A “Barbie aleijada”.

Hoje, dia seguinte após o Natal, “Dasdô” vai sorridente e feliz, cheia de coragem saltitando pela rua...

Segue contente atrás da mãe com sua nova chinelinha amarela “Havaina” que ganhara de Natal. Vai relembrando a dura conversa que teve com ela há uma semana atrás.

Recordou-se estar há uma semana criando coragem de falar-lhe sobre o pedido, mas na hora se acovardava ante a navalha fria e dura de seu olhar.
_____O que tu qué “Dasdô”??? ____Que fica me arrodiano com essa cara de pêxe-morto! ____Fala logo guria! ____Disimbuxa!!!
____Né nada não mãe! ____Né nada não!!! ____É impressão tua... respondeu ela acovardada.
E “Dasdô” afastou-se preocupada torcendo as mãozinhas porque o dia de diarista no apartamento ia chegar e não sabia o que fazer. Como pediria permissão a mãe para falar com a patroa, mãe da “Enne”?
Tanto fez, tanto fez, que na última segunda-feira quando estavam a caminho, ela falou de vez.

Tremia toda ao lembrar-se da sua reação, das palavras duras rosnadas entre-dentes em resposta.

___Cala a boca “Dasdô”! ____Num vai pidi nada pra muiê não! ____Já chega que come lá, brinca lá, fica lá e ainda qué pidi as coisa! ____Vai pidi não! ____E fica quéta, cala essa boca e num choraminga! ____Num tá bão procê sê amiga da Enne? ____Inda qué pidi a buneca dela? ____Toma tento “Dasdô”! ____Olha lá heim??? ____Cê vai apanhá lá em casa si pidí a “Barbie Alejada” pra ela!

Mas agora, além da chinelinha nova, “Dasdô” ganhara do Papai Noel coragem, muita coragem. Coragem sem limites para desobedecer à mãe e pedir a bonequinha aleijada à patroa Dona Ana.
Dizia a si mesma com entusiamo que ao entrar no apartamento, não tinha conversa. Iria pedi-la, doesse a quem doesse. Nem que apanhasse, fosse espancada ou “picada” de cinta pela mãe.
Estava cheia de coragem e confiança, presentes do Papai Noel...

Seu nome era Dasdores. A “Dasdô,” para todos de casa e de quem a conhecia.
Assim a chamavam também na rua, na escola, na farmácia...
Tinha onze anos e morava na grande cidade de São Paulo, numa floresta de casebres cor de tijolos e cimento da Vila Alegre, que de tal só tinha o nome.
Sua progenitora, dona Algemira, era uma mulher parda e gorda, sempre acompanhada onde fosse por dois filhos atarracados à sua saia e a Dasdô, que a seguia feito sombra pelas ruas do bairro.
Dona Algemira era diarista e não escolhia serviços.
O marido a abandonara há dois anos. Uns diziam ele ter sido morto por políciais, outros que tinham “sumido com ele”,  queima de arquivo.
Mas ela, a Algemira, sabia que não era bem assim a história. Ele tinha é ido embora para qualquer canto do mundo com a Santa, irmã de uma conhecida deles.

Neste dia iam ao apartamento da diária, não muito longe da Vila Alegre, após deixarem seus irmãos numa creche.
Era onde Dasdô mais gostava de ir.pois até já tinha amizade com a filha da dona “Enne”, que era um pouquinho mais velha que ela.

O motivo da discussão fora a “Barbie Aleijada”, uma boneca sem metade de uma das pernas, arrancada que fora pelos dentes do cachorrinho poodle da menina Enne .

“Dasdô” amava essa boneca. Contava os dias nos dedos, que faltavam para a mãe ir lá trabalhar, o que acontecia invariavelmente uma vez por semana.
Quando lá chegava, seu coraçãozinho já batia forte, pois ia ver sua amiguinha de brinquedo, a “Barbie Aleijada”.
Amava essa bonequinha. Amava não, tinha paixão, veneração por ela, tanto é que entre tantas outras, somente com ela brincava.
Nunca tivera ou ousara brincar com outra.
A “Enne” e suas amigas do prédio nem olhavam para aquela boneca. Pegavam-na como se não existisse e prontamente a jogavam de lado, como se fosse nada. E a bonequinha jazia inerte, esparramada no chão como se fosse morta, desbotada, cabelos emaranhados por dezenas de antigas “penteadas”, vez que não mais brincavam com ela por estar com a perna quebrada.
Apenas “Dasdô” não a esquecia.
Nos outros dias, ela ficava num vai e vem constante ignorada, desde quando os brinquedos eram despejados até que, horas depois, eram guardados.
Na verdade a “aleijadinha”, como a chamavam, atrapalhava a “Enne” que a odiava, pois tinha que também guardá-la quando ajuntava os brinquedos.
Esse desprezo para com a “Barbie Aleijada”, doeu no coração de “Dasdô”, que de pronto afeiçoou-se definitivamente e só com ela brincava.

Na primeira vez que “Dasdô” ficou com a “Barbie Aleijada”, conversou com ela.
____Oi ! ____Sou a “Dasdô”! ____E você, quem é?
____Oi ! ____Sou a “Barbie Aleijada”! _____O cachorrinho comeu minha perna!
Fez-se silêncio.
____É! Murmurou “Dasdô”. _____Estou vendo sua perna com defeito! _____Doeu?
____Doeu sim!. ____Doeu muito! Respondeu-lhe a Barbie..
____Você chorou?
____Chorei! ____Chorei sim! ____Mas ninguém ligou... ____Chorei sozinha a noite toda..
____A noite toda? Perguntou “Dasdô”, pensativa e franzindo a testa...
E ainda dói?
____Não! ____Eu sou uma boneca! ____Na gente não dói tanto como doeria em você!
____Dói mais, porque aleijada como sou ninguém liga pra mim. ____Ninguém mais brinca comigo!
____Eu estou brincando com você! Respondeu “Dasdô”...
____É, estou vendo! ____Vejo nos seus olhos que você até gosta de mim ___Sabe, uma boneca só vive, se alguém a amar... ____Senão ela morre!
____Boneca não morre! Afirmou categoricamente “Dasdô”!. ____E eu gosto de você!

Depois, Dasdô continuou brincando com a “Barbie Aleijada”, neste dia e por muitos e muitos outros. Na verdade, por todos aqueles quando sua mãe ia lá como diarista.

A seguir, um pequeno trecho de uma conversa entre a “Barbie Aleijada” e “Dasdô”,
na penúltima vez que se viram...

____Se eu pedir para você, você me amaria de verdade? Perguntou a bonequinha meio sem jeito
“Dasdô” viu que duas lágrimas brotavam dos olhos da boneca...
____Você está chorando? Sussurrou...
____Estou! ____Sempre a gente chora quando pede amor... ____Quando se quer amor, e não se tem... – e continuou
_____Eu tenho um coração... ____Ninguém sabe! ____Mas eu tenho um coração!
Dizia a “Barbie Aleijada”, chorando baixinho... ____Eu também sou criatura de Deus e estou no mundo que ELE fez!
____É que sou apenas uma bonequinha que não tem pai, que não tem mãe, que não tem irmãos, que não tem família, que não tem ninguém! ____Acho que não tenho nada, nada mesmo! ____Que eu me lembre, não tenho nada! Disse chorando...
Pensou um pouquinho e continuou...
_____Olha “Dasdô”! Uma vez eu ouvi a mãe da “Enne” falando que tem gente que é portadora de necessidades especiais. ___ Eu entendi! ____Eu sei o que é ter necessidades especiais! Eu tenho necessidades especiais! ____Tenho a maior delas, que é falta de amor e a minha esperança de amor é você! ____Eu sei, eu sinto que você pode me amar! ____Me ame “Dasdô”! _____Me ame muito, como nunca amou ninguém!
Então “Dasdô” levantou-se e abraçou a bonequinha com tanta ternura e carinho que ela podia ouvir as batidas do seu coração.

E o amor entre a bonequinha e “Dasdô” cresceu de tal forma, que se apaixonaram uma pela outra.
Na última vez, há uma semana atrás, tiveram um conversa inusitada e surpreendente...
Quando “Dasdô” chegou e pegou-a no colo, ouviu-a dizer...
_____Eu amo você! _____Sonhei todas as noites com você! ____Quero ir morar com você, na sua casa! falou a “Barbie Aleijada”
E grossas lágrimas de boneca escorriam no rostinho da “Barbie Aleijada”.
____Você me ama de verdade? Perguntou “Dasdô” com a voz embargada e os olhos cheios de água também...
____Amo sim! _____Eu amo você porque você me ama! ____Eu amo você demais!
____Eu quero ser sua! _____Para ficar a vida inteira com você! ____Eu sei que você vai me guardar e cuidar de mim!
____É verdade! Respondeu ”Dasdô” ____Nós ficaríamos juntas a vida inteira! ____Mas eu sou tão pobre! ____Eu não tenho dinheiro para lhe comprar!
Então a bonequinha ficou quieta e não falou mais nada.

Neste mesmo dia, “Dasdô” pensou consigo, que se a sua mãe deixasse, ela pediria a “Barbie Aleijada” à patroa. Mas sua mãe era muito brava, não gostava nem que ela brincasse com a boneca, quanto mais pedi-la.


Hoje, dia 26, pensativa lembrou-se daquela bronca terrível que levara de sua mãe, que a proibira de falar com a patroa.
Lembrou-se ainda que quatro dias atrás, chegou no apartamento e foi correndo em busca da “Barbie”.
Minutos após, estava com ela no colo.
Abraçou-a e a beijou muito. Acariciou seus cabelos, fez-lhe carinhos na face e apertou-a demais junto ao seu coraçãozinho.
Após, olhando com amor no rostinho da boneca, repetiu seguidas vezes... ____Eu te amo! ____Eu te amo! ____Eu te amo “Barbie Aleijada”!
E a bonequinha como que se fosse viva, aconchegava-se à menina com o mesmo amor que era aconchegada.
“Dasdô”, então contou-lhe que sua mãe lhe proibira pedi-la à mãe da “Enne”.
Mas consolou-a dizendo que hoje não a pediria, mas assim que tivesse coragem, mesmo que se levasse uma surra em casa, iria pedi-la.
Seria por amor, pois a amava demais, mais que tudo na vida! Parecia que a amava mais até, que seus próprios irmãos.
Para agradá-la, mais a ninou, mais a beijou, mais mostrou-lhe amor, do que fez em qualquer dia do passado, porque a bonequinha queria ir com ela e ela não podia levá-la.
Deu-lhe todo amor e carinho que seu coração de menina podia oferecer à bonequinha
.
Na hora de ir embora, chegou a bonequinha ao rosto para que suas lágrimas se misturassem às da “Barbie”, pois iam ficar distantes sem se ver por quase uma semana, uma semana de saudades...
Era muito tempo para as duas.
E ela dizia... Chora não “Barbie Aleijada”... ____Chora não! ____Não fica triste assim... ____Logo eu volto...
____Dia 26 sua “Dasdô” volta pra brincar com você.
____Sabe, a mãe vai ter que voltar aqui logo após o Natal pra limpar o apartamento...
____Então a gente vai fica junto de novo e vamos brincar muito... E você não sabe da maior, que ainda falta eu lhe dizer...
____No dia 24 que é Véspera de Natal, vou pedir para o Papai Noel uma coisa muito especial... Muito especial e importante mesmo, que você nem imagina o que é...
____Sabe o que é ??? ____Você não sabe né?
____Vou pedir de presente, para ele me dar coragem para eu te pedir para a mãe da Enne...
____E ele vai me dar essa coragem, você vai ver...
____Dia 26, logo que eu chegar aqui, nem vou falar com minha mãe e nem te pegar...
____Vou direto lá falar com ela... Vou direto, sem medo, com toda coragem e ousadia falar com ela.
____Vou entrar e pedir, já de logo! Assim que eu entrar, para não perder a coragem! ____Eu entro e já peço! ____Falo logo o que tenho que falar!

Lembrou-se também que na última vez que a viu, antes de sair, ao guardá-la no cesto de brinquedos, ouvia os soluços de desespero e solidão da bonequinha, além dos seus próprios, pois iam ficar quase uma semana distantes..
Recordou-se que nesta semana contou os dias que faltavam para dia 26. Que todas as noites ao se deitar, conversou baixinho com a bonequinha, mesmo longe dela. Era assim mais ou menos que dizia:
_____Não chora não viu? ____Dia 26 já chega e vou te pedir para patroa! ____Eu sei que ela vai me dar você, eu sei! ____A “Enne” nem liga para você e ela sabe disso!
____Eu sei que ela vai dar você para mim! Ainda mais que foi Natal e ela vai me dar você como presente de Natal...

Hoje é dia 26. Hoje é o grande dia do pedido. É o dia do desafio.
Ela segue confiante com seu plano, com seu pequeno coração batendo forte, um dia após o Natal, em direção ao apartamento, andando ao lado de sua mãe.

Chegaram e “Dasdô”, transbordante da mais absoluta coragem, assim que viu a patroa foi em sua direção e fez o pedido, remetendo a alma na entonação de suas palavras...
_____Dona Ana, dá a “Barbie Aleijada” de presente de Natal pra mim? _____A Enne nem quer mais ela...
____Ô meu amor... ____Que pena____ Respondeu Dona Ana.
____Por que não a pediu antes???!!! ____Nos jogamos a “Barbie Aleijada” no lixo...
____Dia 23 juntamos os brinquedos que prestavam que a “Enne” não brincava mais e os doamos para as crianças pobres...
_____Os imprestáveis como ela, nós jogamos no lixo... Ela já estava quebrada Dasdô, ninguém mais queria ela...

FIM

Athos de Alexandria - 26-12-2008