PARABÉNS PRA VOCÊ

A festa para mim começou quando no meio da semana dona Biu mudou lá para casa a fim de ajudar mamãe nos preparativos. O sábado começou sem grandes alterações. Nada indicava que a festa propriamente dita seria no dia seguinte, depois de um ano de ansiedade, preparativos, sonhos e esperanças. Tomei o café da manhã como sempre. Ovo frito, pão, papa de aveia e leite pingado que dona Biu preparou para mim cantando com voz aflautada. Era muito divertido quando dona Biu ia lá para casa nesses tempos de muito trabalho para o brilhantismo do evento. Genésio, o meu peru que engordara nos últimos meses, fazendo roda no quintal cada vez que eu assoviava para ele, estava com sua sentença de morte decretada para aquele dia. Despejaram de goela abaixo, um vidro de Biotônico Fontoura, cheiro de aguardente, para quebrar a força de Genésio, mas não me deixaram ver matá-lo. Toda manhã foi consumida nos preparativos de depenar, limpar, temperar e dar todo trato que um peru de festa merece. Divertido mesmo foi lavar a casa. Água para todo lado, móveis fora do lugar, gritos de menino largue isso, menino largue aquilo, menino saia de perto desse fogão que o sabão lhe queima. Numa lata de biscoito com água, foram reunidos todos os pedaços velhos de sabão e de sabonete dos últimos tempos e colocados para ferver. Parecia leite, a espuma grossa querendo passar por cima da borda da lata. Vassouras, esfregão, panos de chão, vassoura de vasculhar, espanador eram os instrumentos dessa sinfonia de limpeza a quatro mãos, mamãe e dona Biu se revezavam com a mangueira do jardim, por dentro de casa, despejando água em todos os cantos. Finalmente hora do almoço. Ninguém havia se lembrado de botar nada para cozinhar. Dona Biu preparou farofa branca com cebola, manteiga, coentro e charque assada na brasa. Mamãe fez suco de laranja direto nos copos que era para não sujar a jarra. Foi muito bom comer os bolinhos que dona Biu fazia e me entregava com um pedacinho de carne escondido na farinha e ainda tinha torresmo que sobrou quando a banha foi derretida. Naquele tempo, banha de porco não fazia mal a ninguém e servia para todas as frituras. Dona Biu era uma senhora gorda, de cabelos sempre presos com um lenço, roupa folgada com as manchas de quem enxuga as mãos na saia. Riso fácil, sempre alegre e disposta a defender as crianças com alguma justificativa sem muita razão para evitar maus momentos para os pequenos, eternos responsáveis por tudo de errado que acontecia. Pouco tempo depois do almoço, parou um carro de aluguel no portão. Eram vó Candinha e tia Lú que vinham para ajudar na confecção dos bolos, beijos de coco, doces e salgadinhos de queijo que iriam abrilhantar a festa. Tia Lú, solteirona magra e desesperançada da vida, que se resignara a sua solteironice depois que o noivo saiu e nunca mais voltou. Tinha sempre a cara triste embora nunca reclamasse da sorte. Sua vida se resumia em costurar para fora, para completar a pensão deixada pelo pai ferroviário, que falecera depois do acidente com a manobra de um trem da antiga Great Western e preparar festinhas para os sobrinhos. Vó Candinha era em tudo diferente da filha, expansiva, risonha, brincalhona, gostava de colocar apelidos em todos os conhecidos e falava pelos cotovelos. Ajudei a carregar os muitos pacotes lá para dentro. Tinha até uma sacola com os vestidos novos para a festa. Trocaram de roupa e pegaram logo no serviço. Ovos sendo batidos, farinha, manteiga, banha para as empadinhas, formas sendo untadas, recheios, descaroçador de azeitonas foram a tônica até a que a tarde se morreu suavemente ao som da voz de dona Biu que passava roupa cantando versos de Catulo...

- “Tu podes bem, gozar o dom da formosura,

Que o tempo um dia há de implacável trucidar,

Tu podes bem viver ufana da ventura,

Que a natureza cegamente quis te dar...”

Desde que chegaram, conversaram o tempo todo sobre casos ocorridos na família e eu com as butucas de olho, acompanhando tudo, sentado ao lado da mesa, ganhava de vez em quando, como animal adestrado, um pouquinho de algo para mastigar. A festa seria no domingo. Sábado é dia de feira, dia de arrumar a casa e as mães de família dos anos quarenta e cinqüenta jamais, por hipótese alguma deixariam suas obrigações de donas de casa para comparecer a uma festa de aniversário, por mais benquisto que fosse o aniversariante.

Deram-me um banho e vestiram o pijama novo que tia Lú fez. Fiquei na rede estendida no terraço esperando o meu pai, mas já havia dormido quando ele chegou. Acordei várias vezes. Alem da excitação da véspera da festa, havia o ruído estranho de pessoas acordadas a noite toda e o movimento constante dos preparativos por dentro da casa. Madrugadinha acordei com vó Candinha roncando, deitada na minha cama, dentro de uma poça enorme de mijo. Apesar de ter acordado várias vezes e de ter ido fazer xixi, ainda não foi dessa vez que deixei a noite passar em branco. Levantei, procurando não fazer ruído e fui para a sala. As portas estavam fechadas e uma sinfonia de roncos, tosses e ressonados enchia a casa toda. Sobre a mesa estavam o bolo confeitado e Genésio assado, enfeitado com papel alumínio nas pernas, dourado e sobressaindo de uma travessa de prata. Fiquei sentado ao lado da mesa observando o bolo confeitado verde com risquinhos brancos e muitas bolinhas prateadas. Era trabalho de tia Lú. Tive vontade de comer uma bolinha daquelas, mas se tirasse... Dona Biu foi a primeira a levantar, atiçou o fogo, colocou a chaleira, trocou minha roupa molhada e fomos à esquina buscar o leite na vacaria de seu Nestor. O padeiro havia deixado o pão na sacola de pano pendurada no armador de rede do terraço. Depois do café passado e requentado várias vezes para cada um que levantava, vó Candinha deu-me um banho “prá tirar a catinga do mijo” e eu tive que ficar brincando no terraço. Estava proibido de entrar na sala de jantar ou na cozinha, onde só tinha coisa quente. O almoço foi feijoada. Adoro feijoada de panela de barro. Adoro pé de porco com todos aqueles ossinhos e os pedaços de paio. Pedi a dona Biu que fizesse bolinho de feijão.

- Peraí meu filho. Deixe-me só terminar de dar o ponto nesse doce de coco. Deixe o prato aí na mesa.

- Dona Biu esse menino sabe comer só. Não vá largar o seu serviço por causa de dengo.

- Ôxe mulher, o bichinho! Hoje é aniversário dele, né meu filho? ‘spere só um pouquinho, viu? Dona Lú, olhe esse doce aqui que eu vou dar o almoço dele. Não precisa mexer mais não. É só afastar um pouco dos lados. Quando aparecer o fundo da panela pode tirar. Chegue meu filho, vamos almoçar. Deixe-me pegar um pesinho só para você...

Logo depois que almocei, meus primos e tios chegaram. Como sempre acontece nessas ocasiões, a mesa para o almoço não foi colocada. Cada um fazia seu prato e ia sentar onde pudesse. Ainda havia muita coisa a ser feita. Eu não sabia o que era, mas era o que todos diziam. Fomos brincar no jardim e minha prima Lucinda furou o dedo nos espinhos da roseira Palmeiron, xodó de minha mãe. Foi um deus nos acuda. Colocaram elixir sanativo que doeu bem mais que a picada e enrolaram com gase. Perto de escurecer, deram-me banho e vestiram-me a roupa nova de linho bege, meias dobradas no tornozelo, sapatos marrom de bico quadrado. O cabelo cortado rente na sexta-feira, nem precisou de pente, a toalha mesmo fez o serviço. Botaram-me o cordão de ouro com a medalhinha do sagrado coração, presente de minha avó e o perfume de meu pai. Afinal era perfume de homem. Cantaram parabéns pra você e eu apaguei as seis velinhas chorando de emoção.