Angola - O Jardim dos Anjos - O menino do Huambo

Os raios de claridade que escapavam por entre as folhas das árvores daquela mata cerrada davam a sensação aflitiva de estar dentro de uma estufa. Respirar era um triunfo.

A chuva farfalhava sonoramente nos arbustos e a lama impedia o avanço esguio da água da enxurrada.

Mário apreciava cada som, cada gota de chuva que caía ao seu redor. A água era doce.

Sorriu ao olhar para o pouco céu que conseguia ver do seu esconderijo.

Aquele segundo de sensibilidade era o primeiro que sentia desde a sua fuga do Huambo a 5 de Março de 1993.

Iniciara a sua fuga com mais sete ou oito mil pessoas que fugiam da entrada da UNITA na cidade. A pé.

Todos sabiam que estavam a ser perseguidos.

No caso de serem apanhados, todos seriam abatidos, fuzilados.

Assim era a guerra. Sempre foi assim.

Porém, Mário, já não estava em fuga.

Ao sétimo dia de marcha com destino a Caimbambo, Mário parou.

-Vamos, camarada, não há tempo para isto. Levanta-te e anda.

-Não, irmão, não vou.

O capitão das FAPLA passou as mãos pela farda suja, a modos de limpar a lama e o sangue que as cobriam.

-Olha, os maninhos estão a vir atrás de nós. Já chegamos aqui. Não vás abaixo agora.

-João, não vou. Estamos a ir para onde? Já não há nada! Eu já morri, ouviste, já morri!

-Porra, meu. Se começamos nós a desistir, o que vai ser destas mulheres e crianças?

-Não vou.

-Não vês que cada um de nós que eles apanham vivo, é uma vitória. Cada um de nós que morre ou desiste é uma derrota! Levanta-te, ajuda-me. Não estás sozinho nesta merda, ouviste? Eu estou aqui e preciso da tua ajuda.

-Não vou.

-Porquê? Não queres viver? Sabes o que te acontece se eles te apanham?

-Eu vou ficar. Não quero mais…

A discussão exaltada despertou o interesse a várias pessoas dos grupos que passavam, espaçados, mas que, apesar da fadiga, ouviram a conversa.

Um adolescente branco, esfarrapado e com os pés em chagas disse:

-Vais ficar porquê?

-Filho, segue o teu caminho. Eu fico aqui.

-Eu fico contigo.

-Então, ficas na companhia de um morto.

-Já não consigo andar. Estou baralhado, não sei o que se passou. Perdi-me da minha família. Eles ficaram para trás. Tenho a certeza que estão vivos. Cada passo que dou afasto-me mais deles. Vou ficar aqui à espera.

A coluna desfilava numa lentidão desesperada. O cansaço e as feridas tornavam cada passo num sussurro de dor, de medo.

Mário olhava para esta multidão dilacerada como quem se despede. Sem lágrimas.

Por entre os sons da marcha, Mário começou a descortinar uma melodia. Primeiro mais distante e quase sem entender bem, depois mais nítida, como se fosse um disco a tocar, mas sem orquestra.

“Un beau matin je sais que je m'éveillerai

Différemment de tous les autres jours

Et mon coeur délivré enfin de notre amour

Et pourtant, et pourtant”

Não havia dúvida nenhuma. Alguém naquela coluna estava a cantar uma canção de Charles Aznavour.

Sem que se apercebesse, já estava de pé, em bicos dos pés, a tentar descobrir de onde vinha aquela voz.

-Quem está a cantar? – gritou .

A coluna passava dorida e todos olhavam para ele como se estivessem a ver um fantasma.

-Alguém aí ouviu a canção? Quem está a cantar?

“Sans un remords, sans un regret je partirai

Droit devant moi sans espoir de retour

Loin des yeux loin du coeur j'oublierai

pour toujours

Et ton coeur et tes bras

Et ta voix

Mon amour”

Era impressionante a beleza daquela voz. Parecia uma imitação profissional.

A voz estava tão próxima que Mário parou de perguntar quem estava a cantar.

Podia vê-lo já perto de si.

Era um negro enorme, já velho, bastante mal vestido. Tinha os olhos no chão, como se caminhasse sozinho. A voz potente entoava todos os “érres” que as palavras francesas do poema exigiam, sem uma falha, uma hesitação.

-Senhor, por favor, posso falar consigo?

O velho seguia absorvido pelas palavras que cantava e nem o ouviu.

Et pourtant, pourtant, je n'aime que toi

Et pourtant, pourtant, je n'aime que toi

Et pourtant, pourtant, je n'aime que toi

Mário viu-o seguir a sua caminhada. Sabia que aquele homem estava morto.

Alguém chegou ao seu lado e disse:

-Perdeu a família toda.

-No Huambo?

-Na marcha. Ainda tentou carregar com a esposa alguns dias, mas ela morreu. Acho que ela preferiu morrer para ele poder andar mais depressa.

-E o resto da família?

-Não aguentaram. Simplesmente não aguentaram.

O desconhecido recomeçou a sua marcha com um breve gesto de despedida.

Mário reparou que ele carregava uma criança recém-nascida nas costas.

-Essa criança é sua?

-Agora é – respondeu o homem – encontrei-a na estrada, agarrada ao peito da sua mãe morta.

-E agora?

-Agora o quê? Sigo a marcha, mais nada.

-Senhor, a criança morreu…

-Eu sei, mas não tenho coragem de a enterrar aqui nesta confusão. Mais logo, quando parar de chover… Até mais, rapaz, e boa sorte.

-Até mais… Espere, dê-me a criança!

-O quê?

-Olhe, eu já não vou a lado nenhum. Prometo-lhe que a enterro e faço uma oração.

-Oração? Você faria isso?

-Sim, prometo.

O homem olhou-o durante algum tempo.

-E você não segue em frente porquê?

-Não quero. Para mim chega, mas gostaria de terminar a minha vida com alguma honra.

Em silêncio, o homem entregou-lhe o pequeno corpo sem vida. Não abriu a boca, simplesmente seguiu o seu caminho.

Mário escondeu com cuidado o pequeno menino numa árvore próxima e voltou para a estrada.

-Camaradas, vou ficar aqui! – disse em voz alta – Se tiverem recados para alguém de quem se perderam, eu transmito e vocês seguem!

Repetiu várias vezes o convite, cada vez mais alto, sem reparar que o seu amigo capitão o observava, à distância, a chorar.

-Adeus, camarada, adeus.

Em poucos minutos a coluna começou a perceber que algo se passava naquele ponto da estrada.

Muita gente veio ao encontro de Mário. Rapidamente começaram a pedir que ficasse com alguma bagagem, que se alguém chamado fulano passasse para dizer que…

Foram tantos os pedidos que alguém trouxe uma caneta e papel.

Numa organização fora do comum, um a um foram dando recados e detalhes das pessoas a quem deveriam ser entregues.

O jovem que ficou com Mário começou a ajudar, pondo os pequenos bilhetes no casaco que estava agora no chão a fazer de saco.

As pessoas iam passando, falando com eles, pedindo para dizer que estavam bem.

Todas agradeciam emocionadamente.

Aquela oportunidade dava a todos a esperança de comunicar com a família. Todos sentiam que a esperança estava redobrada e as forças renasciam como milagre.

-Que Deus vos abençoe, meus filhos.

Mário sentiu um aperto no coração quando o jovem disse, divertido:

-Agora é que não podemos mesmo seguir viagem.

-Jovem, esta é a nossa viagem. Aqui é o nosso destino.

Quando a noite chegou, Mário escavou uma pequena cova e, rezando, enterrou o pequeno menino.

-Nem sabemos o nome dele – disse o jovem.

-Chama-se Charles. Charles Aznavour.