Angola - Jardim dos Anjos - A breve vida de Tomás Kaputo

Naquela tarde de Novembro o céu mostrava que era a altura de deixar cair a chuva.

A terra iría ficar inundada para soltar o seu perfume africano.

Tomás sabia que seria o seu último entardecer.

Ao chegar a casa, a velha mãe olhou para ele e soube o mesmo.

Chamou-o com os olhos e assentiu.

-Nada temas, meu filho, andas a adiar há tempo demais.

Tomás abriu a porta do quarto e começou a olhar para as velhas fotografias penduradas junto ao espelho, perto do seu crucifixo de sempre.

Entre dentes murmurou:

-Todos mortos, camaradas. Todos mortos.

Tomás deitou-se.

Uma semana antes, bem cedo, Tomás abriu as altas e pesadas portas do Museu da Guerra, na fortaleza de Luanda.

Esse era o seu ofício. Era zelador da fortaleza.

Quase ninguém conhecia o espólio dentro das muralhas.

Por vezes chegavam alguns jovens e Tomás quase não tinha tempo para os chamar.

Corriam divertidos para a muralha oeste, fronteira do atlântico, e tiravam fotos à Marginal, riam das poses que faziam.

Um ou outro entrava no museu e lá ía Tomás, expedito e interessado, mostrar as fotografias de Estado.

Ali se via o camarada Presidente Agostinho Neto com Che Guevara, Lúcio Lara, Kroutchev, Fidel, Samora e outros tantos, até o Engº José Eduardo dos Santos, bem jovem.

Tomás encontrava sempre forma de dizer:

-Está a ver este aqui atrás? Sou eu! Eu, nesse tempo, era segurança do camarada presidente... Mas depois ele morreu e puseram-me aqui...

Apontando para uma das fotos dizia:

-Neste dia eu tive de conduzir o carro dele...

Nunca ninguém se mostrou interessado por isso, nem por nada que lhe dissesse respeito.

Tomás, então, tirava o seu melhor truque e dizia:

-Sabem, aqui na porta ao lado, mesmo junto de nós, temos a primeira capela ao Sul do Equador. Veio cá um Bispo benzê-la e nem os holandeses a partiram. Sabiam que eles não eram católicos...?

Ninguém sabia.

Naquela semana, Tomás, olhando o Atlântico, viu caravelas no horizonte.

Correu cambaleando para a capela e orou:

-Senhor, Senhor Meu Deus, não me deixes ficar louco.

Voltou, hesitante.

E lá estavam elas, as caravelas.

Vinham pelo Norte.

Agora sim! Estava louco!

Correu.

Refugiou-se na sala das fotografias famosas.

Fechou a porta atrás de si.

O silêncio ajudou a repor a calma.

Mas ele sabia que era tarde, porque em todas as fotos ele era agora a visita importante que o camarada presidente abraçava.

Numas fotos com fato maoísta, outras com uniforme de general...

Caíu lentamente, desesperado, junto a uma vitrine de um uniforme de piloto e na legenda da peça lia-se:

-“Tomás Kaputo, oficial do regime racista sul-africano, capturado em cabinda pelas FAPLA.”

Durante essa semana Tomás encontrou-se nos azulejos quinhentistas, nos brazões e estátuas de estadistas portugueses, nas últimas litografias do Rei Ekuikui, do Rei Katyavala, da Rainha N’Zinga.

Visitou as catacumbas e viu as marcas escritas por suas mãos nas paredes das celas.

Recordou as invasões holandesas, as guerras dos Dembos, esteve exilado no Cairo, em Kinshasa, em Paris. Foi médico formado em Coimbra e até viajou por toda a América do Sul de mota.

Disse frases fortes que ninguém percebia que estavam erradas.

No final daquela semana, Tomás voltou para casa para morrer.

Já tinha vivido muito e, apesar disso, sentia o grande vazio de saber ter vivido somente a vida dos outros.

Tomás Kaputo faleceu durante o sono na noite de 11 de Novembro de 2008*

*Dia da Independência de Angola 1975