ADOÇÃO

ADOÇÃO

Fora um sonho estranho e muito lindo... Enquanto arrancava os matos ressecados e aguava as plantas, Universo refletia e devaneava no jardim. Os brincos de princesa que Maria costumava amarrar em linhas coloridas para colocar nas orelhas – sentindo-se uma verdadeira princesa, coitadinha – estavam muito vivos, cheios de luz. Abelhas zumbiam por entre as plantas e sim,

também pássaros folientos, cheios de opiniãozinhas próprias em suas pequenas mentes.

Havia também aquela enorme aranha cheia de estranhos desenhos em uma teia que parecia um arco-íris quando o sol refletia sobre ela. Universo a temia e também admirava. Estava em dúvida

se pegava a vassoura e a espantava ou se a deixava em paz. Preferia as abelhas, a professora havia dito que eram bichinhos úteis, símbolo do trabalho, diferente das prequiçosas cigarras ...

Universo sentia-se culposamente uma cigarra, é claro. Tinha preguiça de estar trabalhando sempre e preferia estar brincando com as outras crianças. A “Mãe” sempre o chamava de preguiçoso, inútil, mas ele sabia, no fundo de seu coração, que ela o fazia por estar sempre zangada, irritada. Ele acordava sempre cedo, muito cedo. Ia buscar o pão, ferver o leite, servia a mesa, retirava a mesa, lavava a louça, varria e espanava a casa, recolhia a roupa do varal, fazia outras compras para o almoço, descascava alimentos, servia a mesa, almoçava e ia para a escola. Seu bom apetite também era motivo de humilhação: “guloso, esfomeado” - “ come que nem um trabalhador braçal ” – era a cantilena do almoço e jantar. O pior é que trabalhador braçal era justamente oque ele era.

Quando voltava, encontrava a louça do almoço para lavar, ia comprar o pão do lanche da tarde, estendia a roupa no varal, cuidava dos pássaros (e do papagaio feroz que sempre tentava bica-lo), fervia o leite, servia a mesa ... e até a hora do jantar (e a louça do jantar e arrumar as camas para dormir, banhar e trocar os irmãos) sua vida era um nunca acabar de trabalhos e como dizia a “Mãe” fazendo muito mal e porcamente as suas “obrigações”. O pior eram os dias de faxina, lavar banheiros, encerar a casa e lavar o quintal (mas Universo gostava de jogar baldes e baldes de água no cimento, era uma espécie de diversão e cada cantinho, cada mancha no chão contavam uma história fantástica). Cuidar do jardim também era legal, tudo oque Universo plantava logo crescia e ficava verde e forte. E sempre se podia devanear um pouco, seguindo a fila de formigas para ver aonde elas iam e de onde saiam. As vezes, em um ataque de maldade ele jogava terra nos formigueiros ou colocava obstáculos no caminho das pobres formigas. Mas no fundo era só para saber como elas reagiriam. E elas sempre reconstruíam suas “casas”, sempre achavam uma maneira de contornar os “desafios”. Teimosas !

As minhocas também eram intrigantes – aonde era a cabeça e aonde era o rabo ? – e divertia-se cutucando tatuzinhos com hastes de grama, para ver eles se fecharem, na defensiva.

- Universo ... Universoooo ... era o grito da “MÂE” , voz áspera e cheia de ódio. Ela apareceu no jardim, mãos na cintura: ... que é que você está fazendo ? já terminou de limpar o jardim ? faz um tempão que você está aí, fazendo não sei oquê. Você já fez sua lição de casa ?

... a lição de casa, tinha esquecido ...

- Mãezinha, eu tava aguando as plantas, tinha muito mato ...

- Olha sua imundice, seu demazelado, você pelo menos penteou os cabelos hoje ? Vai já fazer seu dever de casa e por a mesa, daqui a pouco voces tem de ir para a escola e nem deu banho nas crianças ainda ... seu cachorro, sempre me dando trabalho, sempre me aborrecendo !

Universo tentou manhosamente contornar a “Mãe”, mas o espaço era pequeno e vapt ! lambada no lombo ! Foi chorando fazer a lição de casa: se Márcio tem dez laranjas e dá 4 para Antonio, com qual a percentagem de laranjas ele permanece ?

Enquanto ele fazia a lição a Mãe o observava sisuda, raivosa e exclamava para si mesma:

“não tem jeito mesmo, ô raça desgraçada ...”

Enquanto a professora, uma freirinha baixinha, doce e firme falava sobre sólidos e compostos e os desenhava na lousa, Universo lembrou-se novamente do sonho. E a mesma sensação de encantamento e felicidade o inundou, fazendo esquecer as pequenas misérias da vida.

Não conseguia lembrar-se muito nítidamente, apenas recordava ter sido atraído para uma enorme floresta, ao som de maravilhosos atabaques e de ter sido devolvido, avistando a floresta ao longe. Sabia apenas ter recebido seu nome de tribo – do qual não se recordava – e que não deveria revelar este nome a ninguém.

Este delicioso segredo era só seu e não pensava em contar a ninguém, nem a Maria sua amiga, com os cabelos raspados até o toco, cara de menina sofrida que apanhava dia e noite do pai violento e bêbado e com olhos azuis tão claros que pareciam desmaiados. Outras crianças falavam que Maria era moleque, por causa de não ser bonita e ter os cabelos raspados e ela vivia chorando por causa disso. Mas Universo sabia que os cabelos dela eram bonitos, era apenas malvadeza do pai dela, raspa-los assim. Uma vez vira o pai de Maria bater de chicote em um dos irmãos dela. Fora uma cena horrível, que ficara gravada a ferro e fogo em sua mente. Ele passara semanas encenando mentalmente um socorro que teria prestado ao menino. Ora colocando o pé na frente do pai malvado, fazendo-o tropeçar, ora tomando o chicote das mãos dele e retribuindo a surra. Mas, era só um menino pequeno e meio gorducho e não fizera nada disto. Sentira-se um grande covarde.

Outra vez, num dia de muito frio, vira este mesmo menino – a família de Maria era muito pobre - sem o blusão da escola, a tiritar de frio, os olhos azuis sofridos ... Tivera vontade de lhe dar o seu blusão e ficar só com a blusa de lã de baixo. Mas, tivera medo da reação da “MÃE”. Poderia dizer que perdera o blusão, mas a surra que se seguiria falou mais forte em seu coração que a piedade.

Nos últimos tempos, chorava menos quando apanhava. Pois seus irmãos adotivos riam e zombavam: “apanhoou ... apanhoou ...” e ele ficava com vergonha de chorar. Além disso, em seu coração começava a aparecer um sentimento de raiva muito grande e tão grande que as vezes o fazia enfrentar a “Mãe” com olhos de desafio, mesmo em meio a pancadaria e xingamentos. Ela ficava um pouco espantada e pelo espanto, reduplicava o castigo. Mas ele sentia-se muito bem quando conseguia reter as lágrimas. Quase um herói !

Ploc ! um giz acertava sua cabeça.

- Universo ! voz serena e firme. Ele acordava espantado do devaneio. – Aonde você está com a cabeça menino ? Oque foi que eu disse agora, na aula de Geometria ?

E lá ia Universo desfilando a lição, que fora acompanhada por meia mente, sendo meio adivinhada, meio deduzida. Não importava quanto ele se distraísse ou se ausentasse emocionalmente das aulas, suas notas eram sempre boas e seu nome estava sempre no quadro de honra. Oque era sempre um motivo de ficar de castigo em casa, quando por excesso de vadiagem mental não alcançava os mesmos resultados, com os quais a “Mãe” gostava de se pavonear em frente as vizinhas e do qual secretamente se enraivecia, já que seus filhos biológicos não obtinham o mesmo.

...”Ele é muito inteligente ... poderia muito bem tirar notas melhores se não fosse o vagabundo que é !”

Muito inteligente portanto não era uma glória própriamente. Era uma obrigação a mais, perante a “Mãe”, um dever a mais para se cumprir. Além disso, Universo gostava e não gostava de ver seu nome no “Quadro de Honra”. Era gostoso ver seu nome brilhando entre os melhores, mas muitos colegas não gostavam dele por isso. E Universo gostava de ser gostado. Pelo menos na escola, já que em casa ...

Dia de feira, lá ia ele com a sacola, para carregar as compras. Olhava cobiçoso para as ameixas e goiabas mas não dizia nada, mesmo com as lombrigas o atormentando. Fazia questão de carregar sozinho a sacola cheia, muito além de suas forças, pois gostava de se desafiar a além disso, quem sabe a “MÃE” hoje gostasse um pouquinho mais dele, por isso ...

Hoje era dia de São João e se fizesse tudo certinho, talvez pudesse brincar um pouco mais na festinha – em dias sociais a “MÂE” deixava ele brincar um pouco, senão haveria falatórios na vizinhança.

Depois de carregar os pratos para a mesa comum, montada na rua e pegar as cadeiras para os vizinhos sentarem, o friozinho no estômago, a voz embargada dolorosamente não querendo sair:

- Mãezinha, posso brincar ?

Envolvida na última fofoca do bairro e um pouco alegre com o quentão, a sentença favorável vinha, solene e concessiva:

- póde, mas brinque sem correria e cuida de seus irmãos, se eles se machucarem, você apanha !

Maravilha das maravilhas e pega pega, piques, esconde-esconde. E sua preferida: os Incas Venusianos perseguindo as crianças que se escondiam entre portões, árvores e mesas. Ele é claro, era sempre o Nacional Kid herói fantástico e incondicional, salvando os amiguinhos dos seres interplanetários do mal. Sem perceber se impunha e era muito intransigente na liderança das brincadeiras. Aprendera as suas custas a lei do mais forte e absorvera a prepotência doméstica como uma segunda lei em sua natureza tão amigável. Era o mundo que conhecia e só conhecia este: eu posso, portanto eu mando, quer seja justo ou não.

Apesar disso era muito popular entre os inocentinhos desavisados, que não conheciam estas leis de sobrevivência em seus amorosos e invejados lares. Além de sua natural alegria (um pequeno farrista, apesar dos pesares), tinha uma imaginação muitíssimo rica, que acrescentava sabor e cores a todas as brincadeiras. Inventava enredos, criava medalhas, armas, fantasias com qualquer material a mão. Tinha todo um mundo de enlevo e invencionices dentro de si para doar. Aliás inventar era com ele, por isso a “MÃE” o chamava de “mentiroso e trapaceiro”. Nem sempre sem razão, aliás.

Infelizmente, durante as festas, quase sempre algum de seus irmãos adotivos menores tropeçava ou caia ou batia em algum lugar e Universo ia para dentro de castigo, com o lombo ardendo, mas achando que valera a pena, mesmo com as palmadas de encerramento.

Os atabaques estavam mais intensos e ele avistou o índio de olhos que pareciam duas jóias amareladas, brilhantes como o Sol. Estranhamente ele tinha um crucifixo em seu pescoço, uma peça simples, escura em um cordão de palha.

- Então ... aí está a “Criança que Procura” !

Universo o saudou:

- Salve Sentinela ! Eu vim ...

O índio sorriu, sábia e bondosamente.

- Sim Curumin, você veio.

Universo hesitou:

- e pretendo entrar.

Lentamente o Sentinela fez um sinal de negativa e uma expressão de piedade assomou em sua face:

- porque Curumin, você pretende oque guerreiros adultos, fortes e preparados não ousam ? Você ignora “Criança que Procura” os males que existem e que podem advir de sua decisão. Será sua curiosidade maior que seu amor a vida, maior que a prudência que até os próprios bichos manifestam, não penetrando o Local Proibido ?

- O Sr. é o Guardião deste lugar ? vai me proibir de entrar ?

- Não, Curumin. Meus Maiores me ordenaram vigiar e guardar, não o Lugar que se defende por Si. Mas as almas ignorantes e simplórias que aqui buscam aventuras ou respostas que não encontrariam, não da maneira que pensam encontrar, pelo menos.

- Eu não sou ignorante, falaciou Universo, tenho ótimas notas na escola.

O Sentinela riu-se. Um riso baixo, profundo, deliciado. Mas vendo a fisionomia ofendida do menino, corrigiu-se:

- Ouça filho, eu não sei oque te move ou porque o desejo tão intenso em desbravar o Lugar te traz noite após noite, durante o sono ao Local. Não sei oque busca e nem mesmo com certeza, oque encontrará. Só sei que de nossa tradição e pela sabedoria dos Anciãos somos avisados que nenhum Bem pode advir desta Busca, somente grande sofrimento e espanto.

- Eu não me importo, jactanciou-se Universo, estou acostumado a sofrer ! (oque era e não verdade, pois tinha também a parte boa: a escola, o jardim, os amiguinhos, os desenhos, os doces ... e o menino sentiu que não estava sendo totalmente sincero e que o Sentinela percebia isso).

- ninguém nesta Vida se acostuma com o sofrimento, Curumin. As vezes se adapta as circunstâncias ou cria certa apatia ou se revolta, mas não se acostuma realmente...

- Vai me impedir de entrar ? falou Universo com ar de desafio, que as vezes utilizava com a “MÃE” em momentos de maior coragem.

O Índio suspirou, colocou um braço nos ombro do menino e respondeu:

- Não “Criança que Procura”, eu não ousaria impedir o Destino escolhido por ninguém. Mas deixe-me fazer-lhe uma proposta. E abaixando-se ficou olho a olho com Universo: - Escute com atenção oque vou lhe dizer: Já que você mostrou ser destemido e decidido e está resolvido a fazer oque quer, dê a mim e a meu povo a oportunidade de prepara-lo melhor.

- Como assim ?

- Meu povo, há milhares e milhares de anos, tem como tradição e por ordem divina a função de socorrer os que por curiosidade, inabilidade ou mesmo malícia, acabam perdendo-se em perigos no submundo Astral. E tal como estou fazendo com você, nós os orientamos ou socorremos, as vezes correndo sérios perigos, nós mesmos. Desde muito jovens, somos treinados e preparados para mergulhar em diversos níveis do mundo espiritual subterrâneo e embora não muito agradável as vezes, isto é muito desafiador e nos torna mais fortes e habilitados. Você gostaria de ser adotado e treinado por nós ?

E foi assim que Universo recebeu seu batismo tribal e o seu Nome Secreto ...

Universo sabia que era filho adotivo da “MÃE”. Sabia ser ela uma tia materna, que após casada, havia sido sua madrinha e depois, não podendo ter filhos, resolvera adota-lo para acalmar a zanga do marido italiano que havia planejado uma famiglia com “moltos bambinis” ao redor da mesa.

Sua mãe biológica era paupérrima e os pais das diversas crianças, desconhecidos e ausentes. Fora fácil, uma boca a menos diminuindo a miséria geral. Prometera-se uma vida de conforto, bons estudos, etc. Caso típico, assim que se vira menos pressionada a gerar filhos, a “MÂE” conseguira engravidar. Vez após outra. As pressões da maternidade, o final do sonho de um casamento feliz e o temperamento duro, amargurado, fez com que a “Mãe” voltasse sua fúria e frustração a vítima mais convenientemente a mão, isto é Universo. E ele passou de filho a condição de pequeno empregado doméstico e saco de pancadas, alivador das pressões emocionais destemperadas dos pais adotivos. Uma pequena válvula de escape, que apesar de tudo não se rendia, não deixava de ser feliz em seus raros momentos de brincadeiras e devaneios infantis.

Embora sempre carregasse em si uma sensação de desconforto e inadequação e se sentisse errado, sujo e torto as vezes, no fundo, no fundo, os xingamentos constantes, os vaticínios raivosos que preconizavam um futuro de baixezas, passavam por ele com óleo na água. Algo dentro dele tinha uma profunda sensação de valor, conhecia claramente oque era mal ou não em si e tinha uma percepção quase correta dos processos que moviam os infelizes adultos que o oprimiam. Às vezes chegava a ter pena deles e sim, também amor embora misturado a grande raiva e ressentimento.

Uma coisa que que contribuía para este processo de manutenção de sua pequena auto-estima eram os constantes elogios dos professores e também, embora meio dolorosamente, a inveja dos colegas. Outra eram as constantes fugas de sua imaginação a um mundo de sonhos, aonde ele resgatava sua dignidade em feitos valorosos, interessantes, grandiosos. Por isso a fama de “distraído” que divertia os colegas e enfurecia os pais. Um terceiro fator, totalmente misterioso até para o pequeno Universo eram as incursões noturnas que sua Alma fazia. Sem o conhecimento de sua mente consciente, ele era dia a dia treinado e preparado em rituais que o levavam mais e mais ao Caminho do Gerreiro, fortificando-o, comunicando sabedoria a seu coração.

Desses episódios, apenas lembranças fugazes de sonhos estranhs e pesadelos. Lembrava-se especialmente de um, muito desagradável, em que tivera que salvar um pesquisador tolo e suas tolas filhas de zumbis do Astral inferior, aonde todos estavam aprisionados. Pessoas curiosas que começam a brincar com adivinhações e rituais divinatórios e não sabem aonde estão se metendo. E lá ia ele suar frio e passar susto para salvar os idiotas.

- Então “Criança que Procura”, você está cansado ? não deseja mais participar de nossas excursões de socorro ?

- Não sou mais criança, Sentinela. E estou farto de tudo. De minha vida, neste e em Outro Lugar. Quero parar por aqui. Quero sair daquela casa maldita aonde moro. Quero finalmente poder entrar no Local Proibido, já estou preparado.

- Ninguém nunca está Curumin, ninguém nunca está ! E tem razão, você não é mais uma criança, já é um jovem e seu coração está perturbado e sua mente também. Isto é muito natural em sua idade. Ficar confuso na idade do ritual de passagem, faz parte do processo !

- Não é natural, retrucou nervoso. Nada é natural. Ficar salvando retardados que querem brincar de magia, ficar apanhando daquela bruxa que tenho de chamar de “MÃE”. E tudo isso para que ? Que é que eu ganho com isso ? só trabalho e mais trabalho. Nenhuma recompensa, nenhum alívio, nada. Só pancada e mais pancada !

O Sentinela ficou sério:

- Então era isso, Curumin ? Era isso que você tanto buscava aqui ? Recompensa ? Alívio para seu sofrimento material ? Uma vida tranquila e protegida como a dos seus amiguinhos ? Ou a glória apenas como forma de se vingar dos maus tratos da vida ?

Universo emudeceu por um momento, envergonhado, pois cada uma daquelas palavras caiam como um luva em seus sentimentos confusos, mas reagiu raivosamente:

- E se fosse e se para variar eu quisesse ser feliz ou quisesse me vingar ? Qual o problema, porque só eu tenho que estar sempre sofrendo, lutando, enquanto todos os garotos que conheço vivem uma vida calma, boa e são amados pelos seus pais ?

- Como pode tem certeza, Curumin ? Como pode saber que “todos” estão calmos e felizes e amados ? Oque você sabe das dores, desilusões e fraquezas que atemorizam o coração de outras pessoas ?

E o rosto de Maria e seus irmãos passou pela mente de Universo, bem como as enormes surras que presenciara ou soubera. A mãe se Maria chorando amargamente, infeliz e faminta. O Helio com o rosto triste junto ao túmulo do pai, tão adorado. O nenê da Sra. Fátima, deficiente, para tristeza dos pais e depois crescendo entre as zombarias cruéis de colegas de escola, Sérgio –sempre tão sério - cobrado impiedosamente pelo pai exigente e frio e chantageado pela mãe mimada e indolente e mais e mais cenas surpreendentes e reveladoras se apresentavam.

- Nem tudo são flores, Curumin e toda Vida encerra a Dor como desafio e aprendizado. Talvez a sua pareça maior que as outras em sua mente, mas talvez você simplesmente não conheça muito da vida, para poder julgar.

- Quer dizer que acha MINHA VIDA BOA ???

- Sim ... eu digo a você que sim ... Toda Vida é bela, preciosa, importante. E você está tendo o privilégio de superar sua própria situação de vida com dignidade. Está vencendo os obstáculos com coragem e inteligência. E sua coragem e inteligência não são suas. São um dom, uma dádiva que o Mais Poderoso te concedeu ! Portanto seja agradecido. Por não ser um total incapaz, por poder pensar com agilidade e astúcia. Por poder superar os obstáculos dia a dia e crescer em grandeza de mente e Alma. Você poderia ter se perdido no caminho. Poderia ter fugido de sua casa e se tornado um marginal revoltado. Poderia estar se drogando como um fraco. Mas não, foi amparado pela Misericórdia Divina e está aqui, conosco, fazendo oque existe de melhor, de mais elevado, está doando sua Vida a uma Causa Maior, fazendo um trabalho valoroso e engrandecendo seu Eu.

- EU ... NÃO ... QUERO ... ENGRANDECER O MEU EU !!! EU QUERO SER FELIZ ! EU QUERO SER RESPEITADO E AMADO. EU NÃO QUERO MAIS FAZER PARTE DESTA PORCARIA DE RESGATE ASTRAL ... EU NÃO QUERO MAIS FICAR NAQUELA CASA NOJENTA ... NÃO VOLTO MAIS AQUI E NÃO FICO MAIS POR LÁ ...NUNCA MAIS ... NUNCA MAIS ... ME DEIXEM EM PAZ ...

E partiu, deixando o Sentinela com uma expressão de desolada tristeza:

- Ah ! “Criança que Procura” ! Aqui você é muito mais que amado, muito mais que amado ...

Naquela manhã, Universo cumpriu todos seus deveres, tomou seus últimos cascudos – merecidos ou não – e uniformizado, ao invés de rumar para a Escola, fugiu para a casa de sua mãe biológica.

Foi um período de grande turbulência. Brigas, ameaças de polícia e justiça. A “MÃE” agora em situação econômica instável e a família biológica ascendendo economicamente, definiram o certame familiar. Para a família biológica a oportunidade de uma vingança familiar há muito tempo almejada, por ofensas e humilhações verdadeiras ou imaginadas. Para a família adotiva, a perda de uma mão de obra valiosa e do objeto de alívio para tempestades emocionais. Para Universo, poucas mudanças. Seus irmãos biológicos mais velhos eram extremamente revoltados por sofrimentos e por ter de trabalhar para manter a prole mais nova da sempre ausente “Mãe Biológica”. Os irmãos menores (na verdade Universo era o caçula, mas este tratamento já estava ferozmente reservado para outros quando ele chegara) tinham um ciúme doentio das migalhas de amor que sobravam entre um desprezo e outro, uma rejeição e outra. Sobrou para Universo, fazer a maior parte dos trabalhos domésticos, todas as compras da casa, ir a feira com as irmãs para carregar as sacolas pesadas, cuidar dos animais domésticos e seus dejetos, etc. Não haviam mais os castigos físicos pesados, em compensação os discursos visando atingir a dignidade, a auto-estima e a auto-confiança dos irmãos menores eram mais afiados e maliciosos, já que as “Irmãs mais velhas” tinham duas ou três letras a mais que a pouco letrada “MÃE”. Havia aquele clima “não se sinta a vontade”, “não esteja confortável”, “não haja como um adolescente em seu lar”, porque as “Irmãs mais velhas” se sentiam “obrigadas” mas não “no dever” de criar irmãos menores, além disso eram muito mal remuneradas no mercado de trabalho por falta de educação formal e bastante infelizes. Haviam sim, momentos de alegria e até de carinho. Mas eram quase exceção e quando aconteciam era quase um susto.

Universo era muito engraçado e carinhoso, mas a fama de “preguiçoso”, “desmazelado”, “mal-caráter” criados pela “MÃE” para justificar a brutal repressão a tão ”graves e hediondos defeitos”, fincara raízes inconsciente em todos os familiares e fizera seu estrago. Além disso, as “Irmãs mais velhas” realmente tinham suas razões: não tinham tido a oportunidade de serem crianças ou jovens, enquanto criavam e sustentavam irmãos mais jovens. E os mais novos criavam situações de sabotagem para o relacionamento de Universo com elas, com medo que o pouco afeto concedido pudesse faltar para eles, se o dividissem, num ciúme auto-protetor de bichinhos feridos e carentes.

Universo rápidamente compreendeu - pelo menos de maneira insconsciente - a situação e propor-se com um suspiro de melancolia e cansaço a se livrar da situação o mais rápido que pudesse. Por isso, aos dezesseis anos já trabalhava, interrompeu os estudos e saiu de casa, indo morar em um Pensionato barato.

Universo rápidamente encontrou no Mundo, ambientes bem mais complicado, difícil e muitas vezes mais cruel que em suas Famílias. Patrões que exploravam sua necessidade desesperada de sobrevivência, sua pouca experiência, sua boa vontade. Colegas que não simpatizavam com sua ingenuidade (verdadeira, mas para eles, fingida), seu desejo de conhecer, estudar, melhorar. Como ele ousava querer ser fora do comum ? Ao invés de discutir futebol e televisão, estava sempre com um livro a tira-colo – “metido a sabichão e ganhando a mesma porcaria que nóis”. Os ambientes em que Universo conseguia empregos eram sempre os de baixa escolaridade e míseros salários. As mentalidades abaixo de mesquinhas, medíocre até quase a idiotia. Ele se refugiava na imaginação e na literatura cada vez mais e parecia aos colegas, cada vez mais esquisito, estranho e “metido a besta”. Além disso, a miscigenação não fora favorável a Universo. Ele tinha os olhos puxados de seus antepassados índios, os cabelos secos e crespos e os lábios grossos, de algum antepassado negro (varrido pela memória familiar para debaixo do tapete e teimosamente renegado pelas “Avós”, apesar das evidências), seu queixo muito era retraído (o dentista havia dito que era por causa da miscigenação, oque não era um consolo, pois ele parecia precocemente envelhecido por isso).

Com muitas experiências de rejeição, agressões morais e psicológicas, solidão em meio a multidão, Universo foi aprendendo a gerenciar melhor a questão de seu relacionamento social. Aprendeu a não confrontar a falta de conhecimento e cultura de ninguém, mantendo-se calado, imparcial ou até fazendo concessões em suas opiniões. Aprendeu a cuidar melhor de sua aparência, conforme fosse possível, dentro de seu apertado orçamento. Aprendeu a conviver com mentalidades muito diferentes da sua e a preservar seu Eu mais essencial sem se afligir com processos exteriores, que sempre acreditava provisórios, portanto, descartáveis e pouco importantes, passíveis até de aceitação estratégicamente temporária.

As vezes sentia saudades de suas Famílias, as vezes tentava a reaproximação, mas os processos altamente viciados, doentios que mantinham a dinâmica familiar e para os quais ele estava sempre perceptivo, acabavam por desgosta-lo e ele novamente se afastava.

Houveram alguns namoricos e alguns relacionamentos mais sérios, mas sua total inadequação para a convivência, sua fragilidade murada e protegida até o desespero e sua falta de auto confiança em se fazer amar, acabaram colocando uma colher de sal a mais na ferida e ele resolveu permanecer sozinho, enquanto pudesse. Achava que não haveria no planeta, pessoa alguma capaz de suprir a monstruosa fome de amor que sabia possuir. Nem amor, nem amigo, nem mestre, nem ideal, ninguém poderia cura-lo, nem mesmo ajuda-lo.

Fizera mesmo algumas tentativas de se inserir em alguns movimentos políticos para contribuir com algum ideal, de sua forma entregue e apaixonada de ser. Rápidamente sua intuição e sensitividade captaram a dubiedade, a hipocrisia e a deslealdade deturpando o discursso que era proferido na superfície. Tentara a mesma coisa em diversos movimentos religiosos e espirituais. Mais de uma vez sua antena doentia levou a melhor. Estava sempre lá para que ele soubesse. O desejo de poder, a hipocrisia que enganava a si própria, a busca de auto-valia disfarçada de piedade ou mesmo filantropia.

No entanto, o tempo passava, a idade chegava e as “situações provisórias”, os estados “momentâneos” de dificuldades, as inadequações para os quais ele tinha de fazer concessões “temporárias” não se alteravam ou melhoravam de quadro. E ele percebeu que havia chegado em situação estanque. Piora da situação de saúde. Situação limite de idade para o ingresso em algumas atividades profissionais. Morando ainda em pensionatos sórdidos, repúblicas sujas , sem conseguir realmente formar ou montar um Lar de verdade para si.

Os poucos e leais amigos também eram tão pobres e ferrados quanto ele e não podiam ajudar. Havia o Amiltinho, ele era tão bom e tão generoso que era um grande esforço não abusar de sua gentileza. Amiltinho sofrera abusos e violências inimagináveis em criança e estava sempre tentando mostrar “olhem, olhem, sou uma boa pessoa, não mereço isso” por isso sempre ajudava compulsivamente pessoas e grupos e eternamente recebia ingratidões. Sua amizade sobrevivia porque Universo sempre se negava a receber ajuda de Amiltinho, por mais desesperadamente que precisasse.

Refletindo um dia, Universo viu que sonhara tanto, almejara tão alto e tão belamente a sua Vida e na verdade, na verdade, não passava de um reles fracasso. Alguém que lutava incoerentemente para manter uma vida que no fundo desprezava. Uma vida que nunca aceitara como sua, mas que vivera assim mesmo, como quem aluga uma casa para férias. Ruim, mas só por uns tempos ... Seu corpo vivera uma realidade miserável, enquanto sua mente passeava por mundos e vidas gloriosas.

Chegou o dia do desespero negro: “uma vida de sofrimento, de angústia e eternas incertezas. Só trabalho e desconforto. Nenhum amor, nehuma alegria ou conquista verdadeira, nem mesmo dinheiro para comprar um revólver e acabar com tudo”...

Saiu, o quarto rachado e mofado o oprimia. Rodou todos os viadutos da cidade. Sobrou desespero, faltou coragem. No Viaduto do Chá, foi parado por um desses índios camelôs, vendendo artesanatos e por centavos pequenos decalques com frases feitas. Para se livrar do inoportuno, comprou uma frase qualquer e a meteu no bolso.

Não viu que o índio, de belos olhos amarelos gateados tinha lágrimas nos olhos ao deixa-lo.

Ao chegar em casa, inconscientemente colocou a mão no bolso e encontrou o decalque. Por curiosidade leu, com ironia:

“A vida de um Homem só é completa após ele plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro”.

Teve um ataque de riso nervoso. Era o epitáfio ideal. A ironia final. A última ironia.

Chorou e riu por algum tempo. Levantou-se de repente e saiu para ligar para Amiltinho. Conversaram longamente, ele abriu seu coração, sem sentir vergonha de seu desespero. Amiltinho o colocou no carro e começou a rodar.

- Oque estamos fazendo, cara ?

Amiltinho falou muito sério:

- procurando a casa aonde você vai morar, plantar sua árvore, criar seu filho e escrever seu livro.

- ta brincando ?

- nunca falei mais sério em minha vida !

- mas, eu não tenho filhos, nunca escrevi uma carta em minha vida. ..

- então você primeiro planta a árvore, aí eu te compro um livro de educação sexual de como se fazem os bebês e podemos inscrever você em uma escola de roteiros, sei lá “

- para com isso cara, ta zombando de mim ?

- estou falando muito sério e juro que se você falar mais alguma coisa, reclamar de mais alguma coisa, vou te dar um murro e te deixar inconsciente. Fica quieto e faça oque digo !

Acharam uma pequena casa. Amiltinho alugou em seu próprio nome e o pai dele fez fiança (a contragosto mas fez, porque o sempre dócil Amiltinho parecia ter virado um vampiro furioso pressionando o pai com olhos sinistros, como se estivesse ficado meio maluco).

Universo meio em choque, mudou-se para a casinha, reformou-a com capricho e sim, plantou duas árvores. Goiabeira e Ameixeira para nunca mais passar vontade. Depois adotou Andrezinho, um menino de rua quase ou mais judiado quanto ele e a partir daí, seu dias e noites se transformaram em alegre e intensa preocupação paterna, risos deliciados pelas peraltices, orgulho pelas pequenas conquistas do pestinha.

Leu em um livro que os filhos sempre costumam repetir insconscientemente os padrões comportamentais dos pais, por isso, se vigiava muito para não exagerar nas punições e chamadas de atenção necessárias. Estava sempre analisando se havia sido “exessivamente relapso ou ausente” ou havia sido “brutalmente severo” nas reprimendas. E descobria-se sempre culpado, não importa oque fizesse ou deixasse de fazer. Mas era infinitamente feliz, apesar de tudo.

Passeando no parque com o pirralho, auxiliando a colorir cadernos, contando histórias, levando ao zoológico, emocionando-se sempre com cada estrela que via nos olhos do filho quando recebia um presente de aniversário ou Natal.

Naturalmente o tempo foi passando. Passando um belo sabão de lavadeira nas más lembranças (e as vezes nas boas, é verdade) e André foi tornando-se um belo e digno rapaz, entrando na Faculdadade de Astronomia com boas notas e realizando por vias torts, os sonhos do pai adotivo em estudar apaixonadamente as estrelas e o cosmos.

O rapaz passava agora mais tempo na escola, com os amigos e namoradinhas. Mas Universo não ficou triste. Faltava um item a cumprir em seu “lema” de vida.

Então, em uma bela tarde de verão, amena e luminosa, ele colocou a mesa na varanda, sua cadeira preferida, chá preto bem forte e bolo de fubá, uma velha máquina de escrever, muito papel e ... escreveu este livro. ;

- Nunca mais a “Criança que Procura” esteve ao pé do Local Proibido e em nosso meio. Manteve sua revolta e sua zanga por muitos e muitos anos, acabando por nos esquecer. Quando os Maiores me autorizaram um socorro de emergência, eu nem ao menos sabia oque estava fazendo, tal meu desespero. Acho que fui guiado por Mãos maiores que as humanas. Hoje aqui esteve o filho de seu filho, uma criança doce e sem angústia, mas com a mesma inteligência luminosa. Foi igualmente por nós adotada e era tão elevada e amorosa que nos sentimos nós mesmos adotados por ela. Prevejo-lhe um futuro de grande beleza. A outra, a “Minha pobre Criança que procura” debateu-se a vida toda, a procura de ar e de luz, tal qual a semente busca se elevar acima do solo, sofrendo com a opressão do confinamento, a resistência da terra, a compressão das pedras. E no entanto, agora contemplamos o fruto de seus trabalhos e sofrimentos. E vemos a exata beleza da trama da vida se compondo. Os filhos e os filhos dos filhos realizando as nossas boas aspirações se as temos ou infelizmente sofrendo as consequências de pontos que se dezfazem na tapeçaria da vida quando relutamos em cumprir nosso papel e criar a parte que nos cabe. Forte deve ser o tecelão e imensa sua coragem. Porque a Obra é grandiosa e só pode ser elaborada pelos que aceitam resolutamente o seu grande Desafio.

FIQUEM TODOS NA SUAVE PAZ DO INEFÁVEL SER QUE NOS CRIA E NOS GUIA !