A Matilha

"... é... sou eu... isso mesmo... a chuva está muito forte e vou... hã?...demorar pra chegar... não estou te ouvindo direito... vou desligar... até mais."

As gotas grossas de chuva castigavam com violência o orelhão de onde liguei para Glória, o som ali dentro era ensurdecedor, amplificado umas vinte vezes, tornando a permanência naquele lugar impossível para meus ouvidos sensíveis. Do outro lado da rua, um velho edifício sustentava uma marquise por onde a água caía em forma de cascata. Aquele aguaceiro parecia interminável; os raios e trovões passeavam pelos céus da cidade, caprichosos; o vento assobiava uma canção sombria. Corri para baixo daquela marquise e fiquei lá esperando que por algum milagre a chuva parasse. Tive medo que o prédio ou a marquise não aguentasse todo aquele peso e desabasse sobre minha cabeça, mas a chuva parou num piscar de olhos. Desconfiado, esperei por alguns minutos sob a marquise gotejante até que vi uma moça sair de uma casa no outro lado da rua, descer correndo a ladeira e virar à esquerda na esquina alagada. Glória já me esperava há quase duas horas e eu já podia sentir minhas orelhas quentes. Encarei então a subida sob meus pés. Os boeiros estavam entupidos por muito lixo e não davam vazão à água que descia da rua pela canaleta como uma corredeira, vomitando uma mistura fétida que impregnava o ar. Após largos passos enxarcados e alguns escorregões, cheguei ao topo da ladeira onde deparei com uma cena assustadora.

A matilha enxarcada rodeava latões de lixo virados ao chão. Cães molhados e sujos cobertos de sarna e marcados pelos maltratos da rua disputavam à mordidas os restos de comida que encontravam no meio do lixo. Havia entre eles um cão de aparência medonha, grande, bem maior que os outros, de pêlos negro-azulados e com uma grande cicatriz no focinho que me lembrou o alucinado personagem de Al Pacino em Scarface. Esse parecia ser o líder da matilha pois todos os outros cães se afastavam com o rabo entre as pernas quando se aproximava. Rosnando o tempo todo, Scarface, como decidi chamá-lo, com a cara enfiada em alguma coisa gosmenta dentro de um saco de lixo, sentiu a minha presença e voltou-se para mim, me encarando com seus grandes olhos amarelos. Gelei. O pavor tomou conta de mim. Sempre tive medo de cães, desde menino. Idealizei que aquilo poderia ser um teste, que cães não são assim tão maus, que já estava mais do que na hora de eu encarar esse medo. Quando percebi, estava cercado. Os cães vinham em minha direção a passos sincronizados, Todos rosnavam. Tentei enxotá-los com o usual "passa, passa!" enquanto procurava alguma saída daquela situação ridícula, mas de ridícula a situacão ainda tinha muito pouco. Andando de costas encostei em um muro alto que em desespero tentei escalar, minhas mãos escorregavam e meu condicionamento físico penou. Scarface abocanhou meu calcanhar direito em uma de minhas tentativas de escapar pelo muro e tombei de queixo na calçada, mordendo a língua. A enorme dor, o gosto de sangue em minha boca e o cheiro dos cães, embrulharam meu estômago me fazendo vomitar. Ajoelhado, com a testa na calçada, as mãos na boca gemendo de dor, implorei aos cães que fossem embora mas ficaram todos ali, inertes, zombando de meu estado deplorável, então, comecei a rosnar para eles, de quatro, intimando-os num ato de insanidade e cólera. Scarface se aproximou desprezando minha atitude canina, fechei os olhos e me encolhi tentando proteger ao máximo meu corpo. Senti algo líquido e quente escorrendo pelos meus cabelos, descendo pelo meu rosto, pelas minhas costas, o gosto acre de urina e percebi que o desgraçado tinha mijado em mim. Levantei a cabeça furioso e os malditos bichos não estavam mais ali, apenas eu, humilhado pelo meu medo infantil e fedendo a mijo de cachorro.

galileugall
Enviado por galileugall em 12/04/2006
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