O Gárgula

Fico imaginando o que teria acontecido se eu tivesse ido ao Gárgula ontem à noite.

Degraus, degraus, degraus. Sempre há degraus. Eu teria me sentado em algum canto mal iluminado próximo a uma janela na penumbra confortável daquele lugar. Uma xícara de chocolate quente com brandy seria uma ótima companhia à mesa junto à caneta esferográfica e o bloco de notas. Pautas, pautas, folhas em branco e pautas. Não escreveria nada. Meus pés tentariam encontrar o ritmo das canções selecionadas para aquela noite. Desistiria ou me cansaria nos primeiros compassos. E tudo voltaria a ser silencioso. Ouviria apenas a sinfonia que toca em minha cabeça: um zunido em presto prestíssimo que nunca tem fim. Olharia para fora de dentro de toda essa melancolia e seria agradável erguer os olhos e ver o relógio iluminado do velho edifício Prisciano Bruneto por detrás da fina camada de chuva que estaria salpicando no vidro da janela entreaberta.

Chove assim há quatro dias. Uma chuva gelada acompanhada de rajadas de vento. Ouço o chiado dos pneus no alfasto ensopado e o vidro das janelas gemendo a cada sopro. Tudo úmido: o corpo, a mente, a alma. Na verdade teria ido ao Gárgula para rever Helena, a garçonete do bar. Rever. Essa palavra é tão confortável quanto o prazer que proporciona. Rever, de trás para frente, é rever. Não há começo ou fim. O infinito no infinitivo.

Sei que ela não me vê. Me conhece pois freqüento o bar há meses mas não me vê como eu gostaria de ser visto por ela. Helena. Linda. Dona de um sorriso ímpar e seus olhos glaucos, radiantes, um oceano onde eu me afogaria, um mar onde nunca aprenderia a nadar. Deus. Estou delirando. Deve ter centenas de milhares de admiradores como eu. Ela nunca saberá o que sinto. Sinto mesmo? Tenho medo. Tenho medo de imaginar qualquer tipo de relacionamento. Amizade, paixão, romance, amor. Essas são palavras e sentimentos que raramente pronunciei ou senti em minha vida. Minha infância não me permitiu isso. Me lembro das surras que levei de meu padrasto. Me lembro de quando ele batia em minha mãe e do dia em que ela o esfaqueou com uma única punhalada na testa. Feroz. Repleta de rancor e ódio foi aquela facada. O alívio estava ali também. Ninguém nunca soube. Ninguém sentiria falta dele em lugar algum. Um velho amigo de meu pai, policial civil, deu um jeito no corpo e em seguida nos mudamos para Curitiba. Tenho sonhos, tenho desejos, tenho sorrisos guardados entre meus dentes. Mas tenho medo e fujo.

Ontem eu poderia ter mudado alguma coisa nisso tudo, não fosse a chuva que cai há quatro dias ter levado meu guarda-chuva num único sopro de vento.

galileugall
Enviado por galileugall em 12/04/2006
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