Duas cartas

(série : histórias que me contaram ! )

     Foram duas as cartas que mudaram a vida dela, disse minha amiga. Vínhamos de Olinda, nós duas sozinhas, quando ela me contou essa história. Já era noite e havia estrelas no céu e estrelas que se moviam em nossa direção, na pista contrária.

     Não me lembro mais o nome da amiga de minha amiga. Mas sua história é inesquecível. Talvez nem fosse tão inesquecível se não fosse pelas duas cartas. Seria uma história triste, mas comum como são a maioria das histórias tristes. E se a história foi triste nem posso dizer que sua vida foi triste. Teve bons momentos, durante muito tempo foi feliz. Amou e foi amada o que é mais que muita gente pode desejar. Não sei se escreveu livros nem se plantou árvores. Mas teve filhos. Teve uma vida. Poderia ter morrido feliz se fosse apenas a  primeira carta. Mas não morreu, por causa da segunda.

     Da sua primeira infância, não tinha muitas lembranças. Mas como era amada, deve ter sido bem feliz. Foi amada pela mãe, foi amada pela madrinha que um dia ocupou o lugar da mãe. Mas a madrinha recebeu uma missão da mãe. Ser portadora de uma carta ao pai da criança, que não sabia que era o pai da criança. Não se sabe se o pai gostou da notícia ou não. O que se sabe é que ele aceitou a paternidade com todas as suas responsabilidades.  E quando a madrinha também se foi o pai buscou a criança para sua companhia. Mas o pai era casado e aí entra na história a madrasta má. Que a menina nem desconfiava que fosse a madrasta. Pensava ser a mãe, pois tinham lhe esquecido de contar sobre a mãe que a carregara na barriga. E sobre a madrinha que a embalara ainda bem pequenina. A menina não desconfiava que a madrasta fosse madrasta, mas sabia que era má. E não podia compreender porque a mãe era má com ela. Minha amiga não entrou nesses detalhes, mas eu os imagino. Uma adolescente perdida. As brigas se sucediam. Não sei se havia violência, mas sei que havia muita dor. Em um dia de dor maior, a menina ouviu a serviçal da casa resmungar: se fosse filha dela de verdade não faria isso. A menina ouviu, estupefata. A serviçal tentou engolir as palavras, mas já era tarde. Palavras acompanhadas de som que saem da boca, não voltam mais. E se entram em ouvidos curiosos, é preciso repeti-las. Não houve desculpas que acalmassem a menina. Sem outro jeito a serviçal achou que era hora de contar tudo mesmo corrrendo o risco de perder o emprego. Dizer tudo que ela sabia de ouvir dizer. E de ler a carta escondida entre as roupas do pai, que era ela quem cuidava. E que lera porque não podia resistir ao segredo que uma carta escondida entre as roupas trazia. A menina não se conformou só com as palavras da serviçal. Também quis ler a carta. Por incrível que pareça foi um peso que tirou do coração. É compreensível que uma madrasta não goste da enteada, mas que uma mãe não goste de sua filha é muito doloroso, pensava ela. Mas a mãe a amava. E o pai também, de seu jeito omisso, mas a amava. Prefiro acreditar que foi ela que quis ir embora dali, saindo de perto da madrasta má. Mas pode ter sido a madrasta que exigiu que ela fosse embora. Seja como for o pai fez a vontade das duas: as separou. A amiga de minha amiga foi para o Colégio interno e ali ficou até se formar com apenas algumas visitas ocasionais em datas especiais. Quando se formou o pai orgulhoso estava presente. Deu-lhe um abraço emocionado, um anel para por no dedo e ajudou-a a arrumar um emprego. Ela foi viver a sua vida e vivendo sua vida se apaixonou. Casou-se com o Zezinho, ou seja, lá qual for o seu nome e novamente com a ajuda do pai que há muito enricara, montaram um negócio próprio. E a vida foi seguindo, os filhos nascendo, o negócio crescendo e a família enricando. O marido fazia todas as vontades dela e a vida era um luxo. Eram consumistas, todos eles. Para si e para os outros. Um dia ela desapareceu, todos desapareceram, disse minha amiga. Ela não sabia por quê. Telefonava para um telefone mudo, procurou-a em uma casa ocupada por outros, o negócio da família evaporara. Só algum tempo depois foi procurada por ela que lhe contou o segredo. Mas não estava triste, continuava apaixonada pelo Zezinho e a família continuava junta. Só tinham ficado pobres, tão pobres que tiveram que fugir na calada da noite. E quando a amiga disse que ter ficado pobre não é motivo para fugir ela completou: Mas quando a polícia está atrás de você, sim. A vida de gastança tinha provocado falcatruas. Fugiram praticamente com a roupa do corpo. Foram para outro estado, uma cidade do interior. O pai novamente os ajudara, montaram um negócio, sei lá qual foi, talvez uma vendinha, um botequim. Mas tudo continuava bem e ela se habituou aquela vida de pobreza e trabalho como se habituara a outras situações . Ela tinha o amor de sua vida junto dela e quando falava dele seus olhos brilhavam.

     Algum tempo se passou, os contatos passaram a ser por telefone e só esporádicos. Minha amiga soube que Zezinho estava doente e depois que morrera. Sabendo do grande amor que os unia  e da tristeza que a amiga estaria e sabendo também que a amiga não tinha condições de viajar convidou-a para vir a sua casa, pagando-lhe todas as despesas. Mais que rápido ela veio. Os olhos já não tinham brilho, os lábios não sorriam e mesmo a conversa entre as duas não fluía. Até que um dia a amiga falou: as coisas mais importantes de minha vida foram duas cartas escondidas entre as roupas de um homem. E então contou a história da segunda carta que da primeira minha amiga já sabia.

     Era boa nossa vida lá. Havia pobreza, mas também havia amor. Trabalhávamos juntos, nós e nossos filhos, eles, depois das aulas. Nunca antes estivemos tão unidos como família. A cidade nos aceitou como se sempre tivéssemos vivido lá. Zezinho foi convidado até para treinar o time de futebol do lugar e ganhamos o campeonato do interior. Foi aí que o time foi convidado para jogar na capital. Foi até televisionado e foi aí que tudo acabou. Um dia o Presidente do Clube chegou lhe trazendo uma carta, que tinha sido enviada aos cuidados do clube. Eu estava atendendo alguns fregueses e meu marido entrou para casa e foi ler. Logo voltou meio esquisito. Quando perguntei o que tinha acontecido gaguejou uma história qualquer sobre ter sido convidado para dirigir um time maior e logo foi atender fregueses. Não houve jeito de arrancar mais nada dele nem de conseguir ler a carta. Não vou aceitar mesmo, ele dizia. Desde então um bolo se formou em minha garganta. Um bolo que aumentou poucos dias depois quando descobri que ele estava com câncer. A luta para salvá-lo estava sendo inglória e eu estava desesperada. Um dia, sei lá por que razão, talvez a necessidade de me movimentar, fazer alguma coisa, resolvi mexer no armário de roupas dele. Tirei para fora o velho terno com que nos casáramos e ele nunca mais usara e resolvi levar para tomar sol. Nosso filho ia precisar de um terno no final do ano e achei que com algumas reformas aquele estaria bom. Zezinho dormia calmamente e eu saí do quarto para pendurar o terno no varal. Sei lá por que resolvi revirar os bolsos do avesso e lá estava ela. A carta. Dirigida ao Presidente do time. Com letra de mulher. E ali ela contava tudo.  Que o tinha visto pela televisão. Compreendera que era um aviso: a filha deles já estava mocinha e queria muito conhecê-lo. Junto, um retrato das duas. Uma eu reconheci: tinha sido minha amiga, secretária dele por anos, até que um dia pedira demissão, sem mais nem menos. Não sei como voltei para o quarto. Ele já estava acordado. Quando lhe mostrei a carta ele ficou transtornado. Aí, eu  piquei a carta em pedacinhos, enquanto ele murmurava o retrato não, o endereçonão, posso explicar. Mas eu não quis explicação. Avancei sobre ele com uma correia  surrei-o até me prostrar no chão. Ele não disse um ai. Não contou para ninguém. Nunca mais falei com ele, mas continuei a cuidar como se nada tivesse acontecido. Em menos de um mês ele morreu.

E ela, perguntei, o que aconteceu com ela? Minha amiga disse: Pouco depois de um mês ela morreu.