A bicicleta sedutora

Sexta-feira, fim do dia. Seu João Pedro desceu da construção, foi até o barracão, trocou de roupa, pegou a mochila e tomou o rumo de casa.

Ia com os pensamentos longe, estava cansado e só pensava em chegar em casa, tomar um banho e poder sentar sossegado. A semana tinha sido dura, muito trabalho, calor e cansaço.

De repente, lá estava ela. Linda! Seu João Pedro jurava que ela olhava pra ele e piscava. Atravessou a rua e foi chegando perto. Era mesmo muito linda! Cor-de-rosa, cestinha na frente, banco em lilás, espelho... linda, linda! Lembrou da filha que estava sempre pedindo uma bicicleta. Olhou o preço, as condições de pagamento e concluiu que à vista o preço ficava em conta, mas a prazo o juro era um exagero.

Ficou encantado olhando para a bicicleta e imaginando a alegria da filha se a ganhasse. Pensou, fez contas... À vista não podia comprar e a prazo ficava muito cara. E via, novamente, o rosto da filha. O sorriso faltando um dentinho na frente, o cabelo cacheado, olhos muito vivos. Era a caçula, o xodó da casa, muito beijoqueira e sempre cheia de perguntas.

Não teve dúvidas. Olhou para todos os lados, certificou-se de que os vendedores estavam ocupados, esquecidos até daqueles brinquedos na frente da loja, e num relance saiu andando com a bicicleta. Na verdade apoiou-se nela, pois seus joelhos tremiam e as pernas estavam bambas.

Somente três quadras adiante parou um pouco. Suava mais do que havia suado a semana toda fazendo massa e levantando parede. Mas agora não tinha remédio, estava feito.

Teve um pouco de dificuldade para ajeitar a bicicleta no ônibus, porém a imagem do rosto da filha fazia com que qualquer sacrifício valesse a pena. E percorreu o trajeto para casa cheio de expectativas.

Ao chegar, foi chamando do portão:

- Nina, Nina... Vem cá.

Carolina, veio correndo e deu um grito quando viu a bicicleta.

- É pra mim?

- É, sim.

A esposa observou com um olhar intrigado, mas não disse nada, foi para dentro tirar o pão do forno. Seu João Pedro brincou um pouco com Carolina, ajudou-a a dar as primeiras voltas e depois foi tomar um banho.

Quando passou pela cozinha, a esposa perguntou:

- Ô, João, de onde tirou dinheiro para a bicicleta?

Ele respirou e disse:

- Um colega quer vender. Trouxe porque ele insistiu, depois a gente vê.

Depois do banho, limpou o resto do almoço, comeu pão fresquinho com manteiga, tomou café e sentou na frente da casa para cuidar Carolina que estava andando de bicicleta na calçada.

Lutava para não pensar no ato que cometera há poucas horas, mas pensava. Lembrou do pai, seu Antônio, que sempre dizia “Meu filho, um homem pode perder tudo na vida, menos a vergonha na cara”. Essa lembrança era como um coice no peito. O pai morreria de desgosto se soubesse.

Mais tarde, recolheu a bicicleta e levou Carolina para dentro. Esperou que escovasse os dentes e deitasse para que ele pudesse apagar a luz. Ao colocar a cabeça no travesseiro, a menina disse:

- Pai, a minha bici é a mais bonita da rua toda.

Ele deu um sorriso meio forçado e apagou a luz. Foi para o quarto, deitou-se, mas o sono não vinha. Quando o cansaço físico venceu a mente, dormiu.

O sábado foi esplêndido, cheio de sol, muita algazarra na rua, Nina andando pra lá e pra cá. Seu João Pedro e o filho mais velho aproveitaram para cortar a grama e pintar o muro. À tardinha, o rapaz foi buscar a namorada para ir ao cinema. Carolina fez beiço:

- Todo mundo vai passear, menos eu.

Seu João Pedro e dona Cândida caíram na risada.

- Tudo bem, amanhã a gente leva você ao parque.

Os olhinhos pretos brilharam.

- De verdade, pai?

- Claro que sim. Mas não pode reclamar de andar, é muito ruim levar a bicicleta no ônibus.

- Não reclamo, não. Vou andando nela.

No Domingo, depois do almoço, lá foram eles rumo ao parque. Até levaram lanche. Carolina andou de bicicleta a tarde toda. Na volta, quase em casa, inventou de fazer acrobacias, caiu, ralou os joelhos e esfolou o nariz. O pai viu nisso a chance que esperava.

- Ai, ai!... Amanhã vou levar essa bicicleta de volta, ou você acaba se matando, Carolina.

- Não, pai, vou andar mais devagar.

- Não sei, Carolina...

Depois dos curativos e antes de deixar que apagassem a luz, Carolina disse ao pai:

- Pai, não leva a minha bicicleta, tá?

O pai não respondeu. No outro dia, levantou antes da hora, a esposa nem havia acordado. Entrou no quarto da filha, olhou-a por algum tempo. Foi à cozinha pegou só uma bolachas, duas bananas e uma laranja. Saiu empurrando a bicicleta. Refez todo o caminho percorrido na Sexta, à tardinha. Parou na frente da loja, ajeitou a bicicleta e foi embora sem olhar para trás. Não queria que a bicicleta o seduzisse novamente.