Prá falá di amô num perciso escrevinhá direito...

Prá falá di amô num perciso escrevinhá direito...

Sabe aquela noite de bobeira em que o cara fica sentado na cama, notebook no colo, um olho no Word e o outro na tela da TV vendo o Jô Soares entrevistando um convidado. A personalidade da noite era um poeta de cordel e cantador de embolada, natural de João Pessoa, Paraíba.

Pois é! Assim estava o Praxedes, se distraindo com o “Gordo” enquanto esperava o Nirvana da inspiração. De vez em quando o Praxedes olhava para a tela em branco do editor de texto, coçava o queixo, a cabeça, e nada da inspiração chegar. O cara gostava de escrever crônicas, contos e causos. Gostava de ler poesias, literaturas de cordel, contos, crônicas, romances, enfim, tudo o que passava pela frente dele. Diante do eclético gosto pela leitura do Praxedes, destacavam-se poesias e literaturas de cordel, mas o sujeito não tinha pendor para uma coisa e nem outra. Subitamente ele deu-se conta de que ali, na sua frente, o mote, o tema estava escancarado na sua frente, dançando no seu nariz. De repente o “sub” do cara sussurrou para ele:

“Vai ao Google e pesquisa literatura de cordel, quem sabe você não pesca alguma preciosidade, sai desse marasmo e faz alguma coisa de útil”. (Para quem não sabe o “sub” é o subconsciente, o “id”, essa entidade que alguns poucos têm o dom de dialogar com ele, às vezes até com alguma cordialidade – Freud explica melhor).

Dito e feito, atendendo à sugestão do “sub”, o Praxedes efetuou a pesquisa, encontrou dezenas de ”sítios”, alguns interessantes, outros nem tanto, quando quase ao acaso encontrou num dos endereços, entre aspas, o título “AI! SE SÊSSE!...”.

O título composto de apenas uma consoante e três vogais diferentes remetia a uma infinidade de sentidos e intenções. A frase evocava expectativa, desejo, frustração, determinação e até mesmo fatalismo, aceitação. Resolveu clicar. Após o clique, abriu-se diante de seus olhos uma poesia regionalista, ao mesmo tempo densa, crua, quase agressiva, e terna, macia e singela até.

Maravilhado, o Praxedes deleitou-se lendo uma, duas, três, quatro vezes. A cada releitura ele sentia uma emoção diferente. Sôfrego, acessou o Google mais uma vez e digitou o nome do autor buscando dados biográficos do gênio que tinha escrito aquela simplória preciosidade. Novamente, depois de abrir vários “sítios” e selecionar as escassas informações sobre o poeta, conseguiu saber o seguinte:

Que o autor chamava-se Severino de Andrade Silva, nascido em Itabaiana, PB, em 29/03/1904 e que tinha falecido no Rio de Janeiro - RJ, em 12/02/1965, e que em seus trabalhos utilizava o pseudônimo de “Zé da Luz”. Descobriu também que as obras do poeta eram ditas nas feiras, nas porteiras, nas beiradas das estradas e nas ruas. Em suma, pairava na boca do povo de quem tomou emprestada a voz.

Também ficou sabendo que o poema que chamou a sua atenção teria nascido de um desafio surgido durante uma discussão entre o poeta do povo e um pseudo-erudito que teria afirmado que poesias que enfocassem o amor, somente teriam sentido se escritos com gramática acadêmica, o aclamado português erudito, falado e escrito nos saraus dos salões das famílias bem nascidas. Zé da Luz teria afirmado que o amor, a paixão, o bem querer, o suspiro gostoso do “Ai! Meu dengo!”, necessitava apenas do sentimento da alma, do palpitar acelerado do coração apaixonado pelo brilho nos olhos da cabocla querida sob o luar prateado do sertão. O oponente de Zé da Luz levantou duvidas de que a linguagem cabocla jamais seria capaz de gerar uma poesia que falasse do amor, dos seus encantos e de seus desafios.

Injuriado com a ignorância do citadino, que nem sequer havia ouvido falar de “Patativa do Assaré”, o poeta Zé da Luz pediu um lápis, um pedaço de papel de embrulho do dono da quitanda onde bebiam um “mata bicho” para passar o tempo e prosear sobre a alma do povo, assunto que o absorvia por completo, e, sorrindo para o obtuso e insolente cosmopolita, escreveu:

“ AI! SE SÊSSE!...

Se um dia nós se gostasse;

Se um dia nós se queresse;

Se nós dois se impariásse,

Se juntinho nós dois vivesse!

Se juntinho nós dois morasse

Se juntinho nós dois drumisse;

Se juntinho nós dois morresse!

Se pro céu nós assubisse?

Mas porém, se acontecesse

qui São Pêdo não abrisse

as portas do céu e fosse,

te dizê quarqué toulíce?

E se eu me arriminasse

e tu cum insistisse,

prá qui eu me arrezorvesse

e a minha faca puxasse,

e o buxo do céu furasse?...

Tarvez qui nós dois ficasse

tarvez qui nós dois caísse

e o céu furado arriasse

e as virge tôdas fugisse!!! ”

Depois de escrever o poema sem nem ao menos reler mais de uma vez, quem sabe para arrumar qualquer verso que não estivesse dentro da métrica, o poeta do povo, de alcunha ou apelido (o epíteto ficava ao gosto do freguês) Zé da Luz, entregou para o homem da cidade o papel simples de embrulhar carne seca na quitanda e pediu para ele ler, em voz alta, o que o povo era capaz de criar na sua simplicidade cotidiana, afirmando para o visitante urbano:

“Prá falá di amô num perciso escrevinhá direito...”