arma. “ Bendita sois vós entre as mulheres” Mamãe continuava a rezar, evidentemente.

_Se todo mundo colaborar, ninguém se machuca! A gente tá procurando uma coisa.

Nesse momento, os meliantes começaram a recolher os pertences dos passageiros. Dinheiro, jóias, relógios e qualquer outra coisa de valor. Mamãe perdeu seu relógio e o dinheiro que estava em sua bolsa. Eu, como não usava relógio, perdi apenas uma nota de cinco reais (imaginem que era real, pois, na época, a moeda mudava tanto, que eu não me recordo bem qual era), que estava na minha carteira.

Renata, uma das garotas do grupo de adolescentes que minha mãe estava levando para um retiro espiritual em Siloé, estava prestes a passar um dos piores momentos de sua vida. Um dos bandidos, ao vê-la, sentiu-se atraído. Ela era, realmente, muito bonita.

_Pra fora menina! Rápido! Anda!

E, num único movimento, arremessou-a em direção à saída do ônibus. Ela tentou ficar, mas, chorando, foi arrastada pra fora. O frio aumentava e o suor também. Olhei pra mamãe, como quem pede alguma orientação, uma ordem. “Ave Maria, cheia de graça”. Continuava ela, desta vez não tão calma, mas confiante.

_É bom acharmos o que estamos procurando, senão...Você sabe o que é! Poupe a vida dos outros e nos entregue logo, porra! A gente sabe que tá aqui e...

Antes que ele terminasse a frase, um estampido feriu nossos ouvidos. “Oh, meu Deus! O que será que aconteceu? Será a Renata? “ Não tinha coragem de olhar pra trás. Poderia ser eu a próxima vítima. Apertei a mão de mamãe, quase quebrando seus dedos. Estava mais frio, porém suávamos. “Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus!” E olhando-me com amor materno, passava-me uma tranqüilidade incompatível com a situação. A essa altura, podia-se perceber que ônibus não estava mais no asfalto, devido aos solavancos, bruscos e seqüenciais. Depois, parou onde, mais tarde, veríamos que era um canavial. De repente, pisei em algo líquido. Pensando ter derramado minha latinha de refrigerante, olhei para baixo, com muita calma. Lembrei da ameaça: “Se alguém se mexer...”. Infelizmente, o líquido em que eu pisara não era Coca-Cola. Era sangue! “Oh, meu Deus” O que estava acontecendo?”. Mamãe apertou a minha mão e passou as mãos em minha fronte, enxugando-a. “Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós...”.

O sangue era de um rapaz que levara um tiro minutos atrás. No momento em que ouvimos o estampido. Ele estava escutando seu walk-man (já deu pra perceber que o fato se passou nos anos 80, não é?), com o fone de ouvido e não havia percebido a situação. Quando viu um homem armado na sua frente, o susto fê-lo reagir, movimentando os braços bruscamente. O bandido, que nessas situações fica muito mais nervoso que a vítima, atirou. Por Deus, a bala atingiu a perna.

_Seu idiota, eu disse que não era pra ferir ninguém! Como pode ser tão burro! Assalto sem vítimas! Sem vítimas!-gritava o da submetralhadora, que aparentava ser o chefe do bando.

_Mas...mas ele...ele ia...

_Cale a boca! Vai lá pra fora! Não preciso de você aqui! Reviste as malas deles! Vá logo, idiota!-esbravejou desferindo um tapa na cabeça do comparsa.

O clima ficou tenso. Na confusão, Renata entrou novamente no ônibus. Graças a Deus, o acontecido acabara com os planos do outro marginal que, fora obrigado a entrar e continuar o trabalho do primeiro. A prova prática da máxima: “Há males que vêm pra bem.” Mamãe sorriu e, fechando os olhos, olhou para o alto, como que em gratidão.

Eu estava apavorado e, ao mesmo tempo, maravilhado. Dá pra acreditar? Maravilhado, por estar vivendo na pele, uma situação que só se via nos cinemas! “Agora e na hora de nossa morte...” A oração de mamãe me trouxera de volta à realidade.

_Olha, gente. Ninguém aqui quer fazer mal pra ninguém, não. A gente só quer trabalhar. Você aí, o que faz?-perguntou a um senhor, que parecia dar a benção a um neto, enquanto seu relógio era furtado.

_Sou jornalista.- disse o velho.

_Gosta que alguém o atrapalhe quando trabalha?

O velho balançou a cabeça.

_Então. Sou ladrão! O meu trabalho é esse! Não quero que me atrapalhem! Se colaborarem, tudo sairá bem!

Por incrível que pareça, não só o velho jornalista, mas, a maioria das pessoas, esboçou um sorriso. Alguns até riram.

_Só não vai me colocar amanhã na primeira página de seu jornal...

A gargalhada foi geral. Inclusive o homem que nos ameaçava com uma submetralhadora. O que a tensão não faz com a mente humana. Naquele momento, bandido e vítima, caçador e presa, haviam esquecido os seus papéis. Uma inexplicável relação de cordialidade nascia naquele momento. O clima ficou mais leve.

“Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.” Mamãe continuava a rezar. No momento em que viro o meu rosto para ela, vejo uma cena que me fez voltar a suar. Um senhor, relativamente forte, cabelos negros, porém, grisalhos nas laterais, desceu, suspeitamente, as mãos à cintura. “Meu Deus!” Entre a Bíblia e o braço de minha mãe pude ver o que ele procurava. Sob a camisa rosa choque, uma Magnum 9.0 mm repousava, ameaçadoramente, sobre seu rim esquerdo. Não avisei mamãe, temendo que ela reagisse mais abruptamente. Não tinha jeito. Mamãe não poderia ver a cena. Teria que ser eu. E, num gesto de fé, nunca por mim experimentado antes, juntei-me a ela em oração. “Santa Maria, Mãe de Deus.Rogai...”

_Já achamos o que queríamos! Vamos embora!-grita uma voz lá de fora.

_Vão indo pro carro que eu já vou!-respondeu o chefe.

E, voltando-se para nós, novamente:

_Pra não deixar vocês desprevenidos, vou deixar dez reais pra cada um! Vou deixar com essa senhora da Bíblia aqui! Depois, vocês pegam com ela!

Contou o dinheiro, colocou 430 reais nas mãos de mamãe e seguiu rumo à porta.

_Desculpem qualquer coisa! Ah, só saiam do ônibus quando ouvirem o carro se afastar, hein!-bradou, antes de sair.

Segundos depois, ouvimos o barulho de um carro, que foi diminuindo até sumir.”Ufa! Graças a Deus!”. O sentimento geral ali era de alívio. Nesse momento, todos se aproximavam de mamãe para pegar seus dez reais e ela foi, pacientemente, distribuindo a todos. Inclusive a mim, lógico! O bandido tinha sido claro: “Dez reais pra cada um!”

Sem dúvida, essa foi uma das experiências mais inesquecíveis da minha vida. Principalmente porque me revelou, na prática, o valor da oração. Analisemos:

A Renata poderia ser estuprada e não foi. O tiro que o rapaz do walk-man sofreu, salvou-a. Em contrapartida, o rapaz poderia ter morrido, mas o tiro foi na perna e de raspão.

O senhor grisalho que eu vi com a pistola era um ex-agente da polícia federal aposentado. Disse que, normalmente, reagiria naquela situação. Mas sentiu uma força segurando seu braço, impedindo-o de qualquer ação.

Vocês devem estar loucos pra saber o que os meliantes tanto procuravam, não é? Explicarei, então.

Dos passageiros daquele ônibus, duas pessoas eram garimpeiros que voltavam pra suas casas com uma grande quantidade de ouro. Graças a Deus, os bandidos encontraram-no, escondido em meio às bagagens. Aqui, Deus também agiu, pois os garimpeiros confessaram que não entregariam fácil o ouro. E, como os ladrões não sabiam quem eram eles, poderia sobrar pra algum inocente.

E Deus, pela intercessão de Nossa Senhora, continuou agindo. A Empresa pagou todas as nossas despesas durante a viagem. Quando chegamos ao encontro e contamos o que havia acontecido, os organizadores nos isentaram de pagar as ficha de inscrição, que seriam pagas com dinheiro que levaram da bolsa de minha mãe. Ou seja, Deus providenciou tudo. E o melhor de tudo: Fiquei com cinco reais de lucro!

Brincadeiras à parte, esse fato, que realmente aconteceu, mostra a importância da fé e da oração em nossas vidas. Espero ter contribuído um pouco para que as pessoas reconheçam isso.

Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!

Jack Cannon
Enviado por Jack Cannon em 01/11/2008
Reeditado em 24/05/2013
Código do texto: T1259430
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.