Insetologia

Visto de cima, o mundo parece tão simples, distante e até belo.

Lá embaixo, as pessoas, quais pequenos insetos — formiguinhas —, se acercam da mancha vermelha. Minhas mãos tremem, e não tem nada a ver com o vento frio, chibatando-me com lufadas. Subo no parapeito da sacada, mal conseguindo me equilibrar. Menos de dez segundos e estaria tudo acabado.

Juliano e eu, amigos inseparáveis. Apesar de todas as diferenças, nossa amizade havia persistido aos momentos mais complicados, isto até ele conhecer Roberta, o princípio do fim.

Ela entrou de mansinho na vida dele, quando percebemos, já o havia dominado. Em circunstância alguma eu o encontrava sozinho, sempre trazia Roberta a tiracolo, um pirata com seu macaquinho no ombro. Até na sexta-feira de cinema, ritual que mantínhamos religiosamente desde os quinze anos, ela se infiltrou. O comentário estúpido dela, após termos assistido a “O Declínio do Império Americano”, ecoou por semanas em meus ouvidos:

— Que filme chato! Peguei no sono duas vezes.

Ela era a invasora, mas quem estava sobrando era eu. Passei a ligar menos para Juliano, nossos encontros rarearam, vez ou outra, combinávamos de tomar um café, mas nunca, nunca mesmo, ele estava desacompanhado.

O telefone tocou e foi com grande surpresa que ouvi a voz de Roberta:

— O aniversário do Juliano está chegando. Como vocês são amigos de infância, pensei que talvez você pudesse me ajudar a escolher um presente.

Refuguei, alegando estar ocupado demais — uma grande mentira, há dias que não fotografava ninguém, nem um mísero casamento —, mas ela persistiu:

— Por favor! Você é o único amigo do Juliano que conheço, e eu não tenho idéia do que comprar. Terá minha gratidão para sempre.

Eu não precisava da gratidão dela, mas acabei aceitando. Encontramo-nos num shopping, no Centro, ela queria comprar cuecas pra ele, mas eu a ajudei a escolher um livro de Hermann Hesse, que sabia estar na lista de aquisições de Juliano.

Depois das compras, comemos um lanche juntos e um pouco da minha impressão negativa sobre Roberta se desvaneceu. Ela não entendia de Filosofia, não havia lido Nieztsche ou Schopenhauer, nem nunca havia ouvido falar em Bruckner, Kundera ou Eisenstein (aliás, ela achou que eu estava falando de Einstein), mas, do próprio jeito dela, Roberta era muito interessante, divertida, e tinha um sorriso encantador.

Involuntariamente, Roberta acabou se tornando meu elo de volta para Juliano. Todas as noites, ela me ligava e conversávamos sobre ele, Roberta sempre exigindo os pormenores da nossa amizade, de como Juliano era quando criança, de quais eram os motivos para ele ter se tornado engenheiro, ou o que era aquela cicatriz que ele tinha no abdome. Às vezes, eu conseguia responder, outras, eram segredos que Juliano havia ocultado até de mim.

Mas, aos poucos, os temas começaram a mudar; não falávamos mais do meu amigo, mas dos nossos gostos pessoais. Descobri que ela ouvia Elis Regina e, pela primeira vez, encontramos um ponto de convergência. Gravei um CD com canções da “Pimentinha” e nos encontramos. Para minha surpresa, Roberta também havia me trazido um presente, um livro que eu já tinha, mas que me alegrou muito mais do que eu poderia ter imaginado.

Lá pelas tantas, frente a frente numa cafeteria, Roberta comentou:

— Sabe que eu não fui muito com a sua cara, no começo? — ela escondeu o sorriso de constrangimento — Você era muito pedante... Sempre chegando na hora errada, e o Juliano só falava de você. “Mateus pra cá”, “Mateus pra lá”. Isto me incomodava muito. Mas agora eu entendo... Você é uma pessoa muito especial — e a mão de Roberta pousou sobre a minha.

É difícil explicar o que ocorre entre um homem e uma mulher nestas horas. Não me importei que Roberta fosse a namorada do meu melhor amigo, fomos para um motel e transamos duas, três vezes, e depois ficamos abraçados, ela com a cabeça apoiada em meu peito, enrodilhado em seus dedos meus pêlos do tórax. Eu estava feliz, sem vestígio algum de culpa. Só seríamos oprimidos pelo arrependimento na manhã seguinte, quando, ao conduzi-la pra casa, Roberta me disse:

— Isto não poderia ter acontecido. Vamos ficar quietos, fingir que tudo é igual a antes.

Também pensei ser esta a melhor das atitudes, mas, duas noites depois, consumidos pelo desejo, encontramo-nos novamente. Naquele momento, eu já estava apaixonado.

O porteiro anunciou que Juliano estava subindo. Isto me alegrou, há algumas semanas que não o via, porém, ao mesmo tempo, a visita dele me inquietava, nunca fui bom para sustentar mentiras.

Ao abrir a porta pra ele, Juliano me agarrou pelo colarinho e me jogou contra a parede:

— Seu desgraçado! E eu pensando que você era meu amigo?

— Do que você está falando? — vesti uma expressão hipócrita.

— Você e a Roberta — ele se engasgou, choro e ódio — trepando? Me enganando! Eu podia esperar isto de qualquer um, menos de você! — e enfiou o dedo na minha cara — Menos de você!

— Tente entender... — preparei-me para encontrar alguma justificativa, mas Juliano me calou com um murro nas fuças. Revidei, afinal de contas, eu não apanharia sem reação.

Rolamos pelo carpete da sala, Juliano, mais forte, socava minhas costelas; em desvantagem, tasquei-lhe uma mordida na orelha, creio ter até arrancado um pedaço dela. Ele me largou e se levantou, xingando até minha oitava geração. Retomamos o embate.

Nova seção de murros, joelhadas no saco, cotoveladas e cabeçadas. Atravessamos a porta da varanda e tombamos sobre os estilhaços de vidro, feri minhas costas, braços e pernas.

Não tenho certeza de como isto ocorreu, mas juro que não foi de propósito, empurrei Juliano, suas costas de encontro ao parapeito, ele escorregou nos cacos, girou sobre si e se precipitou quinze andares abaixo.

A cena em nada se assemelhou ao que vemos em Hollywood, tudo em câmera lenta, então o mocinho corre e agarra o braço do amigo e, num esforço descomunal, o traz de volta para cima. Nada disto, um empurrão, um grito e a minúscula mancha de sangue na calçada.

Foi naquele instante que elaborei toda uma teoria filosófica. As pessoas pequenininhas que circundavam o cadáver me recordaram um formigueiro. A metáfora era perfeita, insetos, isto é o que somos. Nascemos neste grande formigueiro que é o mundo, crescemos cada um com sua função, com seu destino traçado, percorrendo os mesmos caminhos dia após dia, confortáveis e bitolados. Num dia fatídico, porém, o grande pé do destino esmaga nossa vida pacata, destrói tudo que construímos, tudo aquilo que considerávamos estabelecido, inatingível.

Ao escorregar no vidro e voar varanda abaixo, Juliano levou consigo todos meus projetos, toda a vida à qual dediquei estes meus anos.

Pus um pé sobre o parapeito.

Estudei, trabalhei, fui uma boa pessoa, nunca quis mal a ninguém. Juliano era meu amigo, porra!

Equilibrei-me sobre os dois pés. Tremia.

E Roberta nem era tão importante para mim. Eu gostava dela, da companhia, do sexo, mas amigo é amigo.

As formiguinhas cercavam o corpo de Juliano, em breve, chegaria ambulância, polícia, jornalistas. Me prenderiam, minha cara estampada da primeira página dos jornais, “Mata amigo por causa de amante” em maiúsculas. E tudo estaria fodido.

Saltar seria tão fácil, alguns segundos e fim, sobem os letreiros na sala de cinema; uma formiguinha a menos no mundo. Que diferença eu faria nesta porcaria de planeta? Nenhuma; alguns parentes chorariam no enterro e, pronto, logo se esqueceriam.

Respirei profundamente: “pular, ou não pular?”, Shakespeare se indagaria em minha posição.

“Que o pezão do acaso comande o meu destino!”, a formiguinha pensou, equilíbrio instável, vento gelado no rosto, expressão de pavor.