O meu primeiro amor

Como sempre acontecia, invariavelmente por volta das quatro e meia e cinco da tarde a turma se reunia para separar os times para a “cerca”. Campeonato diário que era realizado no campinho da várzea.

As regras eram bem simples. Separavam-se aos garotos presentes em grupos de seis, claro, um no gol e cinco na linha, meninas não entravam, eram muito choronas, delicadas demais. Separados os times, normalmente em torno de quatro ou cinco equipes, no período de férias o número era bem maior. Dois entravam em campo, os demais esperavam encostados ou sentados no cercado que circundava o campinho, daí a origem do nome de “cerca” para a competição. O tempo de jogo durava dez minutos ou quando um dos times marcasse dois gols, ou seja, dez minutos ou dois gols, se desse empate decidia-se em pênaltis. Não tinha necessidade de árbitro desde que último voluntário, às carreiras, entrou esbaforido pela janela de sua casa, justificadamente, na opinião dos jogadores, perseguido pelos inconformados integrantes dos dois times com a incompetência do “juiz”.

E qual era a graça do jogo? Ora, a graça consistia em “gozar” na cara dos garotos dos outros times derrotados e ainda poder merendar, comer quibes e tomar suco de tamarindo na birosca do turco Mamed por conta dos times perdedores.

Durante anos e anos da década de sessenta os garotos do bairro da Baixa da União da cidade de Porto Velho, capital do então Território Federal de Rondônia, divertiam-se nos finais de tardes, fosse inverno ou verão.

O garoto Tião era considerado o melhor goleiro do bairro. Moleque franzino, tez amorenada, cabelos crespos, gestos nervosos. Possuía a agilidade de um gato. Como todo garoto da sua faixa etária, o garoto Tião gostava de tomar banho nos igarapés, caçar preá, empinar papagaio, jogar pião, brincar de rouba bandeira e o que mais aparecesse. Mas o que Tião mais gostava era de jogar bola, ele simplesmente adorava. A sensação de defender um chute do atacante na cara do gol, defender um pênalti e ver a cara de decepção do adversário era indescritível. Tião também tinha um gosto especial pelas matinês das tardes de domingo no Cine Brasil. Gostava de assistir os filmes de capa e espada e de faroestes.

Tirando a chatice de ir para escola e de ficar sob a severa vigilância da irmã mais velha enquanto fazia os deveres escolares, a vida de Tião era boa sem complicações. Uma infância feliz.

O fim de semana seguinte seria especial, ele fora escalado para o time titular do bairro pelo “Seu” Manoel, técnico esforçado. O português Manoel era o dono da pequena padaria do bairro, Padaria Queluz. O portuga era fanático por futebol. Corintiano louco. O maluco do português pintara a padaria dele de preto e branco. Tinha uns caras no bairro que não entravam na padaria do portuga nem por decreto. Tião impaciente, esperava ansioso a chegada do domingo. O jogo seria de manhã, por volta das nove horas. O sol causticante de Porto Velho não maltrataria tanto.

Naquele dia de terça-feira, Tião chegara cedo ao campinho. No momento estava sozinho, sentado debaixo das traves do gol. Sonhava com defesas incríveis que faria no jogo de domingo. A partida seria importante, difícil. O time do bairro jogaria contra a equipe do Bairro do Mocambo, vizinho ali, da Baixa da União. O Time deles tinha sido campeão do último campeonato de “Dente de Leite”, modalidade para garotos de até doze anos. Tião no ano seguinte não participaria mais do campeonato, faria treze anos na semana seguinte.

Tião sonhava defender todas as bolas. Fechar o gol. O time dele levantaria a taça da vitória, ele encheria o peito de orgulho e olharia com satisfação a decepção dos adversários.

O moleque Tião não entendia o irmão Zelito, poucos anos mais velho que ele. O cara não jogava bola e vivia correndo atrás das meninas.

Menina era uma coisa muito sem graça. Não jogavam bola, não tomavam banhos nos igarapés, não subiam nas árvores para pegar qualquer fruta da época, na verdade não serviam para nada. Choravam por qualquer coisinha. Menina era um “pé no saco”.

Meninas eram umas criaturas esquisitas, cabelos embolados em duas tranças caindo pelos ombros. Pernas finas, canelas secas e joelhos grandes parecendo pires. Realmente... Tião não entendia a graça de viver correndo atrás delas. Só o amalucado do irmão. Tenha dó. O cara quando chegava perto de uma só faltava babar. Ele às vezes prestava atenção no irmão. Tinha uma “zinha” que morava no lado do campinho que quando o Zelito a via, o cara respirava pesado, parecia que tinha jogado noventa minutos, direto, em intervalo. O sujeito ficava com cara de besta. Esquecia de todas as outras, inclusive do mundo. Ficava de boca aberta. O queixo caia, o olhar ficava esgazeado e ele não sabia onde colocar as mãos. Não! Meninas além de esquisitas, só serviam pra deixar os homens com cara de besta.

Arre! T’esconjuro! Bangalô, três vezes! `Tô fora! Mulheres...? Pois sim!

Finalmente o domingo chegou. O sol estava radiante. Oito horas da manhã e as cercanias do campinho estavam tomadas de pais, mães, irmãos, primos. Todo mundo estava lá. Tião quase não havia dormido. A respiração estava acelerada, mas no fundo, no fundo, estava tranqüilo, tinha certeza de suas habilidades no gol. “Seu” Manoel havia providenciado um uniforme novo. Como não poderia deixar de ser, o uniforme era de camisas pretas com finas listras brancas. Meias e calções brancos. A camisa do goleiro era toda preta com um enorme escudo do Corinthias estampado no peito. As chuteiras foram providenciadas pelos familiares de cada atleta. Tênis “kichute”, muito mais barato. Chuteira de verdade, aquelas de couro? Custava o olho da cara.

O time adversário ostentava um uniforme vistoso, tricolor. Tião nunca lembrou as cores. Só sabia que eram de três cores, com uma faixa horizontal no peito. Os caras eram muito grandes. Nem parecia que o mais velho do time adversário tinha doze anos. Idade limite para jogos do gênero.

“Seu” Manoel fizera questão de, depois do jogo, os familiares dos jogadores e convidados irem almoçar no amplo terreiro da padaria, guarnecido pelas sombras de frondosas mangueiras.

Para o almoço tinha de tudo, pato ao tucupi, pirarucu a casaca, galinha picante, caruru e vatapá. Como complemento tinha arroz branco, farofa de lingüiça, macaxeira cozida e maniçoba. Oferta dos pais dos atletas do bairro para o time visitante e seus familiares O povo era pobre mais gostava de comer bem e com fartura. Para beber, a criançada podia dispor de refresco de maracujá, aluá de abacaxi, chicha e refresco de groselha. Quem gosta de boa mesa necessita de fartura no copo. Para os adultos, cachaça à vontade. Por conta do “Seu” Manoel. Cerveja era por conta de cada um, era só pedir no balcão da padaria. Era proibido trazer bebida de fora, afinal, “Seu” Manoel não podia ficar só no prejuízo.

O ambiente no campinho e arredores estava eletrizado pela expectativa do jogo. Pais travestidos de técnicos davam instruções, as mais variadas, projetando seus anseios e frustrações nas frágeis cabeças dos imberbes jogadores. Diante da pressão dos pais os meninos atletas manifestavam as mais diversas reações. Alguns mordiam os lábios, outros roíam as unhas, um ou outro ficava com os olhos parados, olhando para o nada.

O técnico do time do Tião, “Seu” Manoel, acabou com a farra dos pais. Afastou os “técnicos”, chamou os meninos para debaixo da copa de uma mangueira, e à sombra da frondosa árvore falou aos meninos que aquilo era só um jogo, que haveria outros mais, que se cada uma desse o melhor de si as chances de vitória seriam grandes. Que era só cada um fazer o seu trabalho, usar de suas habilidades e pensar em equipe. Em suma, era jogar com prazer, com o coração e esquecer que os pais estavam à beira do campo. “Seu” Manoel chamou o Tião que mais parecia uma fera enjaulada andando de um lado o outro, olhando fixo no horizonte, nem tinha ouvido a preleção do técnico.

“Ô gajo! Vens cá! Tu deves ser o mais tranqüilo de todos. Quando tudo estiver perdido. Quando os defensores perderem a corrida para os atacantes adversários, é tu, o guarda-metas que vai salvar o time. Ora, pois! Então tratas de ficares calmo. Pois, pois”?

O jogo começou tenso. Ataques fulminantes de um lado e de outro. Faltas desleais do time do bairro, mais desleais ainda do time adversário. O goleiro do time deles fazendo defesas difíceis. Chute rasteiro, forte, no canto. O goleiro adversário com a ponta dos dedos tocou para fora.

Contra ataque rápido do time adversário, o atacante deles driblou todo o time, deu um “drible da vaca” no meia-direita do time do bairro e quando partiu em direção do gol, sozinho, Zé Lelé voltando lá da frente, surgindo do nada ao lado do adversário, meteu um soberbo carrinho na bola jogando-a para lateral, mas tocou no adversário e o derrubou na entrada da grande área. Falta perigosa. Mais um passo e seria pênalti.

Zé Lelé tinha esse apelido porque todos achavam que ele não batia bem da cabeça. Vivia com um lápis e caderno à mão. Ele dizia que era para registrar as coisas que aconteciam no bairro. Vire e mexe ele tirava os apetrechos de dentro de uma sacola que ele carregava pendurada no ombro e danava a escrever. Outras vezes a turma o encontrava sentado à sombra de uma árvore com um livro na mão. Todo mundo achava que o moleque não “batia bem da bola”. Daí a razão do apelido. O bom é que era um zagueiro esforçado. Conseguira a vaga no time mais pela dedicação do que pela a habilidade.

O jogo foi divido em dois tempos de vinte e cinco minutos cada tempo com dez minutos de intervalo. A partida estava em zero a zero. A falta acontecera aos vinte e três minutos do segundo tempo.

O árbitro fez a contagem regulamentar de nove passos, marcou o local da barreira e autorizou o chute direto. O batedor era considerado um exímio cobrador de faltas. O terror dos goleiros. Tião impassível caminhou até onde estava a bola, voltou-se, olhou em direção ao gol, encarou o adversário e voltou para debaixo das traves de onde orientou a posição barreira. Surpreso com a irreverência de Tião o árbitro o brindou com o Cartão Amarelo. Lugar de goleiro é gol e não se pavoneando antes da cobrança de uma infração.

O cobrador de faltas ajeitou a bola na marca da cal. Colocou o pé direito ao lado bola, retrocedeu quatro passos, olhou por sobre o segundo homem postado na barreira, da direita para a esquerda, fixou os olhos no anglo superior direito, avançou lentamente e bateu, suavemente, cavando por debaixo da bola. De chapa. A redonda subiu mansa por sobre a cabeça do segundo homem da barreira. Ele ainda pulou se esticando todo a fim evitar a passagem fatídica. A bola ultrapassou a barreira numa curva perfeita e obediente procurou o anglo superior direito, a “gaveta”, o “ninho da coruja”. Era fim.

“Seu” Manoel fechou os olhos e cofiou os enormes bigodes. Porém... Eis que surge o moleque Tião catapultado pelas ágeis canelas finas.

O goleirinho, um gigante, alongou o corpo, esticando até o último tendão das pontas dos dedos e triscou na bola, de leve, com a ponta da unha. Nem mesmo uma pantera negra demonstraria tanta elasticidade.

Nesses milagres que somente os deuses do futebol são capazes de realizar, a bola caprichosamente bateu no travessão, desceu, ricocheteou na cabeça de Tião e ganhou a linha de fundo.

Escanteio.

O ponta esquerda do time adversário chutou de “rosca”. A bola fez uma curva tenebrosa e foi cair dentro da pequena área. Foi o maior sufoco. Bate rebate. Pé chutando a bola na busca desenfreada do gol. Pés defendendo e chutando a bola numa defesa desesperada. Uma confusão dos diabos em frente às traves do gol. Era chute para tudo o que era lado. De súbito a bola sobrou quicando na frente do Zé Lelé, ele estava de costas para o goleiro, os olhos míopes esbugalhados, assustado, os cabelos desgrenhados, a meia arriada, camisa rasgada. Não teve dúvidas, meteu o pé na bola chutando-a para o campo adversário, aliviando o perigo de gol.

Naquele momento ventava bastante, e o vento estava a favor do time da casa.

O goleiro adversário estava adiantado...

O vento impulsionou a bola...

O Gol estava sozinho, livre...

Ouviu-se um urro uníssono.

Era o gol da vitória.

Apito final.

Catarse geral.

Muitos, extenuados, desabaram ao solo sem acreditar no que viam.

Zé Lelé só soube que havia feito o gol porque os companheiros o abraçaram cumprimentado-o pelo feito extraordinário. Zé Lelé estava extático, o sangue fugira-lhe das faces. Estava mudo sem saber o que dizer. Incrédulo, tentava enxergar a bola no fundo do gol adversário. Inútil tentativa. Seus olhos míopes estavam encharcados de lágrimas.

Um esbaforido Tião saiu correndo pelo campinho beijando o enorme escudo do Corinthians ostentado no peito. Naquele momento nascia um Corintiano fanático.

O almoço transcorreu em clima de carnaval. Todos queriam abraçar Tião, o verdadeiro herói da épica vitória. Zé Lelé tinha feito o gol da vitória. Pura sorte. Se Zé Lelé ficasse tentando acertar outro chute semelhante, tentaria até criar cabelo branco sem nunca mais fazer outro igual. Tíão, não. Tião tinha habilidade. Tião tinha nascido para ser goleiro. Se duvidasse era bem capaz dele melhor até que o goleiro Gilmar, guarda metas da Seleção Canarinho.

Foi difícil o “Seu” Manoel retirar o pequeno gigante Tião do meio dos abraços e beijos dos familiares que o cercavam para carregá-lo em triunfo pelo terreiro.

Após as ovações de todos. O menino Tião foi deixado momentaneamente sozinho. Ofegante, Tião segurava a taça da vitória como se fosse o maior tesouro do mundo. De repente Tião teve a impressão que um beija-flor pousava em seu ombro, virou-se e viu os delicados dedos que pousavam sobre ele. Ficou mudo. Não sabia onde colocar as mãos e muito menos a taça. Simplesmente deixou-a cair.

A impressão que o jovem Tião teve foi que o som de um sininho ou o canto de um rouxinol, tanto faz, trinava em seus ouvidos. Era a voz de uma menininha de doze ou treze que parada à sua frente sorria com os dentes mais brancos do mundo. E os olhos? Os olhos lembravam os olhos manhosos de uma gatinha. Gatinha? Não, não eram olhos de gatinha, eram olhos de anjo. Sim! Olhos de anjo. Os cabelos negros e cacheados emolduram a face mais linda que uma criatura esquisita poderia ter. Os olhos esgazeados de Tião fitaram o vestidinho da cor de rosa bebê que cobriam um corpo franzino sustentados pelas pernas finas mais lindas de todo o universo. Até os joelhos da deusinha eram lindos. E as mãos de Tião? As mãos ora seguravam uma na outra, ora descansavam na cintura, ora iam para frente, ora iam para trás. Deus do céu! Seria bem melhor se a gente não possuísse mãos.

Ouviu o trinado novamente:

“Nossa! A tua boca está tão aberta que está me dando medo”

Tião conseguiu balbuciar:

“Me... Me... Medo? Medo do quê”?

A menininha respondeu sorrindo com graça. Para Tião o som do sorriso era o retinir de um cristal.

“Medo de que o seu queixo caia no chão. Ele está aqui, olha, quase no meio do peito. Desculpe-me ainda não me apresentei. Meu nome é Ana. Aninha para os amigos. Minha família mudou hoje para o bairro. Estão lá, descarregando os móveis do caminhão de mudança. Parece que o bairro é animado, né”?

Tião, ofegante, pensou: “Alem de linda é educada prá xuxu”. Parecia até que ele havia corrido uma partida inteira de futebol. Noventa minutos, sem intervalo.

E o olhar do Tião? Continuava esgazeado. E a cara? Continuava com cara de besta.

Atordoado, Tião pensava:

“Mãe do Céu! O que é que está acontecendo comigo”?

Enquanto olhava para a menininha à sua frente, Tião tinha a impressão que o terreiro estava vazio. A sensação era que no universo só existiam duas almas, Tião e Aninha. Aninha e Tião.

“Minha Mãe do Céu! Será que é isso que o Zelito sente quando está na frente daquela uma? Se for, então eu estou perdido. Será que eu vou ficar abestalhado também? Se for? Agora danou-se! E agora, o que é que eu faço”?

Tião ficou lá, parado, igual a um poste. Olhou para os pés e viu que eles estavam abertos, iguaiszinhos aos pés de um pato. Sentiu-se ridículo. Olhou para os lados como se pedisse socorro e a única coisa que ele viu foi a roseira da “Dona” Carlota, mulher do “Seu” Manoel.

Pela primeira ele viu que rosas da “Dona” Carlota eram as rosas mais lindas que ele jamais vira em toda a sua curta existência. Até as samambaias à sombra da varanda, quando recebiam os raios do sol, soltavam reflexos esmeraldinos. Olhou para cima, desesperado. E foi como se tivessem retirado uma venda de seus olhos. Ele estivera cego em todos esses anos. Como é que nunca tinha percebido que o céu possuía a cor de azul anil e que emoldurava um sol que mais parecia é que era feito de ouro. Sorrindo sem razão aparente percebeu que no horizonte nuvens plúmbeas sustentavam um arco-íris multicor. A vida era linda, e ele só estava no começo dela.

Mulheres... Há! As mulheres... Pois, sim!

No alto, sentado num galho de goiabeira, lápis e caderno à mão, Zé Lelé a tudo observava.

Zé Lelé desceu do galho, foi até a mesa que guarnecia os quitutes do almoço, encheu um copo com refresco de tamarindo, pegou uma cadeira, dirigiu-se para a sombra da mangueira e anotou para consulta posterior:

“HOJE EU VI NASCER UM CORINTIANO PERDIDAMENTE APAIXONADO”