Sem título.

“Certa vez eu estava a caminhar pela rua, quando ao franzir o cenho, vi um homem pestanejando por migalhas de pão. Ressabido e um tanto confuso, vi que as migalhas corriam dele, e quanto maior era o seu esforço, mais rápido elas se movimentavam.

Curioso, resolvi me aproximar; os meus sapatos, um tanto rústicos, faziam um barulho apertado, que aos poucos me fez ser percebido por “eles”. Um riso singelo se estampou no rosto de meu observador. Agora, passei a ser percebido por aquele que antes eu observava e isso me deixou confuso. Era como se, das migalhas que outrora corriam daquele ser imponente, saísse de dentro de meu ser pedaços inacabados contidos e presos em um corpo repleto de matéria.

Senti vergonha e Medo. Senti-me incapaz.

Logo, resolvi continuar a caminhada e esquecer aquele instante, porém o semblante daquele homem, sua fria e lúcida vontade de degustar as tais migalhas me deixou pensativo. Saber que a metáfora da fome se resumiu em um breve, tempestuoso e enfático olhar que, impiedoso me consome e esmaga por instantes torturantes, consegue fazer de meu ser algo incompleto.

Ouso, em uma breve tentativa, suplicar aos sentidos de meu corpo que me deixem caminhar em paz e que apaguem de meu ser tão horrenda cena. Suplicar talvez confortasse os momentos vividos, mas o questionamento sobre algo incomum entre nós, seres de fé e possuidores de grandeza, me transtorna e irrita a cabeça latente.

Dobro a esquina, chego ao meu destino; esqueço de tudo que vi e coloco em prática o aprendizado adquirido: Amai ao próximo como a ti mesmo e não conceba migalhas aos pobres e oprimidos. Ria de tua fúria, mas não pestaneje ao ser observado, pois tu és a carne semelhante ao próximo e dela serás honrado até o findar de teus dias, mas caso tenha de dividir o pão, não ofereças migalhas, pois elas podem enganar-te, fugir de ti e rir de tuas lamúrias.

Seja humano e honre a tua matéria; compreenda que dela provém o suporte necessário para agüentar as tuas carnes e sobreviver com os olhares estranhos, vindos também de dentro do próprio ser.

Jamais ouse viver sem provar o gosto do amor ao próximo, permita ser o alimento metafórico de muitos, pois de tuas amizades brotarão as mais doces lembranças tidas como eternas para o outro ser, assim como as tuas virtudes que serão promissoras como sementes plantadas em solo fértil".